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domingo, 27 de julho de 2014

À maneira de Degas - II

Continuando a falar sobre o livro "Degas dança desenho", de Paul Valéry, o poeta continua mostrando como era o pintor Degas, aplicado, sério, completamente dedicado ao seu ofício:

“No Louvre, um dia, eu percorria com Degas a Grande Galeria. Paramos em frente a uma importante tela de Rousseau que representa magnificamente uma alameda de carvalhos enormes.

Depois de um tempo de admiração, observei com que consciência e paciência o pintor, sem perder nada do grande efeito da massa de folhagem, executara o detalhe infinito ou produzira a ilusão suficiente desse detalhe a ponto de fazer pensar em um labor infinito.

- É soberbo - eu digo -, mas deve ser tedioso fazer todas essas folhas… Deve ser até muito chato…

- Cale-se - diz Degas -, se não fosse chato não seria divertido.”
Retrato de Edmond Duranty

Degas era coerente com seu pensamento: uma obra terminada era resultado de uma infinidade de estudos. Para ele, nunca uma obra era considerada terminada. “Acontecia de ele retrabalhar telas há muito tempo penduradas na paredes da casa de seus amigos, levá-las para seu antro, de onde elas raramente voltavam. Alguns, de cuja casa era frequentador, chegavam a esconder o que tinham dele.

Degas acompanhava a política de seu tempo. Acompanhou passo a passo o famoso julgamento do Caso Dreyfus (um judeu condenado injustamente de espionagem em 1894 e que foi belamente defendido por um artigo escrito por Émile Zola, intitulado “J’accuse…!”). “Tornou-se quase fanático”, diz Valéry. “Roía as unhas”. Se conhecidos ou amigos discordavam de suas posições políticas, eram cortados de sua convivência.

Mais Valéry:

“Não conheço arte que possa envolver mais inteligência do que o desenho. (...) Quem não mede o intelecto e a vontade de Leonardo ou de Rembrandt após uma análise de seus desenhos?”

Mas hoje “quase tudo é feito sem estudos; ou melhor, quase tudo não passa de estudos, e mais ainda, estudos inutilizáveis” Um bom estudo deve ser mais profundo do que qualquer quadro, e permanecer na sombra do ateliê. Não deveria jamais estar à venda, jamais em Museus”. Aumentou o número dos maus pintores, continua Paul Valéry. 

Ninguém se diverte mais estudando cuidadosamente e com reflexões que podem levar muito longe (Leonardo), um tecido jogado sobre uma cadeira, uma folha, uma mão… nem buscando nesse confronto com o objeto, sem pressa e sem utilidade imediata, certa ciência de si mesmo, da manobra combinada de seu intelecto, de seu desejo, de sua visão e de sua mão sobre uma coisa dada… e com o público ausente. (Este último ponto é capital: deve-se tentar espantar apenas a si mesmo.)”


E prevê, décadas atrás:

“Foi assim que a infeliz Pintura viu-se presa dos métodos rápidos e poderosos da política e da Bolsa”.

Degas era louco por Desenho. “O trabalho, o Desenho, tinham se tornado nele uma paixão, uma disciplina, o objeto de uma mística e uma ética que se bastavam por si mesmas (…)”. Com 70 anos de idade Degas disse a seu amigo Ernest Rouart:

- “É preciso ter uma ideia elevada, não do que se faz, mas do que se poderá fazer um dia; sem o quê não vale a pena trabalhar.” Ou seja, não importa o tempo “perdido” no apuramento técnico, pois ele leva incontestavelmente a patamares muito mais altos que poderão ser alcançados pelos que se dedicam a estudar.

Pois

“A ideia de possuir inteiramente a prática de uma arte, de conquistar a liberdade de fazer uso de seus meios com tanta segurança e leveza quanto de nossos sentidos e membros em seus usos comuns, é daquelas ideias que arrancam de certos homens uma constância, um esforço, exercícios e tormentos infinitos”.

Uma folha de papel, algum lápis ou caneta, é o suficiente para esse mergulho fundo no reino da criação. Tudo é muito simples e tudo muito complexo. Nessa dicotomia, Degas dizia que a pintura é, para os sem conhecimento, algo bastante fácil. Mas quando se tem conhecimento… ah… se torna muito difícil! “Ah! então… É completamente diferente!”.

Se o pintor buscava os caminhos mais fáceis, isso dizia - e diz - muito a respeito de seu próprio caráter. O caminho mais fácil não é o caminho “da obra de um homem completo”. E Valéry complementa: quanto mais o artista se distancia do aprendizado ao qual se dedicaram os maiores mestres, mais “é do homem total que estamos nos distanciando assim. O homem completo está morrendo.”


"Aula de balé", Degas
Arte moderna e Grande Arte

“A arte moderna tende a explorar quase exclusivamente a sensibilidade sensorial, em prejuízo da sensibilidade geral ou afetiva, e de nossas faculdades de construção, de adição das durações e de transformações pela mente. Sabe maravilhosamente bem despertar a atenção e usa todos os modos para estimulá-la: intensidades, contrastes, enigmas, surpresas”. Não é isso o que vemos nos dias de hoje, com a espetacularização da arte?

“(...) observo que o modo de ser da modernidade é exatamente o de uma intoxicação. Precisamos aumentar a dose, ou trocar de veneno. Essa é a lei”!!!! Nada mais atual, não é? E Paul Valéry explica:

“O que chamo de ‘Grande Arte’ é simplesmente a arte que exige que todas as faculdades de um homem sejam utilizadas nela, e cujas obras sejam tais que todas as faculdades de outro sejam invocadas e se interessem por entendê-las…”

“O demônio da mudança-pela-mudança é o verdadeiro pai de muitas coisas…” e em nossos dias atuais.

Passando de um período a outro, de uma moda a outra, sugere “que não há objetos, que é preciso proibir-se a expressar mais do que as propriedades da retina… Tudo começa a vibrar.

O Desenho não é a Forma


“Degas gostava de falar sobre pintura e não suportava que se falasse sobre ela".

Valéry perguntava o que ele entendia por Desenho. Respondia:

“O Desenho não é a forma, é a maneira de ver a forma”. Valéry dizia não compreender o que ele falava. Degas gritava, berrava que o poeta não entendia de nada e se metia em coisas que não eram de sua alçada...

Durante um jantar com Mallarmé, Degas disse que “um artista só é um artista em poucos momentos, por um esforço da vontade”. Isso foi ouvido por Berthe Morisot, a pintora impressionista.

Em sua convivência com o pintor Degas, Valéry foi aprofundando suas reflexões sobre arte, que expõe no livro “Degas dança desenho”. São muito atuais e parecem ter sido escritas para esta época contemporânea. Como um artífice da linguagem, Valéry dizia que “a linguagem do país das Artes é turvada com toda uma metafísica que se mescla de maneira muito íntima às puras noções da prática.” E mais:


“Nunca vi nada de certo e ordenado sobre o desenho, por exemplo, que é antes de mais nada uma arte complexa, cuja análise ótica e motora não foi realizada, nem mesmo iniciada, a meu conhecimento.

“Se tivesse existido, a célebre expressão de Degas, ‘o modo de ver a forma’, teria sido completamente diferente: teria explicado o que ele queria dizer, e não o sentido que cada um pode atribuir-lhe.

“Mas eis a pior consequência da impureza da linguagem das grandes artes: ela leva a não se saber mais o que se quer. Nada mais espantoso do que certos comentários ou programas de artistas, carregados de filosofia, de considerações às vezes matemáticas e frequentemente ingênuas, invocadas com vistas a preparar para o entendimento de suas obras e a dispor o público para suportar sua visão. Mas ao contrário, a visão nas artes deve por si só introduzir a fruição e, se houver alguma ideia a sugerir, conduzir a ela por suas percepções. Um pintor deveria sempre pensar em pintar para alguém que não tivesse a faculdade da linguagem articulada… Não devemos esquecer que uma coisa bela nos deixa mudos de admiração…”

Os medíocres possuem mais certezas

Valéry adiciona a seu texto algumas recordações “muito preciosas” de Ernest Rouart sobre seu amigo Edgar Degas, como estas:

- “Degas não se contentava muito facilmente, e raro achava que uma pintura estivesse no ponto.

- “Para ficar satisfeito, aquilo de que precisava é que sua obra fosse completa, não na perfeição dos detalhes, mas na impressão de conjunto que ela daria; na construção, antes de tudo, e na coordenação dos elementos diversos que a compunham, ou seja, nas relações corretas das linhas do desenho, dos valores e das cores entre si.

- “A necessidade de retomar uma coisa que considerava incompleta jamais o abandonou e, em sua casa, inúmeras eram as telas que tinha a intenção de retocar, não as achando dignas de deixar seu ateliê no estado em que se encontravam”.


"Melancolia", Degas
Como professor de Rouart, era rígido. Um dia mandou o aluno ao Louvre para copiar um quadro do pintor italiano Mantegna, “A sabedoria vence os vícios”. Sua orientação era de que a primeira coisa a fazer era uma imprimação em verde (uma camada de pinceladas em pigmento verde misturado a terebentina, bastante diluídas). E lembrou ao aluno que deveria deixar secar essa primeira camada “durante meses”, pois o próprio “Ticiano esperava talvez um ano antes de retomar um quadro!”.

No fim de sua vida, diz Valéry, Degas tinha se enamorado ainda mais da cor e dos efeitos que ela pode produzir. “Sua admiração pela cor e pela técnica dos antigos levava-o com frequência a fazer pesquisas nesse sentido e a desenvolver teorias e sistemas sobre a execução natural da pintura, sobre a técnica, como ele dizia”.

É lutando sobre a tela que um artista como ele consegue conciliar a teoria e a prática”, observou Ernest Rouart.


"A espera", Degas
No dia 25 de setembro de 1917, Degas morreu. “Morre tendo vivido demais, pois morre de sua luz. O começo de sua lenta diminuição foi marcado pelo enfraquecimento mais pronunciado da visão. O trabalho, pouco a pouco, tornou-se impossível para ele, e sua razão de viver esvaiu-se antes de sua vida. Uma das últimas obras que fez foi seu retrato com barba branca, arrepiada e curta, e com boné. Mostrava-o e dizia: ‘Pareço um cachorro’.”

Era um solitário perene “e o foi em todas as modalidades da solidão. Solitário pelo seu caráter; solitário pela distinção e pela particularidade de sua natureza; solitário pela probidade; solitário pelo orgulho do seu rigor, pela inflexibilidade de seus princípios e de seus julgamentos; solitário por sua arte, ou seja, pelo que exigia de si mesmo”.

Justamente por ter sido o ser “estranho” que Degas foi, é que Paul Valéry questiona: “Não seria hoje uma espécie mais ou menos desaparecida, essa espécie de personagens difíceis e incorruptíveis?” Ele, Degas, era avesso a qualquer tipo de bajulação que foi se tornando cada vez mais um costume nos tempos modernos. Para ele o brilho no mundo moderno era desprezível; odiava - e odiaria ainda mais hoje - esses que se voltam a agradar o mercado e a crítica, fazendo apenas o que se espera deles:

“Uma noite Degas fazia troça de Forain, que corria, chamado por um timbre imperioso, para atender o telefone. ‘É isso, o telefone?... Tocam um sinete e você acorre...’ Seria fácil generalizar essa expressão sarcástica. ‘É isso a Glória?... Você é citado, e acha que é alguém!...”

Nada mais contemporâneo...

segunda-feira, 21 de julho de 2014

À maneira de Degas - I

Para comemorar os 180 anos do nascimento de Edgar Degas, um dos grandes artistas franceses do século XIX, contemporâneo dos pintores impressionistas, trago aqui um resumo do que sobre ele disse o poeta Paul Valéry em seu livro “Degas dança desenho”, publicado em 1938. Edgar Degas - registrado como Hilaire Germain Edgar de Gas - foi um pintor, desenhista, gravador e escultor francês, nascido em Paris em 19 de julho de 1834.


"Autorretrato com jaqueta verde", Degas, 1855
Valéry, logo no início do livro, explica que não pretende escrever exatamente uma biografia de Degas, pois “o que me importa em um homem não são os acidentes, nem seu nascimento, nem seus amores, nem suas tristezas, nem quase nada do que é observável pode me servir”. Assim como também não pretendo, com este resumo, dirigir meu olhar para esses detalhes de sua vida pessoal, coisa que já foi feita antes aqui neste blog e que pode ser lido aqui.

Meu recorte é coerente com meu pensamento sobre arte. Pincei do texto de Paul Valéry aquilo que pode reforçar a minha visão sobre o pintor e sua obra, no sentido de que ela pode ficar mais compreensível com esses adendos retirados do texto do poeta francês. O recorte também vem do prazer que sinto em saber que Edgar Degas caminhava no mesmo sulco daqueles que se inspiravam no caminho dos grandes mestres.

Degas, o pintor, era absolutamente voltado para seu ofício, que era praticamente o único objeto “de seus pensamentos”. Valéry mostra, em diversos momentos, como nessa sua atitude de profundo devotamento ao caráter mais “científico” do fazer artístico, ele se tornara indócil às críticas, às teorias e aos modismos e superficialidades que já se faziam presentes em seu tempo. Não tinha a menor vontade de agradar a quem quer que fosse. Conhecia muita gente, mas faltava-lhe paciência para contatos sociais, pois era “grande polemista e argumentador terrível, particularmente excitável sobre assuntos de política e de desenho”. Chegava mesmo a ser conhecido como uma pessoa “intratável”, apesar de ter lá seus momentos “encantadores”.


Desenho de Edgar Degas
Seu ateliê, quando Valéry o conheceu, era um cômodo comprido, cheio de janelas de vidro em um dos lados, vidros sujos de poeira, que a luz externa atravessava. O ambiente era um amontoado de coisas úteis a um pintor: cavaletes com desenhos a carvão, uma bailarina de cera, uma mesinha estreita repleta de caixas, frascos, lápis, pedaços de giz pastel e todo tipo de “coisas sem nome que sempre podem servir”. Observando aquela “bagunça” abençoada, Paul Valéry reflete:

“Ocorre-me por vezes de achar que o trabalho do artista é um tipo muito antigo de trabalho; o próprio artista é uma sobrevivência, um operário ou artesão de uma espécie em vias de extinção, que fabrica fechado em seu quarto, usa procedimentos muito pessoais e muito empíricos, vive na desordem e na intimidade de suas ferramentas, vê o que quer e não o que o cerca, usa potes quebrados, sucata doméstica, objetos condenados…”


Pintura de Degas
E mais à frente:

“Até aqui, o acaso ainda não foi eliminado dos atos; o mistério, dos procedimentos; a embriaguez, dos horários; mas não garanto nada.” Em relação ao que viria a ser o futuro, quando essa ideia de artista-artesão foi se tornando uma raridade...

No fim de sua vida, Degas ficou cego. Vivia num apartamento cuidado por uma velha empregada e se alimentava de comidas quase sem tempero, pois temia as obstruções intestinais. Seu quarto dava a impressão, conta Valéry, de que o pintor não ligava para mais nada na vida, com móveis velhos, uma escova de dente ressecada em um copo. Degas idoso vestia calças largas, sempre abertas na frente, calçava chinelos. “Ei-lo velhote nervoso - conta o poeta - quase sempre sombrio, por vezes sinistro e tristemente distraído, com recargas repentinas de furor ou de espírito, impulsos ou impaciências infantis, caprichos…” E cego.

Edgar Degas participou do movimento “naturalista” que influenciou a cultura francesa do seu tempo. Era do círculo de escritores como Émile Zola, Edmond de Goncourt, Louis Edmond Duranty e Théodore Duret. Do seu lado, era um desenhista incansável, insistente, exigente consigo mesmo. Adorava o trabalho tanto de Jean Dominique Ingres como o de Eugène Delacroix. Explorava com seus olhos atentos e seus lápis precisos o “espetáculo da vida moderna”. O fervilhar de interesses que tomava conta da Paris daqueles tempos era acompanhado de perto por ele.


Desenho de Degas
Um outro poeta, Stéphane Mallarmé, fazia parte do círculo de relações de Degas. Os dois eram absurdamente diferentes: enquanto Mallarmé era uma personalidade doce, afetuosa, educada, Degas era deliberadamente duro, direto, bruto. Mas falava de Mallarmé de forma amável.

Quanto a Ingres, Degas não admitia críticas a seu trabalho, pois era para ele um gênio. Vivia repetindo frases que ouvira de Ingres:

- “O desenho não se encontra fora do traço, está dentro dele…”
- “Deve-se perseguir o modelado como uma mosca que corre sobre uma folha de papel.”
- “Os músculos são meus amigos, mas esqueci seus nomes.”
- “Faça linhas… Muitas linhas, ora de memória, ora de observação da natureza”.


Mais de Valéry sobre o desenho:

“Há uma imensa diferença entre ver uma coisa sem o lápis na mão e vê-la desenhando-a.

“Ou melhor, são duas coisas muito diferentes que vemos. Até mesmo o objeto mais familiar a nossos olhos torna-se completamente diferente se procurarmos desenhá-lo: percebemos que o ignorávamos, que nunca o tínhamos visto realmente. (...)

“(...) Não posso tornar precisa minha percepção de uma coisa sem desenhá-la virtualmente”.


Estudo de uma bailarina
A pintura de paisagem jamais seduziu Edgar Degas. “As raras que fez executou em seu ateliê e totalmente de memória”, diz Paul Valéry. Era o tempo em que os pintores impressionistas haviam abandonado seus ateliês e iam para o campo para pintar as paisagens e registrar a influência da luz do sol em diversos horários do dia, em diversas estações do ano. Como o fez Monet, Manet e tantos outros. Degas não; seu modo de vida e de ver a vida e a arte não combinavam com essas aventuras impressionistas ao ar livre.

Valéry, em diversos momentos em seu livro, explicita sua opinião sobre a pintura, que convergia para as opiniões de Degas. Para eles, “sensibilidade” e “técnica” possuem uma relação íntima e recíproca, uma não podendo abrir mão da outra. Elogia o modo tradicional de lidar com o ofício de artista-artesão: era preciso conhecer TUDO, todas as estruturas do trabalho. E criticava: quanto menos se estuda profundamente a parte técnica da pintura e do desenho, menos invenção e criação, pois isso significa “o abandono da ação do espírito na pintura em favor do divertimento instantâneo do olho.” Já no tempo de Degas e Valéry artistas se afastavam do esforço da boa execução de uma obra. Qualquer esforço para uma pintura simples os “exaure”, denuncia Valéry... 

Nada mais contemporâneo!


(continua num próximo post)

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Modelo Vivo no Ateliê Contraponto

"Ateliê do artista", Gustave Courbet, 1855, 361 x 598 cm

As sessões com modelo vivo são fundamentais para qualquer pessoa que desenha, pinta, grava, esculpe. Artistas plásticos, designers, ilustradores, sketchers, gravadores e escultores sabem o quanto é importante o estudo da anatomia do corpo humano, o estudo dos movimentos, do gestual, das direções, das proporções, para sua evolução individual nas artes visuais. São momentos ricos de aprendizado.


Uma sessão com modelo vivo, na Grande Chaumière
Numa sessão com modelo vivo, nós fazemos desenhos de observação a partir de poses curtas (com 30 segundos a 2 minutos de duração por exemplo) ou poses mais longas com até meia hora de duração. Para isso, os modelos precisam estar bem alongados, pois ficar na mesma posição por meia hora, 40 minutos, não é coisa muito fácil. O trabalho, para os modelos, exige muito de seu corpo físico, além de muita concentração.

Por isso, tantos artistas ao longo da história devem tanto a essas pessoas que se dispõem a posar para eles! Podemos afirmar que grande parte das obras de arte que conhecemos deve-se a estes inúmeros anônimos que se postaram quietos - ou em movimento - à frente dos cavaletes e mesas de trabalho dos artistas. Lucien Freud, por exemplo, quase nunca pintava sem um modelo vivo à sua frente. Caravaggio, para a grande maioria de seus quadros, teve modelos entre seus amigos e amantes posando para ele. John Singer Sargent, Joaquin Sorolla, Diego Velázquez, Degas, Gustave Courbet - a lista é imensa! - construíram grandes obras de arte a partir do estudo do corpo de pessoas que posaram para eles. Podemos afirmar que nenhum grande artista pode abdicar da prática do desenho ou pintura com modelo vivo.

Sessão com modelo vivo no Ateliê de
Maurício Takiguthi, nov.2013 - à esquerda
Marcia Agostini, Mazé Leite e Sarita Genovez.
Para nós, artistas, essa prática é tão intensa quanto para os modelos. Nas poses curtas, por exemplo, que servem como aquecimento e como forma de parar o pensamento para ver, e desenhar o mínimo necessário, a mão pode ficar dura, o braço trava, a mente se perde. Por isso é bom estar relaxado, solto. Respirar ajuda muito a relaxar. O segredo é não se deixar travar, e seguir desenhando. Observando e colocando no papel (ou outro tipo de suporte) o que vejo no modelo.

Essa questão de saber quanto tempo teremos para uma pose é importante para que possamos medir nosso trabalho, até onde podemos chegar. Também serve para que possamos ir calibrando nosso ritmo de acordo com o tempo que temos. É importante evitar, no meio do desenho de uma pose, fazer uma pausa ou interromper o trabalho prematuramente, para evitar que essas atitudes de negligência nos retirem o foco ou nos levem a cometer algum tipo de erro.

Em geral, quando iniciamos no desenho com modelo vivo fazemos traços hesitantes, lentamente, com medo de riscar a folha de papel… É assim mesmo no início, para todo mundo. Mas devemos nos esforçar para, ao contrário, não hesitar em fazer traços gestuais mesmo que mais leves, que poderão ser mais marcados em seguida. A pessoa pode fazer traços menos precisos no começo, porque a precisão, a segurança e a firmeza se adquire com a prática. Com a prática, alcançamos os desenhos mais simples, mais concisos, mais soltos. Com a prática nos tornamos mestres. Só com a prática! Nenhum mestre nasce feito, nem de nascimento, nem de "feito na faculdade". A melhor escola é a prática diária, a vida! 

Desenhar não é um ato que se faz só com a mão, mas com todo o braço, todo o ombro, todo o corpo, no final das contas. Todo o nosso ser deve estar envolvido com aquilo que fazemos. 

Desenhar um modelo que está vivo à nossa frente amplia altamente nosso repertório pessoal com traços, com massas, com valores, com tonalidades, com ar, com espaços, com proporções, com gestos, com expressão.

Venha participar das sessões com Modelo Vivo no Ateliê Contraponto!

Serviço:
20 de fevereiro - 5ª feira
das 19h às 21h

ATELIÊ CONTRAPONTO
Travessa Dona Paula, 111 - Consolação
a 5 minutos a pé do Metrô Paulista
COMO CHEGAR


Detalhe da sala para a prática com Modelo Vivo,
na Académie de la Grande Chaumière - Paris, 2011

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Edgar Degas, impressionista ma non troppo

Estudo meu sobre o "Retrato de Albert
Melida", de Edgar Degas,
feito em pastel (nov. 2012)
O Museu Oscar Niemeyer de Curitiba, Paraná, inaugurou no dia 10 de novembro a exposição “Degas: Poesia geral da Ação. As esculturas - Coleção Masp”. O evento faz parte da comemoração dos 10 anos de vida do Museu, que tem a assinatura do arquiteto Oscar Niemeyer.

São 73 obras do artista francês Edgar Degas que pertencem ao Museu de Arte de São Paulo, o Masp. As esculturas são fundidas em bronze e, entre elas, a mais conhecida: “Bailarina de 14 anos” (foto abaixo). Vale ressaltar que o MASP é um dos museus onde há uma das grandes concentrações de obras de Degas, além do Metropolitan de Nova York e do Museu d'Orsay de Paris.

Recentemente fiz um estudo em pastel de uma pintura a óleo deste artista francês, o “Retrato de Albert Melida”. O método de pintura dos impressionistas é pictórico, quase sem linhas, com predominância no valor das cores de médio a alto; também não respeitam muito a forma dos objetos e as massas se fundem, se multiplicam, dando um ritmo luminoso, o que era intenção desses pintores. Alguns levaram essa técnica à radicalidade do pontilhismo, como George Seurat e Van Gogh. Ou praticamente enfatizando os efeitos luminosos das cores sob o efeito da luz, como fazia Monet. Mas não foi o caso de Degas. Ele ficou mais independente, mantendo mesmo uma certa distância do grupo dos impressionistas, mesmo que, segundo E.H. Gombrich em seu livro História da Arte, “simpatizasse com a maioria de seus propósitos”.


Autorretrato, Degas, 1857
Seu nome completo era Hilaire Germain Edgar de Gas, adotando Edgar Degas como nome artístico. Ele nasceu em 19 de julho de 1834 em Paris e foi, além de pintor, gravador, escultor e fotógrafo. Era um pouco mais velho do que Renoir e Monet e regulava de idade com Manet. Gombrich observa que Edgar Degas tinha um interesse “apaixonado” pelo desenho e era grande admirador da obra de Jean-Auguste Dominique Ingres, artista que se manteve sempre fiel à pintura acadêmica.

Degas não aderiu ao costume dos impressionistas de pintar ao ar livre. Preferia o espaço interno de seu ateliê ou as salas de aulas de balé, cujas bailarinas aparecem em muitos de seus quadros. Ele ia aos ensaios de dança para ver os corpos em movimento, que desenhava e pintava. “Via as bailarinas dançando ou repousando, e estudava o intrincado escorço e o efeito da iluminação de cena modelar a forma humana”, aponta Gombrich. Diversos desses esboços foram feitos à pastel. Mas nessas observações das bailarinas ele se comportava como seus amigos impressionistas e pintores de plein air: lhe interessava, mais do que a beleza da bailarina, os jogos de luz e sombra, as formas dos movimentos, as relações espaciais.

A maior parte de suas obras, desde que se busca classificar os pintores dentro de algum movimento, é incluída dentro do movimento impressionista, mesmo que, como vimos antes, ele não era exatamente um deles, porque as principais características do Impressionismo não são aplicáveis a Degas, que pintava dentro de seu ateliê, muitas vezes de memória. O fato dele ser incluído entre os impressionistas seria muito mais pelo fato de que, assim como aqueles, ele também não seguia as regras da Academia Francesa. Muita discussão e debate já aconteceu em torno da obra de Edgar Degas por diversos historiadores da arte, uma vez que seu trabalho como artista não podia ser classificado como impressionista em sua totalidade.


A bebedora de absinto, Degas
Edgar Degas, filho de uma família rica, era o grande burguês do bairro de Montmartre, tradicional reduto de artistas, em sua maioria pobres. Seu pai era banqueiro, e ele cresceu dentro do meio burguês, numa rua próxima do Jardim de Luxemburgo, bairro nobre de Paris. Como parte de sua formação, cursou a faculdade de Direito, por exigência paterna. Mas Degas já se interessava muito por Desenho e começou a frequentar o Gabinete das Estampas da Biblioteca Nacional, onde copiava incansavelmente as obras de Albrecht Dürer, Andrea Mantegna, Paul Veronèse, Francisco Goya e Rembrandt.

Além disso passava as tardes no museu do Louvre onde, com o tempo e sua evolução como artista, foi admitido como pintor copista, uma prática que ainda hoje se mantém. Ele admirava os pintores italianos, franceses e holandeses. Foi aluno, entre outros, de Louis Lamothe, que tinha estudado pintura com Ingres. O pai de Degas, homem culto e amante das artes, mas também bom comerciante, apresenta ao filho alguns dos maiores colecionadores de arte de seu tempo.


A partir de 1855 ele frequenta as aulas da Escola de Belas Artes de Paris, mas com a ideia de se aproximar da obra dos grandes mestres do passado, como Luca Signorelli, Sandro Botticelli e Rafael. Por causa desse interesse, Degas viajou várias vezes à Itália entre 1856 e 1860. Foi em Florença que ele conheceu e se tornou amigo de um outro pintor francês, Gustave Moreau, que foi um dos principais representantes da corrente simbolista na pintura francesa.

Em sua fase inicial, Degas fez diversas pinturas de inspiração neoclássica, além de ter pintado numerosos retratos de pessoas de sua família. Na guerra contra a Prússia de 1870, Degas se alista na infantaria. Entre 1874 e 1886 Degas participa das exposições dos impressionistas, empenhando-se pessoalmente na organização das mesmas. Seus contatos com outros pintores da mesma geração se estreitam, especialmente com Camille Pissarro.


As bailarinas, 1878, Degas
Edgar Degas era um frequentador ativo do bairro de Montmartre, participando de diversos círculos de amigos, de ateliês, de cafés literários e de encontros sociais organizados por outros artistas e intelectuais de sua época, reunindo-se na casa da família Manet, na da pintora Berthe Morisot e na do poeta Stephane Mallarmé. À frente de outros burgueses como ele, seus amigos íntimos, ele levava uma vida celibatária e algo arrogante. No que dizia respeito aos princípios aprendidos em sua família de origem, era intransigente, e em muitas querelas batia de frente com os amigos. Tinha uma personalidade difícil, humor mordaz, agressivo, o que afastava as pessoas de seu convívio. Mas participava ativamente das discussões que aconteciam no café Guerbois, entre artistas jovens e seu amigo Edouard Manet, cujo ateliê ficava perto, no bairro de Montmartre.

Desde 1875, a pintura foi para ele sua fonte de renda, quando ele começou a ter dificuldades financeiras. Sua família tinha entrado em falência após a morte de seu pai. De 1880 em diante, ele passa a usar mais o pastel em sua pintura, algumas vezes usando junto também tinta guache e aquarela. As telas dessa época são bastante modernas no sentido de dar maior expressão às cores. No final dos anos 1890, Degas, já quase cego, se dedica cada vez mais à escultura. Sua única exposição individual aconteceu em 1892, quando ele apresentou 26 telas com paisagens.


De 1905 em diante, cada vez mais amargurado pela cegueira que lhe acometeu, Edgar Degas se isola ainda mais dentro de seu ateliê. Morreu em setembro de 1917, com 83 anos de idade, acometido de um aneurisma cerebral. Seu corpo foi sepultado na tumba da família no cemitério de Montmartre. No ano seguinte, todas as obras acumuladas em anos de trabalho, que ele guardava em seu ateliê, foram vendidas em leilão, assim como sua importante coleção de obras de arte que ele tinha adquirido de outros artistas. Dessa coleção, dedicada especialmente à arte francesa do século XIX, se destacavam obras de Ingres e Delacroix, dois mestres por quem Degas tinha grande admiração não só por sua técnica mas também pela cultura artística que eles possuíam.




A pequena bailarina de 14 anos,
Degas, acervo do Masp
Ingres influenciou profundamente o jovem Degas. Ele tinha 21 anos de idade quando conheceu o mestre em seu ateliê. Em seguida, passou a copiar apaixonadamente as obras apresentadas em uma exposição retrospectiva consagrada a Ingres. O primeiro autorretrato de Degas faz referência clara ao que Ingres fez em 1804, como se pode ver neste post. O próprio Ingres lhe teria sugerido que desenhasse, que desenhasse muito, e ele seria um bom artista. Degas estava sempre com um porta-lápis à mão. Até o fim de sua vida, Degas mantinha o costume de fazer desenhos preparatórios e esboços para seus trabalhos. Praticava inclusive desenho de modelo vivo, a vida toda. Sempre respeitando o que lhe havia sugerido o grande mestre Ingres.

Em relação a Eugène Delacroix, Degas também era um admirador de sua pintura, chegando a fazer uma cópia do quadro de Delacroix “Entrada dos cruzados em Constantinopla”. Em 1889, viajou a Tanger, seguindo os passos do pintor Delacroix, que era apaixonado pela cultura do norte da África.


Um de seus inúmeros esboços
As bailarinas azuis, 1899, Edgar Degas
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Serviço:

“Degas: Poesia geral da ação. As esculturas – Coleção MASP”
De 10 de novembro de 2012 a janeiro de 2013
Museu Oscar Niemeyer
Curitiba - Paraná

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Paris: Impressionismo e Modernidade

Claude Monet: La Gare Saint-Lazare, 1877, óleo sobre tela, Museu d'Orsay, Paris

A partir do dia 4 de agosto o Centro Cultural Banco do Brasil – CCBB – inaugura em São Paulo uma grande exposição com 87 obras de pintores impressionistas franceses, pertencentes ao Museu d’Orsay de Paris.
O CCBB, no texto apresentativo da mostra, afirma que esta será a primeira de muitas outras grandes exposições que a entidade cultural trará para o Brasil. E foi anunciada uma grande notícia para a vida cultural de São Paulo: em 2015 será inaugurado um grande centro cultural no local aonde funcionou durante décadas o Hospital Matarazzo, perto da Avenida Paulista, entre a rua Itapeva, Pamplona, Rio Claro e São Carlos do Pinhal. O projeto é do designer francês Phillipe Starck. O projeto deve abrigar um grande teatro, salas de cinema e espaços para exposições.
O Brasil começa agora a se tornar também um polo de atração para grandes exposições. Duas grandes mostras de arte que ocorreram aqui, trazidas pelo CCBB, colocaram o Brasil no ranking das exposições com maior público do mundo, pela revista The Art Newspaper: a de Escher, em 2011, com 381 mil visitas e a mais recente, sobre a Índia, com cerca de 400 mil visitantes.
A exposição "Paris: Impressionismo e Modernidade" pretende trazer para cá obras históricas importantes, entre outras: "La Gare Saint-Lazare" (1877) e "La Gare d’Argenteuil" (1872), de Claude Monet, o mesmo que pintou o primeiro quadro dito “impressionista” da história da arte.
Paul Gauguin: Les maules jaunes, 1889, óleo sobre tela
A exposição será organizada em seis módulos, apresentando aqueles pintores que permaneceram vivendo na cidade, especialmente em Paris, ou aqueles que resolveram ir viver no campo. Virão, entre outros: Édouard Manet, Paul Gauguin, Vincent Van Gogh, Édouard Vuillard, Auguste Renoir, Edgard Degas, Henri de Toulouse-Lautrec, Giovanni Boldini, James Tissot, Claude Monet, Camille Pissarro, Pierre Bonnard, Paul Sérusier, Georges Seurat e Édouard Vuillard, além de Gustave Courbet, o pintor que inaugurou o Realismo nas artes.
Claude Monet: O tocador de pífano, 1866, 160x97 cm
óleo sobre tela
A tela O Tocador de Pífano (Le fifre), de Manet, será uma das grandes atrações da exposição. Essa pintura foi recusada no Salão Oficial de Paris, ainda sob a dominação do estilo neoclássico. Ela apresenta um menino humilde, dando a ele a importância que os membros da Academia oficial de Paris não aceitavam. O menino, um pouco manco, está tocando uma flauta de pífano e vestido com o uniforme dos filhos dos oficiais das tropas da Guarda Imperial de Napoleão III. As calças vermelhas com listras pretas, jaqueta preta com botões dourados, a faixa branca e o boné são característicos dos soldados. Considerando este tema comum, o júri do Salão oficial criticou o fato de Manet ter dado um formato grande como se ela fosse uma pintura histórica, e por ter feito o retrato de uma criança desconhecida, como se fosse de alguém famoso. Percebe-se, nesta tela que estará aqui no Brasil, a admiração que Manet tinha pela pintura dos mestres antigos, em especial, Diego Velázquez. O quadro é inspirado nos retratos de grande comprimento do pintor espanhol, como o de Pablo deValladolid, por exemplo, os dois contra um fundo neutro. O escritor Émile Zola escreveu um grande ensaio em defesa desse quadro.
Abaixo, a íntegra do texto disponibilizado no Portal do Museu d’Orsay, sobre a exposição:
Enquanto a velha Paris se apaga sob a influência do barão Haussmann, os pintores Jongkind e Lépine, Manet e Degas, Monet e Renoir, Pissarro e Gauguin, apaixonam-se pela cidade e pela sua vida frenética. Novos temas surgem para os artistas, com boulevards, ruas e pontes animados por um movimento incessante, jardins públicos, vibrantes mercados cobertos e a céu aberto, retraçados sob o céu cinza, bem como grandes lojas e vitrines, iluminadas a gás ou eletricidade, estações de trem, cafés, teatros e circos, corridas, sem falar dos bailes e noitadas mundanas...
Através destes lugares, os artistas pintam igualmente todas as camadas da sociedade: austeras famílias burguesas na obra de Fantin-Latour, burguesia mais elegante e frequentadora dos lugares da moda, moças da fina sociedade tocando piano em Renoir, prostitutas que rodam a bolsinha e sobre as quais artistas como Degas, Toulouse-Lautrec ou Steinlen lançam um olhar livre de qualquer julgamento moral e até empático, como em Toulouse-Lautrec.
Entretanto, a atração pela natureza e o desejo de fugir da cidade também se manifestam de modo imperativo... São os mesmos artistas que se voltam para os temas mais “naturais” das cercanias de Paris (Monet, Bazile, Renoir, Sisley para Fontainebleau, Monet para Argenteuil, Pissarro para Pontoise…). A busca por novas aventuras picturais conduz ao refúgio na região do Midi (Van Gogh, Gauguin e Cézanne) ou na Bretanha (Gauguin, Bernard), ao passo que os artistas do movimento Nabi privilegiam a intimidade de universos interiores.
Comissária: Caroline Mathieu, curadora chefe do Museu de Orsay

terça-feira, 7 de junho de 2011

O pintor Paul Gauguin amou a luz na Baía de Guanabara...*

“É extraordinário conseguir tanto mistério
em tanta luminosidade”
(Stephane Mallarmé sobre seu amigo Gauguin)

O pintor Paul Gauguin
Num dia como hoje, 7 de junho, há 163 anos atrás, nascia o pintor Paul Gauguin, um dos grandes nomes da pintura francesa do século XIX, que foi homenageado no final do ano passado com uma exposição no museu Tate Modern de Londres.

Eugène Henri Paul Gauguin nasceu em Paris, em 7 de junho de 1848. Era filho de um jornalista republicano e da peruana Aline Chazal que, segundo certos autores, seria neta de Simon Bolívar. Sua avó materna, Flora Tristán, foi uma ativista feminista e socialista no Perú. Gauguin passou os primeiros anos de sua infância em Lima, só voltando à França com sete anos de idade.

Em sua juventude, Gauguin embarcou na Marinha Mercante e em seguida na Marinha Francesa, passando seis anos navegando pelos mares do mundo, passando inclusive pelo Brasil, pelo Rio de Janeiro. Voltando à Paris em 1870, vai trabalhar na Bolsa de Valores e três anos depois casa-se com uma moça dinamarquesa – Mette Sophie Gad – com quem teve cinco filhos: Émile, Aline, Clovis, Jean-René et Paul-Rollon.

Em 1874, conhece o pintor Camille Pissarro e vê a primeira exposição dos pintores impressionistas. Gauguin se apaixona cada vez mais por pintura e começa a pintar ele também. A convite de Pissarro e Edgar Degas, participou da quarta exposição dos Impressionistas. 

Em 1883, quando ele já tinha participado de mais três exposições impressionistas, a Bolsa de Valores de Paris sofre uma grande queda e ele perde o emprego. 

Visão após o sermão - A luta de Jacó com o Anjo, 1888,
73x93cm, National Gallery of Scotland,
Edimburgo, Grã Bretanha
Gauguin decide se dedicar totalmente à pintura, e se estabelece em Rouen, onde Pissarro morava. Durante esses dez meses em Rouen, Gauguin pintou 40 telas, inspirando-se nas ruas e arredores da cidadezinha. Mas não conseguia vender o suficiente para sustentar sua família. Empobrecidos, mudam-se para Copenhagen, onde vivia a família de sua esposa. Os conflitos com a família dela não demoram a tornar sua vida insuportável. Gauguin decide ir embora para Paris, levando consigo o filho Clovis.

Entre junho de 1885 e meados de 1886 ele aceitava qualquer trabalho em Paris, para sobreviver. Mas continuava pintando, e participou da última exposição dos impressionistas em 1886. Em julho desse ano, deixa o filho Clovis numa pensão e segue para a Bretanha, onde pinta intensamente. Em abril de 1877, sua esposa Mette vai a Paris buscar o pequeno Clovis e pegar algumas pinturas de Gauguin que pudesse vendê-las para ajudar no sustento dos filhos.

No mesmo mês, Gauguin embarca junto com o pintor Charles Laval (1861-1894) em direção ao Panamá, onde eles vão trabalhar na escavação do famoso Canal do Panamá. Numa carta à esposa, ele diz que estava fugindo de Paris porque “é um deserto para os pobres. Meu nome como artista se torna cada dia mais importante, mas, enquanto espero, passo até três dias sem comer”.

Mas no Panamá, não foi muito diferente. As condições de vida lá eram terríveis e assim que reúnem um pouco de dinheiro, Gauguin e Laval vão para a Martinica, lugar por onde Gauguin já havia passado, quando trabalhou como marinheiro. 

Mulheres do Taiti, 1891, óleo sobre tela, 69x91cm,
Musée d'Orsay, Paris,França
Também lá ele e Charles Laval viveram em condições bem precárias, de junho a outubro de 1887. Mas Gauguin se apaixonou pela luz e pelas paisagens da Martinica, pintando 12 telas. Doentes de disenteria e malária, resolvem voltar à França, em novembro do mesmo ano, quando Gauguin encontra pela primeira vez o pintor Vincent Van Gogh. 

No começo de 1888, ele se aproxima de um grupo de pintores experimentais conhecidos como a Escola de Pont-Aven. Gauguin já pintava de forma mais sintética do que antes. A arte indígena o inspirava, assim como os vitrais das igrejas medievais e as estampas japonesas. Nesse mesmo ano, pinta  “Visão após o sermão: a luta de Jacó com o Anjo”, uma pintura que vai influenciar Pablo Picasso, Henri Matisse e Edvard Munch.

De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos?,
1897-1898, óleo sobre tela, 139 x 374,5 cm,
Museum of Fine Arts, Boston, EUA
Ele aceita o convite de Van Gogh, e vai morar dois meses com ele em Arles, no sul da França. Os dois passam o tempo pintando, muitas vezes o mesmo tema, ou pintando um ao outro. Só que eles eram de temperamento muito diferente e tinham frequentes brigas. Gauguin resolve ir embora, depois de uma briga em que Van Gogh tentou agredi-lo com uma lâmina de barbear. Van Gogh corta a própria orelha.

Em 1891, Gauguin parte para a Polinésia, após vender algumas obras. Se instala no Taiti, onde ele encontra um meio de fugir da civilização ocidental e de toda sua artificialidade. Ele mesmo se definia “um selvagem”. Gauguin passa o resto de sua vida nessas regiões tropicais e só volta à França uma única vez. Influenciado pela natureza polinésia, sua pintura ganha nova força e ele faz algumas esculturas. No Taiti, pinta um de seus mais famosos quadros: “D'où venons-nous ? Que sommes-nous ? Où allons-nous?" (De onde viemos ? Quem somos ? Para onde vamos ?).

O espírito da morte espreita, 1892, óleo sobre tela, 72,4x82,4 cm,
Albright-Knox Art Gallery, Buffalo, New York, EUA
Conhece Téhura, uma jovem adolescente que se tornou sua modelo e companheira. Em poucos meses, pinta cerca de 70 telas. Ao saber da morte de sua filha Aline, fica profundamente abalado. Sofre com uma ferida na perna que não cicatriza, está doente de sífilis e, deprimido, tenta se matar. Decide se mudar para as Ilhas Marquesas, em setembro de 1901. 

Só que Gauguin levava consigo a fama de seus artigos combativos em favor da gente nativa que ele havia publicado no jornal Les Guêpes. Tinha uma postura ideológica dura em relação à Igreja, ao governador e à polícia local, saindo em defesa do povo do arquipélago das Marquesas, assim como já tinha se posicionado na Polinésia em favor dos indígenas. Trazia em seu sangue a tradição da avó peruana socialista. Em abril de 1903 foi condenado a três meses de prisão, mas morreu antes, em 8 de maio, pobre e doente.

Auto-retrato com chapéu, 1893-94, óleo sobre tela,
46x38cm, Musée d'Orsay, Paris, França
Após sua morte, os amigos fizeram uma verdadeira campanha de valorização de sua obra.
Gauguin, mais do que tudo, expôs em suas telas a luminosidade das terras por onde passou, desde os primeiros anos de vida no Peru, incluindo suas viagens de navio, quando passou pelo Brasil e “amou a luz da baia de Guanabara”. 

Com uma pintura muito característica sua, Gauguin pintou as peles morenas dos moradores da Polinésia e do arquipélago das Marquesas, as peles morenas que tanto o tinham encantado em suas viagens pelo mundo. Sua pintura colorida, iluminada de sol, carregada de histórias de culturas tão diferentes da sua cultura original francesa, mostra um homem sensível à beleza dos recantos longínquos, dos cantos distantes dos salões burgueses da França.






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* Trecho da música O Estrangeiro, de Caetano Velloso