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terça-feira, 18 de novembro de 2025

Viagem nordestina - I

Pernambuco não é definível, aqui a imaginação captura qualquer racionalidade. 

La Ursa
Na porta do prédio Oceania, na praia de Pina, cenário para o filme "Aquarius" do diretor Kleber Mendonça, iniciamos uma viagem dias atrás. De lá, vagueamos entre as figuras de Brennand, na ilha em frente ao marco zero do Recife. Alguns apressados em definições rápidas, diriam: é um surrealista. Não, Brennand é pernambucano. Perambulamos pela rua do Bom Jesus, olhando os prédios velhos, espremidos, de onde figuras misteriosas se avistam, e se projetam, de vez em quando, sobre os transeuntes. Até as árvores do centro velho do Recife não são eretas, desequilibram-se, torteiam-se no espaço, desenham seres de outro mundo. De outro mundo, como a Perna Cabeluda, a La Ursa e o Papangu.

No interior da antiga casa de Olinda onde ficam guardados os bonecos do carnaval, a sensação de que estamos margeando mundos fantásticos se acentua. As figuras carnavalescas nos sorriem um sorriso tão indefinível quanto a cultura de onde venho: eu é quem não ficaria sozinha ali à noite com esses bonecos que nos olham fixamente, enquanto riem!… Saindo de lá, caminhamos por ruas e casas coloridas que enfeitam o carnaval todos os anos, mas também entramos em antigas igrejas e velhos mosteiros, com seus padres-anjos, que recebem fiéis na porta do templo com abraços. Um deles nos fez um aceno de simpatia e acolhimento. Na mesma igreja onde se encontram os restos mortais de Dom Hélder Câmara... 

Caruaru é de onde vim para esta vida e foi pra lá que seguimos. Antes, entramos na casa-museu do mestre da xilogravura, J. Borges, em Bezerros. Eu tinha viajado com a obsessão de encontrar um coração, qualquer um, em minha Caruaru. Das mãos que traçava figuras do imaginário fantástico daquele pedaço de Brasil, ilustrador maior dos poetas do Cordel, do Repente e das histórias que se espalharam por todos os sertões, intensificando ainda mais o imaginário nordestino, adquiri uma pequena reprodução de uma xilogravura do mestre, estampada em azulejo: era um coração vermelho, chamejante de tons de rosas, azuis e amarelos, radiado de branco. Levei-o comigo, como uma relíquia, meu coração. 

Minha Caruaru, o que restou dela, “é só um retrato na parede, e como dói!” (plageando Drummond). Nordestinos de vários cantos, com suas demandas de comprar panos, tecidos e roupas, fez da cidade um imenso comércio. De tudo que há no mundo, de roupa, tem lá em Caruaru. Meu velho rio Ipojuca, nas margens onde brinquei tanto na minha infância, é um esgoto, cheira mal, e a casa onde nasci não existe mais. Mesmo assim, o povo permanece na mesma labuta pela existência, assim como carrega a mesma veia criativa que explode nas festas juninas todos os anos. Algum olhar apressado pode ir embora sem enxergar a pulsação que cá existe, porque nordestino é desconfiado mesmo, pois gosta de parecer o que não é, pra rir depois… 


No Alto do Moura, onde viveu outro mestre, o Vitalino, a imaginação se evidencia. Dona Nicinha arregimentou as mulheres e protagoniza um movimento feminista de criadoras de figuras feitas em barro (antes restrita aos homens). Mulher pode fazer o que quiser, mulher pode criar arte, diz ela, enquanto seu filho surge na escada, um filho adulto com síndrome de down. No ateliê dela, imagens expressivas, totêmicas, orgânicas, intensas, nos chamavam. A "Abraçadeira", escultura de mulher preta e braços muito longos, criada por ela, nos enlaçava, enquanto uma lagartixa nos mostrava a língua. "Sou discípula do mestre Galdino", faz questão de apontar. Bichos com vários chifres nos divertiam, enquanto uma pomba branca sobrevoava um par de mãos. E aquele coração que a senhora criou? - Já tem outros donos… Qualquer hora faço outros.

A estrada nos chamava novamente, e partimos em direção a São José do Egito e Itapetim, terra dos meus pais, avós, bisavós… São José me ficou oculta desta vez, mas me pregou uma peça. A casa onde nos hospedamos era quase uma entidade, começou a falar comigo, não nos queria ali, atormentou meu sono, reativou meus medos, tive que gritar que não! não quero falar com você, aquelas sombras que passavam quase me agredindo, entidades donas daquela casa que invadimos com nossas presenças, bateram a porta de alumínio nos meus dedos, gritei de dor, elas riram, nos suportaram por uma noite e se livraram de nós na manhã seguinte. E nós dela, não dormiria ali de novo. 

Itapetim é a terra onde os poetas do Cordel e do Repente brotam em abundância, da forma mais natural. De lá são meus pais, registrados em cartório. No centro da praça da matriz, duas estátuas nos chamavam para abraçá-las: Padre João Leite, um antigo vigário que pregava que o povo tinha que se libertar da exploração, tinha que lutar e criar outro mundo, de justiça. O sertão vai virar mar! Um pouco mais atrás dele, o poeta Rogaciano Leite, com o braço esquerdo estendido, recitava um poema, enquanto concordava com o padre João. Rogaciano tem um poema - Os trabalhadores - inscrito numa pedra na Praça Vermelha, em Moscou. São nossos primos. Mas ainda tem nosso bisavô, Jovino Leite, que virou nome de rua em Itapetim. Ele era uma espécie de médico, misto, talvez, de curandeiro, pois atraía doentes de todos os lugares, de Pernambuco, Ceará, Paraíba, que o procuravam para se queixar - e se curar - de algum problema de saúde, nos idos dos primeiros anos do século XX… Isso bem antes do Padim Cícero e de Frei Damião…

Novamente a estrada se abriu, o sol andava alto, iluminado e quente, e no asfalto nos enganava com sugestões, quase delirantes, de alagamento no pavimento. Até o sol não é definível no sertão; lá ele também brinca com nossas certezas, nos faz ver o que não existe, pois o que não existe existe tanto quanto o que existe… Sorriso. Um portal à nossa frente, São José do Belmonte nos convida a entrar nas ruas da pequena cidade. E entrar no Castelo Armorial de Ariano Suassuna, feito por Clécio Novaes, no meio do sertão. Olhando assim, Belmonte é uma cidadezinha pequena comum; olhando assado, um universo de figuras míticas, místicas, misturadas a cangaceiros, profetas, reis e rainhas e a… Dom Sebastião, o rei de Portugal que nunca ninguém viu seu corpo morto e, por isso costuma renascer pelos recantos do Brasil. Iluminando o surgimento de figuras messiânicas como Antonio Conselheiro, de Canudos, e João Ferreira, da Pedra do Reino. O mar vai virar sertão!

(CONTINUA NO PRÓXIMO POST)