terça-feira, 15 de novembro de 2011

Cecilia Beaux



Pintura de 1887
Nesta semana tomei, como um exercício de pintura com pastel, uma obra da artista norte-americana do século XIX, Cecilia Beaux (esta imagem ao lado). Enquanto fazia o estudo no atelier, um amigo me perguntou se o fato de quase não termos mulheres pintoras de destaque no mundo, não me incomodava. Incomoda, sim, pela injusta discriminação sofrida pela mulher durante séculos, através da história. Pouco se sabe sobre grandes pintoras e artistas. Sabemos de holandesas, alemãs, italianas, francesas, norte-americanas, mexicanas, portuguesas, brasileiras. Mas sempre nas sombras dos mestres do sexo masculino. Felizmente desde o começo do século XX, essa situação começa a trazer alguma mudança.
Fui ver quem exatamente era esta quase desconhecida artista, apesar do alto nível da sua obra, muito parecida com a pintura de John Singer Sargent, contemporâneo dela. Fui saber um pouco de sua história.

Cecilia Beaux
Cecília Beaux  nasceu em 1º de maio de 1855, na Filadélfia, EUA. Era a filha mais nova de um comerciante de seda de origem francesa, Jean Adolphe Beaux.  Sua mãe, Cecilia Kent Leavitt, morreu 12 dias após dar à luz a Cecilia, aos 33 anos de idade. Ela e sua irmã foram criadas pela avó materna e tios, porque seu pai, incapaz de suportar a tristeza da perda da mulher, voltou para a França. Durante 16 anos, ele fez apenas uma visita às filhas em Filadélfia.
As irmãs foram educadas pela avó e pela tia Emily e seu marido, William Foster Biddle. Cecilia dizia que depois de sua avó, seu tio foi a influência mais forte e mais benéfica que ela poderia ter tido. Dele recebeu inclusive apoio financeiro, especialmente nos dias difíceis das Guerras de Secessão.
Em sua adolescência, na companhia do tio Willie, ela pode ir, pela primeira vez, a uma exposição de arte importante, na Academia de Belas Artes da Pensilvânia. Ela já desenhava, como ela descreveu, de uma forma realista e um “pouco perfeccionista”. Na escola, ela estudava Francês e História Natural. Mas não tinha recursos para pagar a taxa extra para as aulas de arte. Só aos 16 anos, começou a ter aulas no atelier de um artista. Em seguida, estudou durante dois anos com o pintor Francis Adolf Van der Wielen, que ensinava perspectiva e desenho de anatomia. Mas a ela, por ser mulher, não era permitido o estudo da anatomia humana, nem podia assistir às aulas de desenho com modelos vivos (modelos que muitas vezes eram prostitutas).

Cabeça de mulher
Aos 18 anos, Cecilia Beaux foi nomeada professora substituta de desenho na Escola Miss Sanford, substituindo outro professor. Ela também deu aulas particulares de arte, enquanto produzia arte decorativa e retratos de pequeno porte. Seus próprios estudos foram, em sua maioria, feitos por ela mesma, sozinha. Foi assim que ela fez sua primeira litogravura e se tornou ilustradora científica, criando desenhos de fósseis. Nesta fase, ela ainda não se considerava uma artista.
Beaux frequentou a Academia de Belas Artes da Pensilvânia, em 1876. Depois teve aulas com William Sartain, um artista de Nova York. Na sequência, montou seu próprio atelier, que compartilhava com um grupo de artistas mulheres. Com o tempo, ela passou a receber encomendas de retratos e já recebia dinheiro por eles.
Aos 32 anos, apesar do seu sucesso na Filadélfia, ela decidiu que ainda precisava avançar em suas habilidades técnicas. E partiu para Paris. Lá, ela estudou na Académie Julian, a maior escola de arte de Paris, assim como na Académie Colarossi. Recebeu críticas de dois mestres já consagrados, como Tony Robert-Fleury e William-Adolphe Bouguereau. Ela escreveu que Fleury era mais duro do que Bouguereau, mas disse que “faremos tudo que pudermos para ajudá-la”. Ao que Cecilia disse que aceitava, pois “esses homens me conhecem e reconhecem que eu posso fazer alguma coisa.” Vale ressaltar que após 1860, diversos pintores e pintoras norte-americanos se dirigiram para Paris, com a intenção de estudar. Lá, eles viveram de perto os intensos debates entre os pintores impressionistas e os mais ligados ao neoclassicismo. Assim como as novidades estéticas e filosóficas da Arte Realista de Gustave Courbet. Isso influenciou muito a pintura norte-americana. Mary Cassat, por exemplo, foi bastante influenciada pelos impressionistas.

Retrato de James Murdock Clark Jr
Quando Cecilia chegou a Paris, os impressionistas já eram conhecidos e recebiam severas críticas dos pintores clássicos. Eram eles: Degas, Monet, Sisley, Caillebotte, Pissarro, Renoir  e, uma mulher, Berthe Morisot. No verão de 1888, ela tentou aplicar as técnicas plein-air da pintura impressionista, mas não se saiu bem. Ao contrário de Mary Cassatt, outra artista norte-americana que havia chegado 15 anos antes dela e que tinha absorvido o temperamento artístico dos impressionistas, Cecilia Beaux era demais precisa e verdadeira. Continuou a ser uma pintora realista até o fim da vida.
Ela admirava artistas clássicos como Ticiano e Rembrandt e sua formação europeia influenciou sua paleta. Ela adotou uma coloração mais branca e pálida em sua pintura a óleo, retratando particularmente mulheres, numa abordagem que também era a mesma de John Singer Sargent.
De volta aos EUA em 1889, Cecilia começou a pintar retratos de pessoas de sua família, assim como fazia retratos por encomenda. Já havia tomado a decisão de se dedicar exclusivamente à arte, e, com isso, também achava que era melhor não se casar. Quando tinha namorados, tinha o cuidado de se envolver somente com homens que não ameaçassem sua carreira. Ela mantinha uma rotina de trabalho disciplinado. Os cinco anos que se seguiram foram altamente produtivos, resultando em mais de quarenta retratos.

Mulher com o gato, 1895
Começou a expor em Salões de Arte nos EUA e na França, recebendo vários prêmios por seu trabalho. Em 1895, Cecilia Beaux se tornou a primeira mulher a ensinar regularmente na Academia de Belas Artes da Pensilvânia, onde ela deu aulas de retrato, de desenho e pintura, durante os próximos 20 anos de sua vida.
Cecilia Beaux, que não podia fazer desenhos de modelo vivo quando era aluna, recebeu um elogio digno de trazer orgulho às mulheres. Em 1896, quando regressou à França para uma exposição de seus quadros no Salon de Paris, ouviu de um influente crítico francês, Henri Rochefort, que ele era obrigado a admitir “não sem algum desgosto” que poucos homens eram bons o suficiente para competir com “a senhora que nos deu este ano o retrato do Dr. Grier”…
Em 1910, com 55 anos de idade, Beaux era altamente produtiva. Em cinco anos, ela pintou quase 25 por cento de toda sua obra, e recebia, em vida, cada vez mais reconhecimento. Apesar de sua produção contínua e dos elogios, no entanto, ela estava trabalhando contra a corrente e os gostos e tendências que surgiam na arte. O famoso “Armory Show” de 1913 em Nova York foi uma apresentação histórica de 1.200 obras do modernismo que começava a dar seus primeiros passos.

Em 1924, numa caminhada em Paris, ela caiu e quebrou o quadril, acidente do qual ela jamais se recuperou completamente. Sua produção diminuiu. Em 1930, publicou uma autobiografia. No mesmo ano, foi eleita membro do Instituto Nacional de Artes e Letras. Em 1933 chegou a membro da Academia Americana de Artes e Letras, que dois anos depois organizou uma exposição que foi a primeira grande retrospectiva do trabalho de Cecilia Beaux.
Embora hoje ofuscada por Mary Cassatt, pintora norte-americana mais conhecida, ela foi altamente considerada em seu tempo. Ao entregar a ela uma Medalha de Ouro ofertada pelo Instituto Carnegie, em 1899, William Merritt Chase declarou: “Miss Beaux não é só a maior pintora mulher que vive, mas a melhor que já existiu. Cecilia Beaux fez acabar inteiramente com a diferença  de gênero na arte".
Ela morreu com a idade de 87 anos, no dia 7 de setembro de 1942.


Homem com o gato

Neste video abaixo, podem ser vistas diversas outras pinturas de Cecilia Beaux:


sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Pão e Rosas para Todos




A galeria de exposições da Caixa Cultural, localizada na avenida Paulista em São Paulo, apresenta uma exposição com parte da obra gráfica do artista plástico brasileiro Carlos Scliar. A mostra iniciou no dia 9 de novembro e vai até o dia 8 de janeiro de 2012.


Auto-retrato com roupão listrado
Guache encerado / 54 x 40 cm
Paris, 1949 / coleção Michel Loeb
Essa exposição, bastante sintética, evidencia algo da atuação política e social desse artista gaúcho nascido em 1920. São algumas serigrafias, alguns desenhos que ele fez no período da II Guerra Mundial, na Itália; gravuras com temas gaúchos; telhados de casas de Ouro Preto; litografias, ilustrações, etc. São quase 100 obras que dão uma idéia do peso desse artista na arte moderna brasileira.


Carlos Scliar nasceu no dia 21 de junho de 1920 em Santa Maria da Boca do Monte, no Rio Grande do Sul. Foi desenhista, pintor, gravador, ilustrador, cenógrafo, roteirista e designer gráfico. Ao longo da vida, participou de muitas exposições no Brasil e no exterior. Como sempre preocupado com as questões sociais do povo brasileiro, filiou-se ao Partido Comunista do Brasil e foi ativo militante de esquerda. Produziu cartazes, ilustrou livros e revistas com temática política e social.


Scliar sempre buscava inovar no uso dos materiais: fez gravuras, serigrafias, óleo, têmpera, guache, acrílica. Fez pinturas, ilustrações, murais. Foi um artista das artes gráficas também, fazendo capas de livros e revistas, ilustrações.


Carlos Scliar em sua primeira exposição,
antes de ir para a Guerra em 1944
Sua primeira participação em exposições foi em Porto Alegre, em 1935, na Exposição do centenário Farroupilha. Em 1938 participou da Fundação da Associação Riograndense de Artes Plásticas Francisco Lisboa, que questionava os cânones da arte acadêmica e neoclássica que ainda influenciava a pintura brasileira, com origens na Europa. Em 1940 mudou-se para São Paulo e juntou-se aos artistas paulistas do Grupo Santa Helena e da Família Artística Paulista. Mas em 1944, convocado pela Força Expedicionária Brasileira, foi para a Itália, como soldado. Sua observação dos campos de batalha produziu desenhos onde ele retratou a si mesmo e aos outros soldados. Fez também croquis de casas e paisagens do norte da Itália. Uma parte desses desenhos está exposta na galeria da avenida Paulista.


Mas Carlos Scliar também participou ativamente de movimentos pela paz, inclusive em Paris, onde morou a partir de 1947. Inicialmente pensava em se instalar na capital francesa, mas logo percebeu que sua arte tinha uma profunda raiz na sua terra, o Brasil. Voltou para cá em 1950, indo primeiro para o Rio Grande do Sul, onde participou da criação do Clube de Gravura de Porto Alegre. Mas tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, sua atividade como artista foi intensa, inclusive nas artes gráficas. Fez ilustrações para romances de Jorge Amado, seu amigo, e para a peça “Orfeu da Conceição” de Vinícius de Moraes.


Desenho feito durante a guerra
na Itália
Depois de 1960 dedicou-se especialmente à pintura, realizando diversas exposições. Diz o texto do site do Instituto Carlos Scliar: “Os anos 60 fizeram aflorar um artista sensível, sintonizado com o seu povo e com o mundo em que vive. Sua formação humanista, o espaço cubista, a atmosfera metafísica de Morandi, o rigor do desenho perseguido nos clubes de gravura e uma espécie de sensibilidade "elliotiana"  a trabalhar com a noção do tempo de uma maneira dinâmica e questionadora, tudo isso foi formando, até o fim da vida, a personalidade do artista.”


Abaixo, alguns textos recolhidos no site do Instituto Cultural Carlos Scliar, que funciona em Cabo Frio, Rio de Janeiro, na mesma casa onde ele viveu até sua morte em 2001. Lá funciona uma espécie de casa-ateliê, onde crianças e adolescentes carentes têm aula de arte, artesanato e noções de marcenaria. Bem no espírito desse artista profundamente humano e envolvido com os problemas de seu tempo.


Os textos abaixo são de amigos, companheiros, camaradas, que falam desse artista de uma forma que pode nos dar uma ideia muito boa de quem era o artista e o homem Carlos Scliar.


Niemeyer, Scliar e Vinícius de Moraes
Oscar Niemeyer:


"Scliar é um querido amigo. Um companheiro dos velhos tempos do Café Amarelinho, do PCB, da luta política que sempre nos comoveu. E ele, como eu, a seguir os acontecimentos sem recuos, sem temores, consciente de que a miséria nos cerca e que ao lado dela, dos nossos irmãos mais pobres, devemos caminhar. Esse é o lado humano do nosso camarada. O outro, que o ocupou também inteiramente, é o de sua carreira, artista plástico, de pintor de talento, que hoje, passados tantos anos, é por todos admirado."


"É sempre bom falar dos amigos, e, quando se trata de um velho e querido companheiro como Carlos Scliar, é melhor ainda. Dizer como é importante este grande brasileiro, voltado para sua pintura a vida inteira, mantendo-a – tão vasta – dentro da unidade e no nível superior por todos procurados. E, principalmente, lembrar como se faz atuante e solidário diante desta miséria, deste mundo injusto em que vivemos."


Scliar e Jorge Amado
Jorge Amado:


“Já se passaram mais de quarenta anos do primeiro impacto sofrido por mim ao contemplar em São Paulo trabalhos de quem era então quase um menino, apenas um adolescente, recém-chegado do Rio Grande do Sul com telas e pincéis, uns olhos claros e ternos, o coração pleno de sonhos, um caráter já inflexível, o dom da amizade, o talento incomum. Eram uns quadros enormes, ambiciosos, ninguém poderia ficar indiferente ante tanta força, tamanha decisão, a vocação definitiva de um pintor que ali estava ainda em gestação, aquela presença que não podia deixar a mínima dúvida sobre o dia de amanhã. (...)
Humanismo, eis a palavra que resume o trabalho de Carlos Scliar, no qual a beleza se supera a cada pincelada."



Vinícius de Moraes:


"Para Scliar a vida conta em seus mínimos detalhes. Pode ele não ser talvez - por se tratar de artista notavelmente equilibrado - um participante desabrido, no sentido picasseano, pois em Scliar a coragem de viver é sempre amenizada por uma grande ternura por tudo o que existe. É difícil encontrar criatura menos egoísta. (...) Sua arte traduz um refinamento orgânico, fruto de sua evolução como homem; constitui uma síntese sem perda de substância. (...) Buscando extrair dos objetos (que são, ademais de criação do homem, seus melhores amigos) o máximo de sua essencialidade, Scliar revela de saída, para quem souber ver, toda a pureza de seu humanismo dialético, do seu intenso mas disciplinado amor pelo homem através do que o homem cria com suas próprias mãos. (...) Como se o pintor oferecesse ao homem, seu semelhante, certos segredos e nuanças de sua própria obra que este, sempre voltado para o prosaismo do seu cotidiano, não pudesse ou não soubesse mais ver.


Num meio artístico aloprado como o nosso, a coerência de Scliar como pintor é admirável. E a coisa linda também nesse poeta do objetivo é que o sucesso e a prosperidade em nada afetaram o seu angelismo, em nada comprometeram a sua inata disciplina e frugalidade. Eu, simplesmente, gosto de Scliar, isso é tão simples. E independente da grande admiração que tenho por ele."


Jaguar:


"Só respeito pintor que saiba desenhar. Picasso e Matisse eram desenhistas geniais. Dos vivos, o inglês David Hockney, pintor da minha predileção, é um desenhista excepcional. Portinari desenhava paca, Sagall também. Misturar cores para dar um efeito bonito é fácil, mas desenhar, eu diria, à maneira de Noel, é que é o X do problema. Essa volta toda foi para falar do Scliar, que sabia tudo de pintura e foi  embora no fim de abril."


Clarice Lispector:


"Nenhum pintor é obrigado a ser inteligente. Mas Carlos Scliar é, e muito. Ele diz, por exemplo, que se considera um homem rico de tudo o que os outros construíram para ele. E só espera poder retribuir (com arte). Uma frase que define Carlos Scliar é uma que ele me disse há anos: 'Gostaria que meus quadros incutissem esperança e força a todos.


A obra de Scliar oferece-nos, assim, uma tranqüila reedificação do mundo, um espetáculo de ordem, onde o visual tangencia um rigor quase matemático, um pré-modo de ser, uma espécie de assembléia-geral."

terça-feira, 8 de novembro de 2011

As resistências da Arte

Uma rua de Paris, entardecendo no outono de 2011 
Quando se anda pelas ruas com um pouco de atenção, observa-se que passamos, de vez em quando, em calçadas de galerias de arte. Paramos para observar através das vitrines; ou das portas abertas. Na maioria das vezes basta uma olhada de fora, da calçada mesmo, para ter um quadro dos quadros expostos ali. São pinturas de vários estilos; pinturas de paisagem, pinturas urbanas, cenas de gênero, figurativas, até mesmo abstratas. Pinturas para todos os gostos.


Há lugar para todos em Paris. Até para os pintores menores de Montmartre, que ganham sua vida pintando retratos de turistas na Place du Tertre, lugar onde, em 1790 foi instalada a primeira prefeitura da "Commune" de Montmartre. Todos os domingos à tarde eles montam seus cavaletes, suas telas e pincéis em plena praça e ficam ali, expondo seu trabalho aos milhares de turistas que visitam aquele bairro. São pinturas, desenhos, croquis de Paris. Mas os turistas também posam para eles, que cobram uns 30 euros por retrato feito à carvão, pastel ou grafite.


Galeria Roussard, Montmartre, Paris
Mas nas galerias de arte de Montmartre, como a Galérie Roussard (que existe desde 1945), podemos encontrar pinturas não só de artistas atuais, mas de artistas do passado, como Pierre Bonnard (1867-1947) ou do aquarelista Roger Bertin (1915-2003). Pinturas, pinturas, pinturas. É preciso ressaltar que a Pìntura continua em alta em Montmartre e no mundo todo, contra aqueles que apregoam que a pintura já morreu, e que o lance do momento - e da moda - é a já absurdamente cansativa arte conceitual...


Nos salões dos Museus, multidões se espremem, se esticam nas pontas dos pés para ver as obras de arte que marcam a nossa história e a nossa vida cultural. Se admiram diante de telas  pintadas por verdadeiros gênios da humanidade, homens e mulheres que alcançaram um tal domínio de seu ofício que nos fazem parar estáticos, e emocionados! Até hoje, séculos depois de pintada, uma tela de Rembrandt arranca lágrimas de olhos mais sensíveis! As filas em volta desses museus alcançam as ruas; filas para comprar os bilhetes de entrada, filas para entrar... E filas para andar dentro desses museus. Dá para sentir a ansiedade das pessoas à nossa volta; é quase possível ouvir, através do olhar que penetra numa pintura, as emoções que vão nas almas de muitos desses que vão a esses lugares ao encontro das Belas Artes.


Multidões em busca de ver Arte e, na Arte, a História




É assim em Paris, Madrid, Barcelona, Bruxelas, Berlim, Amsterdam, Haia, Londres... É assim até nos EUA. Mas não parece ser assim em São Paulo, onde o "conceito" tornado cânone, de origem uspiana e faapiana, domina a cena artística local e impõe suas regras. E sua homogeneidade artística pobre.


Capa do livro de Domecq. A
ilustração da capa representa aquele
que produz "arte contemporânea" e
diz: "Eu não sei o que eu faço"
Falando nisso, encontrei um livro num sebo às margens do rio Sena: o título "Artistes sans art?" (Artistas sem arte?) me chamou a atenção. O autor é Jean-Philippe Domecq, escritor e ensaísta, que também publicou recentemente um outro livro, o "Misère de l'Art" (Miséria da Arte). Mal comecei a ler o primeiro, já deu para perceber que ele se junta a um outro autor francês - Jean Clair, ex-diretor do Museu Picasso de Paris - para fazer um contraponto teórico ao domínio midiático da chamada "Arte Contemporânea". Domecq diz, numa entrevista a um site francês, que essa "arte contemporânea" é, na verdade, o sintoma de "uma crise narcísica única da nossa história cultural". Ele afirma que não tem nenhuma obrigação de cultuar mitos atuais como Andy Warhol, e menos ainda aqueles que especulam com a arte atual que são capazes de "vender até vento", sustentados por uma espécie de intelectual que ele chama de "escroque", porque comete todo tipo de "fraude intelectual". Domecq - corajoso como Jean Clair, e como Affonso Romano aqui no Brasil - se dispõe à uma briga com os postulantes do credo contemporâneo que, diz ele, fazem de tudo para interditar o debate intelectual a respeito do assunto, e divide maniqueistamente o mundo da arte em dois: os que amam Marcel Duchamp e Andy Warhol (entre outros) e "os outros": que eles chamam de "reacionários", de "conservadores" porque amam as Belas Artes; e que estão com essas multidões que insistem em ir ver pintura e escultura nos museus do mundo! Mas aqueles lá não fazem mesmo arte para essas multidões! Fazem arte para especular, a arte dos iniciados em seus conceitos...


Entrei no Museu Pompidou, o Museu de Arte Moderna de Paris. Fila gigante para ver a exposição do pintor Edward Munch. Era difícil ver os quadros nas salas repletas de gente. Mas vi, observei, anotei, fotografei. Saindo de lá fui ver as salas dedicadas ao século XX. Mais dezenas de pessoas se aglomerando em frente às pinturas de Picasso, Fernand Léger, Matisse, Cézanne, André Fougeron... Cheguei, após horas dentro do Museu Pompidou, às salas da "arte contemporânea": havia mais moscas sobrevoando os objetos em seus vôos rasantes, do que gente! A famosa "A Fonte" (uma delas, porque Marcel Duchamp espertamente fez várias cópias) estava entregue aos fantasmas conceituais... Ninguém parado frente a ela, admirando aquele penico milionário! E solitário.


Manchas pretas para quem quiser apreciar,
no Museu Pompidou. Mas não tinha ninguém
- naquele momento - apreciando...
As outras "obras" dessa ala mais pareciam as de um parque de diversão. Aliás, faz algum sentido: é divertido atravessar, mexer, brincar com alguma coisa daqueles objetos expostos como arte. Penduricalhos - como uma pá de Duchamp -, amebas coloridas, manchas pretas, repetições exaustivas de tentativas do passado (de Malevitch, por exemplo), roupas velhas manchadas incluindo uma calça pendurada num varal, metais retorcidos e colorizados fazendo o papel de esculturas, poemas sem sentido esticados ou colados na parede... E NINGUÉM... ninguém andava por aquelas salas, a não ser um, ou dois, ou três, que passavam rápidos por cada coisa daquela. E eu, que estava lá com a masoquista intenção de comprovar que há um vazio sem fim nessa "arte" mercadológica atual!


Mas vi - posso dizer - dezenas de pessoas em frente às pinturas dos museus que visitei, com seus cadernos de desenho à mão, estudando, desenhando, copiando, tentando entender como os grandes pintores trabalhavam. Também vi nas ruas de Paris aqueles tais artistas "conservadores" com seu material de trabalho, desenhando e pintando. E vi, dentro do Louvre, dois pintores com seus cavaletes, copiando telas. Uma delas, o "Pequeno Mendigo" de José de Ribera.


Também vi cerca de 40 pessoas desenhando e pintando, nas duas sessões de que participei no Atelier de la Grande Chaumière, fazendo estudos, com uma modelo posando em frente a nós. Nós, esses "atrasados" que gostamos de desenhar e pintar. Nós, esses "conservadores", que consideramos fundamental nos debruçar sobre quem estudou muito no passado e que nos traz o acúmulo de suas pesquisas individuais sobre Luz, sobre Cor, sobre a química dos materiais. Porque nós, esses "artistas atrasados" não buscamos reinventar a roda! E estamos bem distantes mesmo de inventar "conceitos" de rodas...


Porque tem - entre milhares de outros pelo mundo - o Atelier Vermeer, onde duas pintoras estudam e ensinam baseadas nas telas de quem realmente sabia o que fazia: Rembrandt, Vermeer, Caravaggio, Ticiano, Rubens, Velazquez, Delacroix, Ingres, Goya, Michelângelo, Da Vinci, Botticelli, Courbet... a lista é imensa! Diante destes, multidões se espremem em todos os museus do mundo!


E também porque tem em São Paulo, aqui no Brasil, um Atelier de Arte Realista dirigido pelo pintor Maurício Takiguthi que ensina, a dezenas de seus alunos, os métodos tradicionais de desenho e pintura. Muito desenho, muito estudo individual e coletivo, muito treino técnico e teórico da relação entre os espaços, dos valores, das massas, da Luz. Tudo isto em referência com a realidade, com a inesgotabilidade do Real. Lá estou eu também, há quase três anos, num estudo intenso e muito prazeroso, à moda dos mestres. E, poderíamos dizer, à moda do método científico de estudo.


Mas ano que vem, aqui no Brasil,  vão se espremer as multidões brasileiras: Caravaggio vem ao Brasil (Belo Horizonte e São Paulo), assim como alguns de seus seguidores, entre os quais um dos maiores: José de Ribera, pintor espanhol. Porque nem isso vai conseguir deixar de ver, essa elitezinha local que desde o passado insiste, em sua cabecinha colonizada, em que seria a "engendradora" da "modernidade" (pós-moderna hoje). Sim, porque a "arte" dessa meia dúzia, vai continuar para a meia dúzia que assim deseja.


A grande Arte, esta diante da qual todos silenciam, continuará atraindo a imensa maioria também do povo brasileiro que possa ir vê-la aonde for, porque, nela, ele se espelha, porque ela lhe diz o indizível, lhe traduz o indecifrável, lhe exprime o inexprimível...


Como este olhar, de Rembrandt, espelho do nosso próprio olhar!

Autoretrato, Rembrandt

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Mandamentos e mistérios gozosos

Por que ninguém teve (ainda) a ideia de expor gavetas com restos mortais em pó de um Crematório?
(Foto do Crematório do cemitério Père Lachaise de Paris, outubro de 2011)
A revista Bravo do mês de outubro, publicou uma reportagem de capa cujo tema é a exposição que acontece na Fundação Bienal de São Paulo, "Em Nome dos Artistas – Arte Contemporânea Norte-Americana na Coleção Astrup Fearnley". Essa mostra reune 219 peças da coleção do Museu de Arte Moderna de Oslo, capital da Noruega. E traz "obras" de Damien Hirst, Jeff Koons e Cindy Sherman, entre outros.


A revista organizou sua apresentação, elencando 7 mandamentos "daquilo que se convencionou chamar de “arte contemporânea”". Continua o texto: "É interessante notar que uma exposição reunindo Van Gogh, Renoir e Degas em todo o seu esplendor e glória não seria possível. Simplesmente porque tais artistas não experimentaram, em vida, esplendor e glória comparáveis aos de Damien Hirst e Jeff Koons, para ficar nos dois mais ricos da constelação (...). Ricos no sentido monetário mesmo. Hirst é, sem sombra de dúvida, o ser humano que mais ganhou dinheiro com criação artística na história ocidental." (!)


"A arte contemporânea não é uma linguagem acessível às massas. Ela se escora em uma série de teorias e procedimentos tão complexos quanto o teatro experimental, o cinema alternativo e a música contemporânea. Só que, diferentemente do teatro experimental, do cinema alternativo ou da música contemporânea – que sobrevivem em ambientes restritos ou financiados por universidades –, ela gerou um circuito milionário. Entender essa relação estreita e amigável entre arte e mercado é essencial para compreender a produção atual. Daí a razão do primeiro mandamento." 


"Escultura" de Jeff Koons,
mas você pode achar algo
assim numa lojinha de
souvenirs...
1 - AMARÁS O MERCADO SOBRE TODAS AS COISAS - o norte-americano Jeff Koons, entre 1991 e 1992, foi casado com a atriz de filme pornô italiana Cicciolina, e fez uma série de pinturas, com cenas do casal tendo relações sexuais. Depois, resolveu ir para o mundo da escultura, quando sua peça ("isso" aí ao lado) foi vendida por 23,5 milhões de dólares na casa de leilões Sotheby’s de Nova York, tornando-o o artista mais valorizado do mundo. Em julho de 2008, outra obra dele foi vendida na casa de leilão Christie’s de Londres por 25,7 milhões de dólares.


Na arte contemporânea, o mercado é uma poderosa fonte de validação artística de um trabalho. Calcula-se que no Brasil o montante de dinheiro que circula no mundo da arte seja da ordem de 300 milhões de reais por ano." Mas no mundo, segundo "levantamento da Tefaf (The European Fine Art Foundation), só em 2008, o total de vendas no mercado internacional atingiu 68,5 bilhões de dólares, sendo que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha são responsáveis por dois terços desse montante."


O inglês Damien Hirst, em 2008, por exemplo, colocou à venda na Sotheby’s, em Londres, 223 trabalhos recém-saídos do ateliê. Vendeu 97% (!) para, em sua maioria, investidores particulares, um total de 198 milhões de dólares. Dois anos mais tarde, o valor das peças vendidas despencou para 10% do total. "É óbvio que Damien Hirst criou uma bolha com a própria produção, usando um procedimento clássico do mercado de ações: vender o máximo possível na alta – e provocar uma baixa logo depois por causa da inundação do mercado com um mesmo tipo de produto. É como se Hirst dissesse que, num ambiente cada vez mais dominado pelo mercado, entender seu funcionamento é essencial para um artista. É como se sua bolha fosse, por si só, uma performance."


Serre um boi no meio e isso é arte,
como fez Damien Hirst, um dos
alunos da escola de Duchamp
2 - NÃO PRECISARÁS DOMINAR A TÉCNICA - Depois que o francês Marcel Duchamp (1887-1968) expôs um urinol como obra de arte, em 1917 (A Fonte), a concepção de que um artista precisa saber pintar, esculpir ou fotografar ficou definitivamente para trás." Muitos das "obras" desses artistas-para-o-mercado aí nem foram produzidas por eles. Mas o que importa é a "ideia". "Desde Duchamp, o que faz de alguém um artista são suas ideias, e não suas habilidades manuais", diz a revista Bravo.


E dá um exemplo local, como do artista paulistano Nelson Leirner, que foi tema de um documentário deste ano (Assim É Se Lhe Parece). Ele nunca pintou um quadro na vida. O que faz é se apropriar de objetos existentes e dar-lhes novo significado".


3 - APRENDERÁS A FALAR SOBRE SEU TRABALHO - "num mundo em que a ideia é tão ou mais importante do que a execução, dominar a palavra é tudo. Tanto que os artistas aprendem isso desde a faculdade. No departamento de artes plásticas da Universidade de São Paulo, os alunos passam pelas aulas ministradas por Ana Maria Tavares e Mario Ramiro, em que são incentivados justamente a falar sobre o próprio trabalho." (grifo meu)


4 - PERTENCERÁS A UMA GALERIA - Absolutamente necessário. Como quase todos os artistas de renome hoje passaram por uma faculdade de Belas Artes (o que evidencia que vivemos o tempo da Nova Academia - ou seja, isso daí é arte acadêmica), "imediatamente passam a integrar o elenco de alguma galeria. Muitos deles assinam contratos com endereços comerciais antes mesmo da formatura". Continua o texto: "A carreira de artista tem atualmente etapas tão bem definidas, e encontra-se tão escorada por marchands, colecionadores, leilões e exposições, que até perdeu um pouco do caráter aventureiro e um tanto arriscado que sempre a acompanhou".


"O diretor do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, Tadeu Chiarelli, vê no entanto essa presença forte das galerias no circuito como algo incômodo: “Pertencer a uma galeria virou sinônimo de ser bem-sucedido”. Porém o número de endereços que abrem a cada ano e o volume de dinheiro que negociam é tanto que foi criada em 2007 no Brasil a Abact (Associação Brasileira de Arte Contemporânea), uma iniciativa das próprias galerias para mapear esse setor. A presidente da instituição é Alessandra d’Aloia, também sócia-diretora da prestigiada galeria Fortes Vilaça, em São Paulo."


5 - PARTICIPARÁS DE FEIRAS DE ARTE - São umas 30 feiras internacionais de arte contemporânea no mundo, mais de duas por mês. Negócios muito rentáveis rolam por lá.


6 - CONHECERÁS CURADORES - ah.... os curadores! Não é possível viver sem eles! Enquanto o tradicional papel da crítica teve seu papel diminuído, "os curadores são os novos críticos". Continua Bravo: "São eles que selecionam artistas e suas obras para exposições que pretendem oferecer um panorama da produção atual e, dessa forma, atribuem leituras para esses conjuntos. Os curadores apresentam temas, sugerem relações entre criadores e apontam também revelações da área. Inclusive para galeristas e colecionadores. “Hoje até as feiras de arte têm curadores. O que antes era Igreja e Estado agora se mistura. Bienais e feiras têm muitas vezes conceitos tão próximos que ficam muito parecidas”, diz um deles, Cauê Alves.


7 - VIVERÁS COMO UMA CELEBRIDADE - Como já dizia o pop Andy Wahrol,cada um deve buscar seus 15 minutos de fama. Os "artistas deixaram de ser figuras por trás de suas obras e estão cada vez mais à frente delas. O público quer saber como se vestem, com quem circulam, o que bebem, como bebem".

Então junte-se uma boa faculdade que ensine a nova forma de fazer arte, renda-se às regras do mercado, tenha-se uma boa ideia ("boa" no sentido disso daí), circule-se por esses circuitos sociais onde impera a futilidade (e muita grana!), dê-se um jeito de ser celebridade (mesmo que por 5 minutos), e pronto! Seu reino individual está garantido!


Cemitério Père Lahaise, Paris, outubro de 2011

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Vivências em ateliês de Paris

A tela original é de Jan Vermeer "Moça com brinco de pérola"
- esta é uma cópia que está sendo pintada por mim - terceiro dia de ttrabalho
Depois de 5 dias, ela está ficando assim...
Duas atividades em especial, marcam esta minha estada de quinze dias aqui em Paris. Em primeiro lugar, pintando uma cópia do "Moça com brinco de pérola" de Jan Vermeer sob a orientação de uma pintora copista do Louvre. Em segundo lugar, fazer aulas de desenho com modelo vivo na Academia de la Grande Chaumière, aqui em Montparnasse, bairro de Paris.

Há alguns meses atrás soube, em São Paulo, do Atelier de Alejandra Astorquiza em Paris, copista do Museu do Louvre. A especialidade dela é copiar grandes obras dos grandes mestres, muitas vezes em frente às próprias obras no Louvre. Como faço parte de um Atelier em São Paulo que também usa como referência as obras dos mestres da pintura, considerei que podia ser muito boa a experiência de fazer um estágio intensivo de uma semana, junto com Alejandra, e aprender diretamente dela um pouco da sua técnica de copista.

Depois de três dias inteiros, e 24 horas de trabalho intenso, minha "Moça com brinco de pérola" começa a me olhar, com seu olhar enigmático. Ainda há muito o que trabalhar no rosto dela, no olhar dela e especialmente na boca dela. Alejandra me disse que esse quadro, junto com a Monalisa de Da Vinci, trazem rostos com os sorrisos mais enigmáticos e difíceis de copiar. Ou seja, minha tarefa não é nenhum pouco fácil. Ainda tenho dois dias inteiros de trabalho, que vou concentrar no rosto dela. Todo o restante que ficar faltando, farei sozinha em meu atelier em São Paulo.


Sala centenária do atelier de la Grande Chaumière
para onde se dirigem artistas e estudantes de arte desde o começo do século XX
Mas também fui à "Grande Chaumiére".

Este atelier fica dentro de um prédio secular aqui do bairro legendário de Montparnasse, e abriga a Academia de la Grande Chaumière, uma das mais antigas de Paris, fundada em 1909.  Lá acontecem cursos livres de desenho, pintura e escultura e está aberta a qualquer um que queira vir treinar aqui. Por estes bancos e estes apoios de madeira em volta da cena principal onde posam modelos, artistas célebres ou não, sentaram e continuam sentando para praticar uma das maneiras mais antigas de estudo de pintura: modelo vivo, nus ou em representação de personagem. Os artistas fazem seus croquis com grafite, carvão, pastel, óleo, acrílica, aquarela...

Fernand Léger (1881-1955) passou por aqui, assim como André Lhote (1885-1962), Emile Antoine Bourdelle (1861-1929), todos professores, ensinando novos artistas. Alberto Giacometti (1901-1966), o grande escultor, aprendeu aqui diretamente com Bourdelle.

Esta Académie de la Grande Chaumière já atraiu artistas de muitos países, de diversas gerações, nestes cem anos, e praticantes das técnicas mais diversas. Porque a Grande Chaumière é uma academia livre, qualquer um pode desenvolver a técnica que quiser. É assim, desde que foi criada em 1901. Alexander Calder (1898-1976), norte-americano; Amedeo Modigliani (1884-1920), italiano; Joán Miró (1893-1983), pintor espanhol, todos sentaram nestes mesmos bancos que vi ao meu redor.

Também alguns artistas brasileiros vieram desenhar aqui, como Lasar Segall, Quirino Campofiorito, Antonio Bandeira, Vieira da Silva e outros.

Ontem, desenhando e pintando junto comigo, tinha umas 40 pessoas, dispostas em semi-círculo em volta de uma modelo francesa, muito simpática, que posou nua. A primeira sessão foi de 45 minutos. Pausa de uns quinze minutos para um lanche servido pela administração da escola: chás diversos, espetinhos com legumes e embutidos, pães, vinho, suco... Depois mais quatro sessões de 25 minutos cada, com pequeno intervalo de 5 minutos, quando a modelo aproveitava para descansar.

Fiquei observando as pessoas, enquanto tomava meu chá, tentando adivinhar o que faziam, se eram pintores, ilustradores ou escultores, se tinham atelier, se eram conhecidos... As madeiras onde apoiamos nossas pranchas de trabalho são as mesmas há mais de cem anos. De tão usadas já estão meio roliças. Os bancos, alguns cobertos com couro, são os mesmos bancos rústicos usados há mais de cem anos, dezenas deles de várias alturas, dependendo da posição que se toma em relação ao lugar onde está a modelo.

Ela fica na frente, numa espécie de altar onde ela é a deusa. Ou o deus, no caso dos modelos homens. Em torno desses modelos, centenas de artistas se juntaram aqui, estudando cada detalhe da anatomia de seus corpos, a direção do jato de luz lançado sobre os modelos, as projeções das sombras, os valores dessas diversas gradações entre luz e sombra... Desenhando, repetimos em nossas pranchas as formas do que vemos.

É muito bom poder viver isso pessoalmente! É muito boa essa experiência de conviver com tantos desconhecidos, de várias idades, que falam uma língua diferente da minha (e talvez outras), mas que nos unimos na mesma e universal linguagem da Arte, na qual todos nós nos compreendemos uns aos outros. Neste espaço de la Grande Chaumière, junto com essas pessoas, lembrei de uma frase de origem africana da qual gosto muito e que explica o que penso também sobre fazer Arte:

"Se você quer ir rápido, vá sozinho. Se você quiser ir longe, vá com outros!"

Ontem desenhei em meu caderno, além do corpo da modelo, toda a minha própria ventura de estar aqui...


A modelo, enquanto se preparava. Em primeiro plano, meu material de desenho. Logo atrás, a madeira que apoia o material do artista, já tão gasta de tanto uso