Há um costume entre as
pessoas mais velhas de qualquer período histórico: um olhar para seu passado
com certa melancolia, contaminada pelo sentimento de que “naquele tempo, sim, as
coisas andavam melhores no mundo”...
Mas vamos e venhamos,
vivemos num momento histórico privilegiado, por tantos desafios lançados às
mentes humanas nestes tempos nebulosos. Há que se estar atento a cada
movimento, quando nos encontramos em meio ao nevoeiro: um pode nos salvar;
outro pode ser o fim. E as sereias cantam docemente, enganando até mesmo velhos
marinheiros.
Tempo rico, tempo são.
Tempo louco.
O mundo anda mal. Crise
econômica generalizada atingindo principalmente os países ricos, como os EUA,
onde hoje mais de 46 milhões de pessoas vivem na margem da pobreza. Em Nova
Iorque de cada cinco, uma pessoa está nessa situação! Fora os cerca de um
bilhão de seres humanos no planeta que ainda passam fome em pleno século XXI!
O mundo anda mal também
nos aspectos, digamos, mais subjetivos. De uma subjetividade estranha, porque,
de tão pesada, atinge a todos nós em pleno fígado. Todos nós??? De quem se
trata esse “nós”? “Ele inclui bispos e gerentes de banco?” pergunta Terry Eagleton
em seu livro As ilusões do
pós-modernismo. Não, porque neste mundo de seres iguais uns são “mais
iguais” do que os outros. Esses “mais iguais” são os promotores desse festival
de estupidezes a que assistimos, que nós podemos intitular de “o mais novo
pensamento dos novos capitalistas neoliberais e pós-modernos”:
- foi decretado que o
sonho humano que animava milhões de pessoas pelo mundo não é mais possível: o
Socialismo acabou;
|
Auto-retrato, de Egon Schiele |
- foi instaurado o reino
do individualismo e agora é o salve-se quem puder, cada um por si, deus contra
todos;
- foi instalado o reino
do Instantâneo, do Superficial, do Efêmero – contemporâneo do macarrão que se
cozinha em 3 minutos e se come em um;
- foi decretada que a
Quantidade (de dinheiro, de prazer, de consumo, etc) se sobrepõe à qualidade;
- está deliberado que a
Aparência é um valor em si mesmo e que a Visualidade reina sobre qualquer
conteúdo. Com isso procure-se qualquer clínica de estética e se re-estetize a
você mesmo;
- foi decidido que a
Globalização tem predominância sobre as regionalidades e as nacionalidades;
- foi deliberado que o
indivíduo narcísico tem mais valor do que qualquer grupo ou coletividade; que
do alto do seu posto, o Eu individual NADA PODE fazer para mudar o mundo e
reinventar outra ordem social, porque “a história acabou”;
- foi decretado que a
mídia é o grande porta voz dos discursos desconstrutores e reconstrutores do
mundo, em afinidade com as ideias pós-modernas;
- está deliberado que a
Arte Contemporânea continuará sendo a repetição de fórmulas que já duram cem
anos, mas que são congruentes com esse espírito que de tão moderno chega a ser
pós-moderno, em seus discursos sem sentido.
Porque está decretado
que nenhum discurso mais precisa ter sentido, a linguagem está livre para-o-que-der-e-vier
e qualquer um pode dizer o que quiser, na língua que desejar, porque TUDO o que
importa é a expressão de qualquer discurso.
E também decretou-se que
a Arte morreu. Depois re-decretou-se que tudo é arte, incluindo as secreções do
corpo humano... Depois decreta-se que arte é discurso e que basta uma boa ideia
e um bom curador para que qualquer coisa alcance o status de arte. Mas tem um
detalhe importante: quem decide o que é Arte hoje é uma entidade denominada
Mercado, porque tudo o que o homem produz nos dias de hoje só tem existência se
se transformar na simbologia capitalista que produza mais-valia.
Os mais velhos podem ter
alguma razão. Até há poucas décadas atrás (duas, no máximo) o mundo era mais
simples: havia o sonho socialista, de um lado, e os que reagiam contra a ideia
de que o capitalismo não era o melhor dos mundos: os reacionários.
Mas o capitalismo não é
o melhor dos mundos: basta olhar para as ruas ocupadas por multidões sem rumo, engarrafadas,
se movimentando em seus automóveis em direção... ao que mesmo? Depende. Pode
ser até o shopping center ali da esquina!
|
Moça gorda, de Lucien Freud |
Mas para “re-significar”
(eles adoram essas expressões) o pobre coitado que está ali na luta pela
sobrevivência, basta algumas horas de reconstrução da sua figura, enfumaçada
pelo status quo:
- disponibilize-se salas de musculação; cirurgia plástica;
lipoaspiração; rejuvenescimento; massagem; maquiagem definitiva; alisamento
permanente; botox; alongamento de pênis; depilação masculina e feminina;
vitaminas a, b, c do alfabeto inteiro disponíveis; cirurgias de redução do
estômago crescido de quem comeu todas as calorias estimuladas pelas indústrias
fornecedoras dos supermercados; drogas para dormir, ter tesão, turbinar o
cérebro; revistas que dariam inveja ao famoso Jack, estripador: pernas, braços,
barrigas-tanquinho, rostos esticados; bundas, coxas de gostosas e gostosos,
cabelos loiros e pretos alisados, mais loiros do que pretos; toda a
farmacologia disponível e pesquisada pela imensa indústria farmacêutica que promete
o aumento da expectativa de vida... ufa! Para viver dez anos a mais nesse
inferno?
Distante da ideia do
coletivo, o indivíduo lançado ao seu mundinho umbilical pensa que, finalmente,
no reino do “eu” ele vive no melhor dos mundos: pois “O Diabo o levou a um lugar
alto e mostrou-lhe num relance todos os reinos do mundo. E lhe disse: Eu te
darei tudo isto e tudo será teu, se prostrado me adorares!” Diz o espírito do
mundo capitalista a quem quiser ouvir...
|
Primeiros dias da primavera, de Salvador Dali |
Mas há uma saída. E ela
é coletiva.
Há que se voltar mais
uma vez para o Real, para o mundo, para a história, para o homem. “A
Modernidade acreditava na história”, diz o poeta Affonso Romano, mas a
pós-modernidade é essa ausência de qualquer celebração utópica. O mundo se
transformou num grande mercado, ele acrescenta. Os movimentos transformadores
do mundo são hoje desmoralizados e desmerecidos. Hoje não se incentiva o
agrupamento, a coletividade. A noção de História se encontra confusa, assim
como a noção de realidade objetiva tornou-se “suspeita”. O nevoeiro se espalhou
por toda parte.
E alcançou até a arte. De tão nebulosa, ela nem precisa ser vista, basta crer, basta ter fé na intenção do artista e pronto. A Arte existe, se é discurso.
Mas, no entanto a Terra se
move, como disse Galileu Galilei lá pelos idos de 1615...
E a nós, nos resta
engendrar a subversão que porá tudo de pernas pro ar, “quando o tempo for
propício”...
(Trecho de oração ao Tempo, Caetano
Velloso)