segunda-feira, 3 de maio de 2010

Portinari de todos os tempos

Estivador, óleo sobre madeira, coleção particular, Rio de Janeiro.
“E o homem de Brodósqui
não se esqueceu de Brodósqui”(Manuel Bandeira)

Cândido Portinari, o artista plástico filho de camponeses de Brodósqui, interior de São Paulo, nunca sai de cena. No Carnaval de 2010, a Escola de Samba União da Ilha do Governador estampou 24 desenhos do pintor em um de seus carros alegóricos, representações de Dom Quixote. Neste ano, os famosos paineis “Guerra” e “Paz”, instalados no edifício da ONU, em Nova Iorque, serão vistos finalmente no Brasil, em exposições que estão sendo preparadas. A Pinacoteca de São Paulo, além disso, apresenta uma exposição intitulada “Portinari na Coleção Castro Maya”.


Não fosse suficiente, hoje encontrei cinco quadros do pintor de Brodósqui no prédio da Bienal do Ibirapuera, São Paulo. Estavam em uma das galerias que participa da sexta edição da hiper-feira SP Arte, que reune neste ano 79 galerias. Portinari estava em meio ao cansativo carnaval de repetições de padrões atual: borrões, manchas, formas geométricas, objetos (como facas, serras, copos de vidro – o que você imaginar, ou não, estava lá...), quadriculados, reticulados, objetos kitsch, objetos multimidia, lembranças toscas de Andy Warhol, quadrados negros, barbantes trançados, acrílicos, cadeiras assinadas por designers da moda, muito plástico, peças decorativas estilo vintage, um bar onde se servia wiskies e champagnes finos (claro!), um café da grife starbucks com fila sempre grande, marchands, galeristas, negociantes, artistas, curiosos da mais pura elite, se cruzavam, trançavam entre os corredores das galerias desse mercado que se intitula “a maior feira de arte Moderna e Contemporânea do Brasil”... ufa! Foi duro caminhar para encontrar algumas pinturas dos modernistas brasileiros perdidos nessa selva minimalista.

Mas vamos a Portinari.

Cândido Portinari nasceu em 1903, numa fazenda de café aonde seus pais – camponeses italianos imigrantes – trabalhavam। Desde muito cedo, seu talento para o desenho sobressaiu e, incentivado por sua família, com apenas quinze anos de idade viaja para o Rio de Janeiro para estudar desenho e pintura. Iniciou no Liceu de Artes e Ofícios, passando depois para a Escola Nacional de Belas Artes.

Quatro anos depois, começa a inscrever seus trabalhos em eventos de artes, até que conquista, em 1928, um prêmio que lhe daria uma bolsa de estudos em Paris, para onde viajou e permaneceu de 1928 a 1930. Foi fora do Brasil que Portinari descobriu o povo brasileiro, assim como uma nova expressão plástica, tão característica deste pintor, o efeito da deformação em seus quadros. Feita a escolha estética, ele também fez a escolha social, optando por pintar o povo e o trabalhador brasileiro.

Em 1945, Cândido Portinari se filia ao Partido Comunista, e participa de uma exposição de artes para arrecadação de fundos para o PCdoB. Lança-se candidato a deputado federal por São Paulo e, em 1947, tendo perdido a eleição, lança-se candidato novamente, desta vez a senador. Não foi eleito por uma margem muito pequena de votos, o que poderia significar que sua não-eleição foi garantida através de fraude. Ainda em 1947, com as ameaças sofridas por seu Partido e por ele próprio, por parte do governo de Gaspar Dutra, passa uma temporada no Uruguai. Ele fora intimado a depor várias vezes na polícia, por causa de um inquérito aberto contra os intelectuais que lecionavam na Escola do Povo, do PcdoB, fundada em 1946.

Portinari trabalhou intensamente até o fim da sua vida. Inúmeras exposições dentro e fora do Brasil, requisitavam sua participação. Pintou inúmeros retratos, telas, painéis e murais, como o faziam os muralistas mexicanos, como Diego Rivera. O personagem principal de seu trabalho é o negro, a mulher, o mulato, o índio, a criança, os retirantes, os trabalhadores, os camponeses, pintados como gigantes que guardam uma força que é muito maior do que eles e que poderá ser usada (no dizer de Annateresa Fabris, estudiosa do pintor) “em seu proveito, quando o homem alienado tomar consciência de sua escravidão”. Suas obras eram vistas e admiradas até mesmo pelas camadas mais populares, que se viam retratadas em seus quadros, cuja temática era declaradamente social e enraizada na realidade brasileira.

Respeitado internacionalmente, foi convidado a pintar dois paineis gigantes que decoram o prédio das Nações Unidas, em Nova Iorque, cuja inauguração se deu em setembro de 1957. Ele também teve duas mostras individuais nos EUA, uma em 1947 (“Portinari of Brazil”) e uma outra em 1959, na Galeria Wildestein, também em Nova Iorque. Mas sua militância comunista foi a desculpa que o macartismo, já então predominante naquele país, deu para que ele tivesse seu visto de entrada nos EUA negado, em todas essas ocasiões. A inauguração dos dois grandes paineis “Guerra” e “Paz”, inclusive, deu-se sem a presença de seu criador.

Portinari era profundamente ligado a seu tempo. Tendo participado ativamente do processo de modernização do seu país, era um artista que buscava um papel para a sua arte, acima de tudo em termos humanistas. Em 1953, numa conversa com o poeta Vinícius de Moraes, ele explica: “Não pretendo entender de política. Minhas convicções, que são fundas, cheguei a elas por força da minha infância pobre, de minha vida de trabalho e luta, e porque sou um artista. Tenho pena dos que sofrem, e gostaria de ajudar a remediar a injustiça social existente. Qualquer artista consciente sente o mesmo”.

É a carência desse sentido humano da arte que pude ver nas obras expostas pelas 79 galerias de arte da SP Arte 2010, neste fim de semana. Enquanto observava por um momento o público que transitava no prédio da Bienal, pensei que alguma coisa de muito grave está ocorrendo hoje quando essa arte aí expressa de fato o que o poeta Ferreira Gullar previu ainda nos primeiros anos da década de 60: “A arte pela arte coincide sempre com a crise dos valores de uma civilização. (…) é a idealização da impotência”. Uma arte de uma sociedade esquisitamente narcísica: tem medo da própria imagem!

Cândido Portinari morreu em fevereiro de 1962, após realizar mais de cinco mil trabalhos entre desenhos, pinturas, murais, painéis, esboços e até ilustrações. Morreu intoxicado por suas próprias tintas. Considerado o maior entre os maiores pintores brasileiros, sua obra permanecerá falando através dos tempos, de um Brasil que se forma através das mãos de seu povo e de seus artistas.

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