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quinta-feira, 24 de setembro de 2015

A poeira do Tempo - final

Máscaras da Commedia dell'Arte
Enquanto François Villon (1431-1463) (ver final do post anterior) escrevia seus poemas de morte ("Balada dos Tempos Perdidos", "Balada dos Enforcados" e outros) no final da Idade Média, na Itália foram se gestando as sementes dos futuros teatros populares e de improvisação, como a Commedia dell'Arte (leia mais aqui). Atores populares iam encenando textos numa linguagem mais próxima do povo, como reação à comédia erudita literária, que o povo não compreendia, de autores como Maquiavel, Ariosto, etc.

O personagem Polichinelo
  • Este teatro popular nascido no século XVI na Itália, especialmente em Veneza, retomava os conceitos do Carnaval, a festa onde se permitia comer carne e aproveitar os prazeres da vida, antes que chegasse a Quaresma, os 40 dias onde se lembra a morte de Cristo; enquanto seus personagens se escondiam atrás de máscaras, iam passando e repassando as intrigas reais e inventadas da sociedade local, arrancando risadas ou choro do populacho que se reunia em torno destes atores, os primeiros improvisadores, que podemos ver também como os antecessores dos nossos cantadores nordestinos e de nosso MC’s… 
  • Naqueles tempos também havia as rinhas de atores, as disputas e querelas, como ocorre com os repentistas do nordeste e com as atuais rinhas de MC's nas periferias de São Paulo...
  • Os personagens da Commedia dell'Arte usavam máscaras, ou tinham seu rosto pintado de branco, como Pedrolino, que na França ficou conhecido como Pierrot. Este era o mais triste dos personagens, com uma lágrima desenhada sob um dos olhos. Arlequim, que disputava com Pierrot o amor de Colombina, tem em seu nome uma origem que vem de duas culturas: ou deriva de Hellequin (chefe dos diabos no teatro medieval francês) ou de Eln Köining (chefe dos gnomos da cultura escandinava). Já Polichinelo, teria tido um nascimento um tanto estranho, pois teria aparecido num berço ao lado de um gato preto e uma ave de agouro, como se também descendesse do diabo... 
Tudo isso recolhido do rico imaginário popular que vinha desde a Alta Idade Média... E atravessou os tempos, como podemos ver a seguir.

"Inferno", pintura de
Hieronymus Bosch, cerca de 1490
  • Mas, ainda no século XVI, exatamente em 1517, é encenada pela primeira vez a peça “Auto da Barca do Inferno”, do português Gil Vicente. Os personagens discutem com o Diabo, comandante de uma das três barcas, e com o Anjo, comandante de outra, em qual delas vão entrar. No final, a maioria entra mesmo é na Barca do Inferno. Nesta peça, Gil Vicente tece duras críticas à sociedade da época.
Enquanto isso, na pintura abundavam registros de reflexão ascética de santos, eremitas, mártires ou monges contemplativos, como São Jerônimo, Maria Madalena, São Francisco de Assis, Santo Antão, etc. Vi inúmeros quadros pintados com cenas envolvendo estes santos, em minha viagem à Espanha deste ano.

É deste período também o surgimento deste ícone universal que é a imagem da Morte com um manto negro, portando uma foice com a qual vai ceifando vidas. É esta imagem que surge no baralho de Tarôt sob o número 13, o número do azar. Que, acrescenta Luís Calheiros, propõe como reflexão ao consultante um questionamento sobre “vícios e defeitos, propõe o arrependimento, o desprendimento, o aperfeiçoamento e a transformação radical e superação de tudo o que está ultrapassado, obsoleto e decadente”.

Enquanto o mundo se expandia, no começo do século XVI também nascia o Brasil.

Valeria a pena uma profunda pesquisa, Brasil a dentro, de como essas ideias nos atingiram em cheio desde os primeiros movimentos de construção do nosso país. Devagar, estou iniciando uma pesquisa em direção a isto, o que levará muito tempo, anos talvez. Mas a título de elucubrações iniciais, fico pensando na construção da nossa cultura baseada nestas três fontes distintas: aqueles europeus, os nossos indígenas e os africanos (sobre o assunto, Darcy Ribeiro escreveu o livro "O povo brasileiro"). Cada qual com sua cosmologia, sua visão de mundo, de vida e de morte.

Xilogravura do artista popular
pernambucano J. Borges,
"A briga da onça com a serpente"
De vida e de morte foi feita a nossa história. Nossos índios foram sendo dizimados ao longo dos séculos. Nossos afro-descendentes, para usar um termo atual, ainda não saíram de todo da Senzala porque a Casa Grande teima em não permitir… As tentativas de resistência, em nossa história, foram abatidas à bala, como aconteceu com a Canudos de Antonio Conselheiro, com Zumbi dos Palmares…

Estamos revivendo os períodos de maior violência da história da cultura brasileira, nestes tempos de 2015. De um lado, a perene vida difícil dos pobres nas periferias do Brasil - são “quase todos pretos”, como canta Caetano Veloso. São eles as maiores vítimas das redes de tráfico de drogas, pois por séculos de descaso de políticas públicas tornam-se reféns, e mesmo colaboradores dos verdadeiros bandidos. A expectativa de vida nas favelas e nas periferias das grandes cidades só diminui, por conta da violência policial e do tráfico de drogas. Em 2014, as pesquisas apontam que a violência da Polícia Militar cresceu 111%. Em 2015 deve ser muito maior, pois de uma vez só a PM de São Paulo matou 19 pessoas recentemente em Osasco. Segundo dados do mapa da violência no Brasil, um jovem negro tem 139% a mais de chance de ser morto na rua do que um jovem branco. 

A morte impera na vida dos moradores de periferia no Brasil. Passa a ser até “natural”, faz “parte da vida”, como podemos ler - ou ouvir - nas canções de rappers e MC’s como Emicida, Criolo, Sabotage…

“No pé que as coisas vão, Jão
Doidera, daqui a pouco,
resta madeira nem pros caixão.
Era neblina, hoje é poluição
Asfalto quente queima os pés no chão
Carros em profusão, confusão
Água em escassez, bem na nossa vez!
Assim não resta nem as barata...
Injustos fazem leis, e o que resta procês?
Escolher qual veneno te mata!

Pois somos tipo passarinhos
Soltos a voar dispostos a achar um ninho
Nem que seja no peito um do outro” 

(do rapper Emicida, "Passarinhos")

Cena do filme "Que horas ela volta?"
A morte ronda cada vez mais de perto as nossas vidas, sejamos ou não moradores das periferias. Todos somos vítimas da violência, é certo! Mas a Casa Grande não se incomoda se a Foice da Morte se restringir às favelas, aos pretos, aos pobres. A Casa Grande tem gerado campanhas de ódio, tem treinado aprendizes de fascistas como "justiceiros", tem batido freneticamente suas panelas enquanto de suas bocas escorrem babas de ódio contra os aeroportos e aviões repletos de gente pobre viajando, contra os filhos da empregada e do porteiro do prédio se formando nas mesmas universidades que seus filhos (saudações ao belo filme "Que horas ela volta?" de Ana Muylaert!). Para a Casa Grande, a Senzala deve se ligar de que seu lugar é onde sempre foi desde que o Brasil é Brasil: na sua inferioridade de classe.

Vanitas, vanitatum et omnia vanitas...

No nordeste - no meu - meu conterrâneo João Cabral de Melo Neto já impingira na cara do Brasil o poema onde conta o que acontecia naquele agreste ardente com as vidas ceifadas pela seca, pela fome, pelas injustiças sociais, da qual são vítimas todos os severinos do nordeste, “Morte e vida severina”:

“Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta”.

Severinos migraram para São Paulo ao longo de décadas. E moram, em sua maioria, nas mesmas favelas mortíferas de hoje. A saga do poema de João Cabral, que se passa em Pernambuco, pode muito bem ser replicada nas ruelas estreitas e tortas das Quebradas de São Paulo:

“— E foi morrida essa morte, irmão das almas,
essa foi morte morrida ou foi matada?

— Até que não foi morrida, irmão das almas,
esta foi morte matada, numa emboscada.

— E o que guardava a emboscada, irmão das almas,
e com que foi que o mataram, com faca ou bala?

— Este foi morto de bala, irmão das almas,
mais garantido de bala, mais longe vara.

— E quem foi que o emboscou, irmãos das almas,
quem contra ele soltou essa ave-bala?

— Ali é difícil dizer, irmão das almas,
sempre há uma bala voando, desocupada”.

Belo-triste encontro semiótico entre a ave-bala de João Cabral e as balas-passarinhos de Emicida...

"Os retirantes", pintura de Candido Portinari
E em ressonância com João Cabral, Candido Portinari pinta um dos mais representativos quadros desta tragédia, “Os Retirantes”. Tintas carregadas no escuro, corpos deformados, verdadeiros espectros humanos, mal se sustentam em seus próprios pés, enquanto aves de rapina fazem seus vôos rasantes aguardando o trabalho da Morte…

E Ariano Suassuna escreve seu “Auto da Compadecida”, onde narra o drama do nordeste, misturando elementos da cultura popular, como a literatura de cordel, com o catolicismo barroco do nosso povo. A peça já começa com o enterro de um cachorro. O que nos leva, por livre associação, à Baleia, a cadela do conto de Graciliano Ramos que trata exatamente de… vida e morte: “Vidas secas”.

Mas em Suassuna ainda, lembramos que o último ato da peça traz o julgamento dos que foram mortos pelo capanga Severino de Aracaju, que também foi morto por uma facada de João Grilo. No alto de tudo, a Compadecida, Nossa Senhora - aquela que também habitava os altares e o imaginário medieval como a Alentadora, a Mãe que se compadece dos pecadores e os leva à salvação. Depois que a morte fez seu trabalho...

Ainda em nossa literatura, o grande romance nacional “Grande sertão, veredas”, de Guimarães Rosa, nada mais é do que a confissão do começo ao fim do capanga Riobaldo que viveu e viu a morte de perto, assim como pressentia o “Tinhoso” com quem fez um pacto, mas não impediu que fosse morta a sua amada Diadorim. Neste romance, Guimarães Rosa mostra como era a vida nos sertões brasileiros, a luta de vida e morte dos caboclos em suas taperas, ameaçados por jagunços armados por fazendeiros. 

"A Roda da Fortuna", Edward Burne Jones
“Viver é muito perigoso”, repete Riobaldo o tempo inteiro… “Porque aprender a viver é que é o viver mesmo... Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e abaixa... “

Finalizando, porque é preciso por um fim a um assunto sem fim…

Há poucos anos atrás, o poeta Afonso Romano de Sant’Anna disse, sobre nossos tempos e nossa arte atual: desde a obra mítica do urinol de Marcel Duchamp, vem se falando na morte da arte. Na década de 1980, Francis Fukuyama, pensador norte-americano neoliberal, apregoou a morte da História. 

“Falou-se muito de morte no século XX, sem esquecer o banho de sangue provocado pelas duas guerras mundiais mortíferas”, reflete ele. Pensemos na bomba de Hiroshima e Nagasaki que deixaram rastros de “crianças mudas, telepáticas”, como disse outro poeta, Vinícius de Moraes. 

Neste sentido, complementa Afonso Romano habitamos um cemitério onde a teoria perambulou como um zumbi entre o sentido e o não sentido, e teorizar sobre a morte de certas categorias, e mesmo de ideias, parece que explica um pouco o caos contemporâneo”.

Enquanto isso as madames e suas panelas areadas, plenas de vaidade, se agarram às suas marcas carésimas, a seus mitos consumistas, a seus sonhos ilusórios, a seu vazio de classe. Se vendo ameaçadas, blindam seus carros, suas casas, seus filhos, suas vidas…

E nos agarramos - todos - ao consumismo frenético de bens necessários e desnecessários vendidos pela propaganda, que diariamente gesta novas formas de vender coisas cada vez mais e em mais larga escala... “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade…” soam em “lúgubres responsos” os sinos do Eclesiastes, ainda mais atual em 2015.

Mas a Roda da Fortuna continua seu giro “separando implacavelmente os poderosos, que tudo possuem, dos expoliados que nada têm de seu, morrendo igualmente todos, e tudo deixando”, diz o professor português. Quem tem muito, muito deixa; nada, os que nada possuem.

"Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no sexto dia e sim no sétimo", diz o poema "Dia da criação" de Vinícius de Moraes...

E pra finalizar e por via das dúvidas: Senhor, livrai-nos de todo o mal, amém!

"Fast food", vanitas, fotografia de Laurent Meynier, 2014

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Guerra e Paz, ainda mais atual

Paineis "Guerra e Paz", de Candido Portinari
Hoje, 8 de setembro, os paineis "Guerra e Paz" de Candido Portinari voltam a ocupar seu lugar dentro das dependências do prédio das Nações Unidas em Nova York.
Candido Portinari
João Candido, filho do pintor, em entrevista à BBC Brasil, diz que o quadro continua atualíssimo. Basta lembrar da guerra do Iraque e de outros conflitos atuais. "Agora, tenho que incluir a foto no menino sírio morto em uma praia turca", disse ele.
João também observa que o painel "Guerra" não traz imagens nem de armas, nem de tanques, nem de soldados. Candido Portinari preferiu focar-se nos sofrimentos que as guerras produzem nas pessoas; os mesmos que hoje podemos observar nas centenas de imagens dos imigrantes ao redor de países europeus, africanos e asiáticos. em busca de melhores condições de vida; ou mesmo em busca de "vida", como disse recentemente um dos refugiados africanos que foi acolhido em Portugal.
João Candido vai fazer um discurso por ocasião da reinaguração, hoje, por volta das 15 horas. Ele disse que pretende chamar a atenção para a "urgência de construirmos uma nova humanidade".
"Guerra e Paz" voltará a seu lugar no prédio da ONU após cinco anos de ausência, quando então foi exposto no Rio de Janeiro, aqui em São Paulo, em Belo Horizonte e em Paris. Quando passou pelo Rio, os paineis passaram por uma restauração. Os dois juntos têm 140 metros quadrados de área e pesam uma tonelada cada um.
João Candido Portinari
"Foi um milagre que permitiu realizar um sonho acalentado há muitos anos: que o público pudesse ver esta obra do meu pai. Ela fica em um local de segurança máxima onde é muito difícil ter acesso. Isso sempre me incomodou", diz João Cândido. "Guerra e Paz" foi visto por 360 mil pessoas nas cidades pelas quais passou.
A curadora da inauguração é a diretora de teatro Bia Lessa, que disse sobre o evento que ocorre hoje: "Assim como no quadro de Portinari, não vamos falar de uma violência de bombas e espingardas, mas do sofrimento trazido pela violência do cotidiano por meio de poemas de autores de diversas partes do mundo, por exemplo. Poder falar sobre guerra e paz neste momento é muito interessante. A reinauguração do quadro agora tem uma carga simbólica muito grande."
Os planos de João Candido para os paineis de seu pai são de que eles possam ser abertos à visitação, coisa que é dificultada por ficarem dentro das dependências do prédio da ONU. Mas ele vai tentar fazer com que sejam abertos para visitas ao menos uma vez por semana. "A ONU tem estrutura de vigilância para lidar com isso. Se houver vontade política…", diz João Cândido. "A missão brasileira está ajudando a viabilizar. Não posso prometer, mas estamos trabalhando muito para isso."
O mural "Guerra e Paz" foi inaugurado na sede da ONU, em Nova York, no dia 6 de setembro de 1956. Mas Candido Portinari não estava ausente, pois seu visto foi negado pelos Estados Unidos porque o pintor era ligado ao Partido Comunista do Brasil. Mas 60 anos depois, a reinauguração dos paineis contará com a presença de seu filho, João Candido.
Candido Portinari trabalhando na pintura dos paineis "Guerra e Paz"

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Portinari no Grand Palais de Paris

O díptico "Guerra e Paz", pintado por Portinari e presenteado pelo governo brasileiro à ONU
No último dia 6 de maio os dois paineis “Guerra e Paz” pintados pelo artista brasileiro Candido Portinari foram inaugurados em exposição no Grand Palais de Paris e poderão ser vistos pelo público francês e europeu pela primeira vez.
Cartaz do Grand Palais
A exposição desta obra-prima do pintor brasileiro em Paris tem a curadoria do seu filho João Candido Portinari, que dirige o Projeto Portinari, que inclui a catalogação de toda a obra do pai, assim como o arquivo de documentos importantes relativos à vida desse grande artista brasileiro. Candido Portinari - lembra a apresentação no Grand Palais - "fez suas as palavras de Léon Tolstoi: 'Se queres ser universal, começa pintando a tua aldeia".
Guerra e Paz” de Candido Portinari (1903-1962), um dos mais importantes pintores do Brasil, foi ofertado pelo governo brasileiro às Nações Unidas e instalado no hall de entrada da Assembleia Geral da ONU, em Nova York, em 1957.
Pela primeira vez em mais de meio século os dois paineis que formam “Guerra e Paz” saíram do prédio da ONU e, depois de terem sido apresentados no Brasil, poderão ser vistos no Grand Palais de Paris, França, antes de retornar definitivamente para seu local no prédio das Nações Unidas. Aqui em São Paulo, em 2012 foi visto por mais de 600 mil pessoas no Memorial da América Latina.
Esta exposição em Paris está sendo organizada pelo Projeto Portinari, com apoio dos Ministério das Relações Exteriores e Ministério da Cultura do Brasil em conjunto com o Ministério da Cultura e Comunicação da França e da Réunion des Musées Nationaux – Grand Palais, com a coordenação de Expomus.
Os painéis “Guerra e Paz” poderão ser vistos pelo público francês de 7 de maio a 9 de junho de 2014, no Grand Palais, Salon d’Honneur.
Mais posts neste Blog sobre Candido Portinari:

domingo, 4 de novembro de 2012

Mário de Andrade - Cartas do Modernismo

Mário de Andrade

Mário de Andrade, por Portinari
Uma exposição no Rio de Janeiro estará encerrando as comemorações dos 90 anos da Semana de Arte Moderna, completados neste ano de 2012, com diversas cartas de Mário de Andrade, um dos principais teóricos e idealizadores da semana que marcou as artes e a cultura brasileira no século XX. De 13 de novembro a 6 de janeiro de 2013, o público carioca poderá apreciar esta exposição que terá como local o Centro Cultural dos Correios, no centro da cidade.
Mário de Andrade manteve uma correspondência bastante grande com os mais importantes intelectuais e artistas, entre poetas, músicos, escritores e pintores. Através dessas cartas ele vai delineando seu pensamento sobre o modernismo brasileiro, o tema central das cartas dessa exposição no Rio.

São correspondências trocadas entre Mário e Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Candido Portinari, Di Cavalcanti, Enrico Bianco, Cícero Dias e Victor Brecheret. 

Mário de Andrade,
por Lasar Segall
Mas o outro tema da exposição de cartas são as Artes Plásticas, mostrando como Mário trocou ideias sobre o assunto com Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Henriqueta Lisboa. Mário de Andrade viveu um pouco de tempo no Rio de Janeiro e aprofundou sua amizade com Candido Portinari, como pode ser também observado através das cartas trocadas entre os dois amigos, que hoje pertencem ao acervo do Projeto Portinari.

Mário de Andrade possuiu uma boa coleção de obras de arte, seja porque ele comprou, seja porque tenha ganhado de presente muitas delas. O Instituto de Estudos Brasileiros da USP é que mantém a guarda de parte desse acervo e cedeu algumas dessas obras para a exposição. 

Entre elas estão "As Margaridas de Mário" de Anita Malfatti , "Mulher" de Di Cavalcanti, desenhos e aquarelas de Cícero Dias, Ismael Nery, Portinari, Segall, Zina Aita e Augusto Rodrigues. Também lá estão os três retratos do escritor feitos por Portinari, Lasar Segall e Enrico Bianco. De outras coleções, estão: "Chinesa" de Anita Malfatti e "Menina do Circo" de Di Cavalcanti.


Por causa da fragilidade dos papeis, a maioria das cartas serão apresentadas em fac-símile, e uma parte delas, para melhor compreensão, foi transcrita e impressa.

Carta-desenho de Anita Malfatti a Mário de Andrade
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Biografia suscinta:
Mário,
por Tarsila do Amaral
Mário Raul de Morais Andrade nasceu em São Paulo no dia 9 de outubro de 1893 e aqui faleceu no dia 25 de fevereiro de 1945. Foi poeta, romancista, historiador, crítico de arte, musicólogo e um dos principais teóricos do movimento modernista brasileiro do século XX.
Em 1922 lançou aquele que seria o ato inicial da poesia moderna brasileira: seu livro Pauliceia Desvairada. Estudou a cultura brasileira a fundo, desde a musicalidade dos nossos índios até o nosso folclore, trazendo à tona os valores culturais do nosso povo, num momento em que a burguesia brasileira conservadora e colonialista, se voltava para a cultura europeia.
Mário foi uma das figuras centrais dos movimentos de vanguarda em São Paulo, que influenciou todo o Brasil. Um dos líderes principais da Semana de Arte Moderna de 1922, ele continuou sua pesquisa sobre o modernismo e a cultura brasileira durante toda a sua vida. Foi poeta, escritor e ensaísta, mas também professor de música e colunista de jornal. Em 1928, resumiu sua pesquisa na cultura do povo brasileiro mais profunda no livro Macunaíma. Nos últimos anos de sua vida foi diretor do Departamento Municipal de Cultura da cidade de São Paulo.
Em homenagem a este grande intelectual, poeta e escritor brasileiro, reproduzimos abaixo um dos seus grandes poemas do livro Pauliceia Desvairada, Ode ao Burguês, que foi lido em um dos dias da Semana de 1922:
Ode ao burguês

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! O homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos,
e gemem sangue de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os "Printemps" com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! Ao burguês-tiburi!
Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano!
"— Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
— Um colar... — Conto e quinhentos!!!
Más nós morremos de fome!"
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!


Fora! Fu! Fora o bom burguês!...
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Serviço: 
Exposição: "Mário de Andrade - Cartas do Modernismo"
Abertura: 13 de novembro, às 19h
Visitação: 14 de novembro a 6 de janeiro de 2013
Local: Centro Cultural Correios
Rua Visconde de Itaboraí, 20 - Centro
Rio de Janeiro

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Vanitas: a vida é passageira e o tempo urge

Vanitas, de Jacob de Gheyn, 1603

“Nesta cova em que estás, com palmos medida
é a conta menor que tiraste em vida.
É de bom tamanho, nem largo e nem fundo
é a parte que te cabe deste latifúndio”.
(Chico Buarque)





O tema da morte, representada por uma caveira, surgiu muito cedo na arte europeia da história mais recente, por volta do século XIII. Conhecida como VANITAS, era uma categoria especial de arte que sugeria que a existência terrestre é vazia, vã, cheia de sofrimento e que a vida humana não era tão importante, no fim das contas.

Este tema foi bastante popular na época da arte barroca, especialmente na Holanda. Diversos artistas, entre eles Holbein, trabalharam com este tema.

Essa denominação tem como origem o livro bíblico do Eclesiastes, do Velho Testamento, que diz em um certo trecho: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”. Traduzido como Vanitas, significa literalmente “sopro rápido, efêmero” e a mensagem que traz é a de que devemos meditar sobre a natureza passageira e vã do mundo e da vida humana, a inutilidade dos prazeres diante da morte que nos espia de perto.

 Vanitas, de Pieter van Steenwyck, séc. XVII
Esse tipo de pintura foi essencial para o surgimento da natureza-morta como gênero. Desde a época clássica de Grécia e Roma, por mais de mil anos o tema da representação pictórica de elementos como frutas, verduras, utensílios variados, etc, tinham sumido da pintura. A arte do período bizantino não utilizava esse tema. Na Idade Média, esses objetos só figuravam na pintura (em um grupo de pessoas, ou alguma outra situação) porque tinham algum sentido. No caso de Vanitas, todos os objetos ali representados são símbolos da fragilidade humana, da brevidade da vida, do tempo que passa e da morte. Em meio a todos os objetos que representavam essas ideias, a caveira era a mais recorrente. Em qualquer situação, ela poderia estar presente: no saber, na ciência, na riqueza, nos prazeres, na beleza...

Vanitas denuncia a relatividade do conhecimento e a vaidade humana diante do tempo que foge, e da morte que se aproxima.

A primeira pintura da história da arte ocidental dentro do tema seria a do pintor Jacob de Gheyn, de 1603. No período do Renascimento, que enfatizava o humanismo, esse tema foi bastante utilizado nas artes em geral. Tinha um papel moralizante e utilizado pelos cristãos sob formas e intenções diversas ao norte e ao sul da Europa, tanto por católicos como por protestantes. 

Pintura de
Charles Allan Gilbert, 1892
Mesmo que ele tenha antecipado a natureza-morta, ela só aparece como gênero independente no século XVII. É bom lembrar que Caravaggio (1571-1610) foi um dos primeiros a trazer o tema da natureza-morta para a pintura de seu tempo, pelo que foi criticado por seus contemporâneos que o acusavam de pintar temas “parados”, segundo Roberto Longhi (leia mais aqui). Também pintou caveiras em alguns de seus quadros, como em "São jerônimo escrevendo".

Em seu livro Arte e Beleza na Estética Medieval, Umberto Eco diz que na Idade Média havia um esforço dos cristãos em deslocar a contemplação da natureza para a contemplação da beleza da alma, citando o exemplo dos monges cistercienses (São Bernardo era um deles) que contrapunham a beleza interior à exterior, uma celeste e a outra terrena. Segundo essa filosofia, a beleza terrena é fugaz, como a flor que dura uma primavera e o corpo humano que envelhece.

Foi o período, conhecido inclusive na literatura, do tema do UBI SUNT, tema maior da Idade Média, que se perguntava: onde estão os grandes do tempo passado, as cidades belas do passado, as riquezas dos orgulhosos, as obras dos poderosos? Tudo acaba.

Ilustração de
Johann Caspar Lavaters,
1775
 
Na França, o poeta-bandido François-Villon escreveu o poema "Balada das damas dos tempos de outrora" ("Ballade des dames du temps jadis"), onde, ao final de cada estrofe, ele perguntava repetidamente: "mais où sont les neiges d'antan?" (onde estão as neves de antanho?) 

Dentro dessa forma de pensar, o caminho era buscar a beleza interior que não morre, porque a alma seria eterna.

Muito se pintou e se escreveu sobre o tema da morte, na arte ocidental, em todos os países. Mas para não ir muito longe, recordemos um poema do brasileiro João Cabral de Melo Neto: "Morte e Vida Severina".

Podemos dizer que este poema é um tema de Vanitas adaptado à situação do nordestino que vive pouco, pois morre de pobreza ou na luta pela terra. Abaixo um trecho do poema, que depois foi adaptado para uma canção por Chico Buarque de Holanda, "Funeral de um Lavrador", citada no início deste post:

Morte e Vida Severina:
Desenho para o filme de animação feito pelo cartunista
Miguel Falcão, que adaptou a obra de João Cabral

“ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO   
UM DEFUNTO NUMA REDE,   
AOS GRITOS DE "Ó IRMÃOS DAS ALMAS!   
IRMÃOS DAS ALMAS! NÃO FUI EU   
QUEM MATEI NÃO!"   

   — A quem estais carregando,   
irmãos das almas,   
embrulhado nessa rede?   
dizei que eu saiba.   
— A um defunto de nada,   
irmão das almas,   
que há muitas horas viaja   
à sua morada.   
— E sabeis quem era ele,   
irmãos das almas,   
sabeis como ele se chama   
ou se chamava?   
— Severino Lavrador,   
irmão das almas,   
Severino Lavrador,   
mas já não lavra.   
— E de onde que o estais trazendo,   
irmãos das almas,   
onde foi que começou   
vossa jornada?   
—  Onde a caatinga é mais seca,   
irmão das almas,   
onde uma terra que não dá   
nem planta brava.   
— E foi morrida essa morte,   
irmãos das almas,   
essa foi morte morrida   
ou foi matada?   
— Até que não foi morrida,   
irmão das almas,   
esta foi morte matada,   
numa emboscada.   
—  E o que guardava a emboscada,   
irmão das almas   
e com que foi que o mataram,   
com faca ou bala?   
— Este foi morto de bala,   
irmão das almas,   
mas garantido é de bala,   
mais longe vara.   
— E quem foi que o emboscou,   
irmãos das almas,   
quem contra ele soltou   
essa ave-bala?   
— Ali é difícil dizer,   
irmão das almas,   
sempre há uma bala voando   
desocupada.   
— E o que havia ele feito   
irmãos das almas,   
e o que havia ele feito   
contra a tal pássara?   
— Ter um hectares de terra,   
irmão das almas,   
de pedra e areia lavada   
que cultivava.   
— Mas que roças que ele tinha,   
irmãos das almas   
que podia ele plantar   
na pedra avara?   
— Nos magros lábios de areia,   
irmão das almas,   
os intervalos das pedras,   
plantava palha.   
— E era grande sua lavoura,   
irmãos das almas,   
lavoura de muitas covas,   
tão cobiçada?   
— Tinha somente dez quadras,   
irmão das almas,   
todas nos ombros da serra,   
nenhuma várzea.

(...)"

E abaixo a pintura de Candido Portinari, Os retirantes, grandiosa expressão do tema da morte:


Os retirantes, de Candido Portinari

segunda-feira, 30 de abril de 2012

O homem dos olhos azuis

                 Os olhos? Os olhos são azuis. Azul de cobalto, azul da Prússia, o de Lápis-Lazuli, o Ultramarino lá no fundo, algo clareado com pigmento branco, ou um azul prateado... talvez. Lembra uma palheta formada com tons de azul. Mas há um azul de céu e de mar. Ou um azul que vem de uma alma sossegada, serena, como um lago sem vento, ou o mar sem ondas.
Portinari: autorretrato, desenho de 1957
                 Também há um sol lá no fundo daqueles olhos azuis. Algo de amarelo, algo de dourado, que um pouco se esparrama ao redor e ilumina redondezas. Colore redondezas. Quando se vê, cores surgem nos rostos das crianças. Parece que bandeirinhas coloridas de festas juninas tomaram todo o espaço do Memorial da América Latina, ou a América Latina inteira, e tornaram todo o espaço festivamente colorido. Mas para quem é criança. Não no corpo, na alma. Coração de criança, olhar de criança, dessa curiosidade infantil singular de ver o mundo com olhos novos.
                 Eu vi os olhos azuis de Portinari.
                 Eu vi pessoalmente.
                 Eu vi através da cadeia biológica que replicou os olhos azuis que viam um mundo para ser pintado em outros olhos azuis que veem um mundo para ser construído. De olhos de pintor a olhos de engenheiro. Azuis. Os de João Candido Portinari.
                 Semana passada, Adalberto, um amigo, me telefonou. Era um convite: ir ver os painéis “Guerra e Paz” de Portinari junto com João Candido Portinari. Eu estava com febre, mas a febre maior era a de ir. E eu fui, e mais onze pessoas. Era um resgate de uma parte da história do pintor dos olhos azuis de alma imensa que de tão grande coração que tinha, tão grande amor sentia pela sua gente. Era comunista porque era a vontade imensa que ele tinha de que todo mundo fosse feliz. De que todas as crianças que ele pintou – que foram tantas – sorrissem felizes no dia luminoso do amanhã. E porque o coração era vermelho, o homem dos olhos azuis era comunista. Abracei o filho dele com meu coração vermelho gerando um link histórico com o pintor vermelho...
                 Por isso eu vi além dos olhos de João. Lá naqueles dois painéis gigantes, um coração imenso havia pintado para o mundo ver que o mundo há de ser bom, deve ser bom para todos. Sim à Paz. Guerra, não! Guerra é morte, é sofrimento, é angústia, é separação, é humilhação, é fome, é sede, é divisão, é ódio, é execração, é capitalismo. O rubro coração daquele homem imenso deixou lá nas Nações Unidas esse grito que ecoa para quem alma tiver: o mundo há de ser bom, há de ser justo, há de ser humano, há de ser de todos. Um dia com certeza.
As crianças e João Candido Portinari
                 Ao redor de João, o filho, crianças se acotovelavam. Queriam tirar fotos, trocar e-mails, congelar o tempo e guardar aquele momento que a menina de lágrimas nos olhos dizia que nunca mais ia esquecer. Você é filho de Portinari? Parecia um sonho. Verdade. Era real, ele tava ali, ao alcance do abraço delas. Uma garotinha de cinco anos perguntou: você ficou triste quando seu pai morreu?
                 Abraçar João, apertar sua mão, posar para fotos a seu lado, era contentar uma vontade de chegar mais perto daquele pintor que disse que a pintura tem que falar ao coração. Que disse que a pintura que não fala ao coração não é arte. Que disse que só o coração entende a arte, que só o coração nos poderá tornar melhores. Será por isso que hoje tantas crianças corriam em volta de João Candido, como se tivessem pulado das telas pintadas por Portinari, crianças coloridas descendo de suas poses, aos montes, correndo para abraçar seu filho?
                 O pai, Portinari, também não tinha falado que não conhecia nenhuma grande arte que não fosse íntima do povo? Não é por isso que chorava aquela menininha negra, entre o painel “Guerra” e o João a seu lado, sem conseguir definir se a emoção era maior porque entendia a dor daquelas mães do quadro com seus filhos mortos, ou por estar sendo abraçada pelo filho do homem que pintou a dor daquelas mães com seus filhos mortos?
João Candido e eu
                 Eu também abracei o filho do homem que pintou a dor daquelas mães com seus filhos mortos! Que foi como abraçar através do tempo o meu camarada pintor Portinari quando ele queria ser mais do que pintor, queria ser a voz do povo na câmara e no senado, porque sua alma queria ser muito maior do que cabia dentro de seu corpo, e queria ser comunista para ser grande, grande homem e grande artista, maior do que era. Que queria fazer mais do que semear “margaridinhas de bem-querer no baú dos vencidos”, como escreveu seu amigo Drummond, que falou daquela mão que crescia quando pintava e fazia "mais e faz do mundo-como-se-repete o mundo que telequeremos." O mundo para todos.
                 João Candido Portinari é para não esquecer também. Filho de peixe... A alma mansa, o sorriso fácil, a fala boa, o coração grande, o abraço imenso onde cabem todos os abraços de todas as crianças ou de todos aqueles que têm boa vontade... E que agradeceu àqueles comunistas que lhe haviam feito lembrar-se dos tempos bons para seu pai.
                 Para contar como foi que eu conheci João Candido Portinari, não dava para não ser com meu coração... O resto eu deixo que Carlos Drummond finalize, pois meu coração tem seus silêncios:


A MÃO


Entre o cafezal e o sonho
o garoto pinta uma estrela dourada
na parede da capela,
e nada mais resiste à mão pintora.
A mão cresce e pinta
o que não é para ser pintado mas sofrido.
A mão está sempre compondo
módul-murmurando
o que escapou à fadiga da Criação
e revê ensaios de formas
e corrige o oblíquo pelo aéreo
e semeia margaridinhas de bem-querer no baú dos vencidos
A mão cresce mais e faz
do mundo-como-se-repete o mundo que telequeremos.
A mão sabe a cor da cor
e com ela veste o nu e o invisível.
Tudo tem explicação porque tudo tem (nova) cor.
Tudo existe porque foi pintado à feição de laranja mágica
não para aplacar a sede dos companheiros,
principalmente para aguçá-la
até o limite do sentimento da terra domícilio do homem.
Entre o sonho e o cafezal
entre guerra e paz
entre mártires, ofendidos,
músicos, jangadas, pandorgas,
entre os roceiros mecanizados de Israel,
a memória de Giotto e o aroma primeiro do Brasil
entre o amor e o ofício
eis que a mão decide:
Todos os meninos, ainda os mais desgraçados,
sejam vertiginosamente felizes
como feliz é o retrato
múltiplo verde-róseo em duas gerações
da criança que balança como flor no cosmo
e torna humilde, serviçal e doméstica a mão excedente
em seu poder de encantação.
Agora há uma verdade sem angústia
mesmo no estar-angustiado.
O que era dor é flor, conhecimento
plástico do mundo.
E por assim haver disposto o essencial,
deixando o resto aos doutores de Bizâncio,
bruscamente se cala
e voa para nunca-mais
a mão infinita
a mão-de-olhos-azuis de Candido Portinari.


(Carlos Drummond de Andrade)


Detalhe do painel "Paz" de Candido Portinari