Fomos nos movimentando entre as figuras que habitavam a mente e o coração de Suassuna, seu reino mágico, onde a cultura brasileira - e a nordestina - é a maior riqueza a ser resguardada por todos nós. Em todas as colunas, paredes e tetos, arabescos pintados direto por Clécio em tons vermelhos, amarelos, azuis, verdes e terras, decoram e configuram a alma do castelo. Tudo absolutamente em acordo com o criador do Movimento Armorial. Há um andar dedicado ao cangaço, com fotografias, apetrechos, chapéus e roupas dos cangaceiros, mas também dos homens da Volante, os “macacos”. Crianças de uma escola vizinha chegaram e pediram licença à monitora para entrar. Ela consentiu, mas disse pra ninguém gritar. “Todo santo dia eles querem vir aqui”, disse ela. Fiquei pensando: como crescerão essas crianças, tendo frequentado esse castelo armorial mouro em Pernambuco, com suas estórias e histórias despertando fantasias e sonhos, falando de reinos distantes, de lugares chamados de Portugal e de Espanha? Uma gárgula verde concordou comigo, enquanto dois galos azuis e brancos, irmãos siameses, se entreolharam tocando os bicos. Aqui é o lugar onde o mistério habita.
Parte da biblioteca de Ariano está lá, em uma estante também doada por ele. Velhas espingardas, botas e chinelos que calçaram os pés de antigos pernambucanos, pendem das paredes. Clécio recolhe objetos assim por todo o sertão, tendo acumulado uma riqueza cultural histórica sobre a vida, os costumes, a indumentária, as ferramentas de trabalho dos homens e mulheres do campo. Seu irmão nos abordou na calçada do castelo e começou a nos contar sobre o cangaço, com tanta intimidade, com tamanha paixão, que nos arrancou do colo de Ariano e nos levou ao colo de Lampião, Corisco e Antonio Silvino. O sol ardia sobre nossas cabeças, Juazeiro nos esperava, já não éramos as mesmas que iniciamos esta viagem.
Juazeiro do Norte, terra do padim padre Cícero, o renegado pela igreja católica, lá pelos idos do século XIX, porque acreditara que jorrou sangue da boca de uma mulher preta a quem ele tinha dado a hóstia consagrada em comunhão. Fomos ver a santa preta, com seu vestido azul celeste vibrante, o mesmo azul do céu sem nuvens que cobre a terra seca do nordeste. Romeiros tinham chegado, aos montes, para a romaria de finados. Missas se revezavam entre as igrejas, e os chapéus de palha ainda são em quantidade suficiente para reverberar o dourado em movimentos de saudação ao santo padroeiro. Sertanejos de tantos lugares, das Alagoas ao Rio Grande do Norte, ainda são atraídos para as promessas e para as bênçãos do santo, padrinho dos nordestinos, padre Cícero Romão Batista.
Mas era preciso continuar a viagem. Mais de quinhentos quilômetros entre Juazeiro e Teresina, estrada difícil, farta de caminhões grandes e pequenos, que era necessário ultrapassar com cuidado sempre. A paisagem mudava de agreste e seca aos verdes dos carnaubais. No carro, ouvíamos Torquato Neto, o poeta piauiense que se suicidou aos vinte e sete anos, amigo de Caetano, dono de composições tão lindas quanto um dos hinos da minha própria vida: “mamãe, mamãe, não chore, a vida é assim mesmo eu fui embora. Mamãe, mamãe não chore, eu nunca mais vou voltar por aí…” Eu, que sempre volto a visitar minha mãe, como estou fazendo agora.
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| Artesão de Teresina |
Minha mãe nos chamava, queria saber, lá de São Luís, que horas a filha e a neta iriam chegar. Lá pelas quatro da tarde, mamãe. Temos horas de estrada ainda, de Teresina a São Luís, ouvindo João do Vale, enquanto gigantescos caminhões nos cortavam, ou cortávamos, pela estrada ruim. “De Teresina a São Luís” é o nome de uma canção de João do Vale, compositor maranhense que Nara Leão levou o Brasil a ouvir, cantando - ela e Maria Bethânia - “Carcará”. Depois de ouvir tudo deste cantor, fomos ouvir Josias Sobrinho, compositor, maranhense também, que conheci pessoalmente e que me encanta quando canto suas canções, como esta “Dente de ouro”: “Se eu tivesse no peito um novelo, eu tecia com ele um caminho, com o rumo voltado pra dentro, e aberto pro mundo todinho”...
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