Mostrando postagens com marcador Mercado de arte. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Mercado de arte. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Indústria cultural ou variedade?

Foto referente ao filme "Quero ser John Malcovitch"
No último dia 17 de setembro, o jornal português “Avante!”* publicou um artigo de autoria de Manuel Augusto Araújo, arquiteto e crítico de arte português, intitulado “Tempo de antena cultural”. Como concordo com suas opiniões expressas nesse texto, tomei a liberdade de editá-lo e adaptá-lo à nossa realidade brasileira, que não é muito diferente; talvez seja mesmo pior do que a portuguesa, em termos de descaso das autoridades em relação à problemática da Cultura.

Manuel começa seu artigo criticando o atual governo português, que se deixa levar pela exaltação do mercado financeiro, “o que não desresponsabiliza os artistas, os produtores culturais que concorrem para esse estado de coisas actual. Degrada a cultura nos seus múltiplos sentidos de afirmação da condição humana e da transformação da vida. O que não é compaginável com a sedução pelo dinheiro”.

Ele critica profundamente as políticas culturais baseadas nas regras do Mercado Financeiro. “O que anteriormente tinha um forte vínculo com o saber, a transmissão do saber e do saber-fazer na cultura e na ciência, hoje são achas na fogueira da promoção. O fundamental, o que interessa é vender, vender a qualquer preço”.

No nosso caso brasileiro, estamos passando por uma fase, há décadas, de supremacia das políticas que favorecem as indústrias culturais e suas culturas massificadas. Nossos governos, incluindo o atual, derramam bilhões de reais para manterem os sinais de televisão da péssima Rede Globo, por exemplo, que leva seus padrões de vida, de pensamento, de estilo para todas as regiões do nosso país. Estamos atravessando uma fase que provavelmente nos levará a uma standardização da nossa tão rica e variada cultura brasileira. A uniformidade cultural - já falei isso aqui há algum tempo atrás - é a morte da cultura!

Banda de pífanos de Caruaru
Ver a questão cultural como mais uma forma de agregar mais dinheiro aos bolsos dos já ricos agentes do Mercado Financeiro é o que tem sido a realidade do que vivemos. Mesmo que os agentes públicos atuais neguem esta forma de ver as coisas, mesmo assim não vemos acontecer de serem tratados no mesmo patamar o último espetáculo dançante de Cláudia Raia e os músicos da Banda de Pífano de Caruaru. Se o Estado brasileiro pouco se importa atualmente em incentivar de norte a sul do Brasil as ricas e variadas manifestações culturais do nosso povo, acontece que isto continuará sendo feito por quem quer ter lucro, ou seja, apostando na mais nova dupla sertaneja que gere milhões, porque dar incentivo aos brincantes do Bumba meu Boi da Maioba de São Luís do Maranhão não interessa ao Mercado.

Diz Manuel, muito bem dito: “Para quem detém poder na área da cultura, as manifestações culturais são instrumentos de promoção publicitária dos bens culturais. Uma visão que não se distingue da dos departamentos comerciais, do marketing de qualquer empresa, actue ou não actue no campo da produção de bens culturais”.

Ele continua apontando a visão de mercado que tem seu foco no lucro e não na promoção do saber:

Uma instalação de uma edição qualquer
da Bienal de Arte de Veneza
Bienais de artes, festivais literários, colóquios, exposições, lançamento de livros e discos, e o que a imaginação do mercado endrominar, que se multipliquem não com qualquer objectivo cultural mas a bem da promoção publicitária, da venda do «produto» independentemente do valor efectivo”.

“A cultura é vista como um enorme circo iluminado por um sol enganador em que a omnipresente linguagem dos mercados esvazia de significado da cultura, do que é cultural na diversidade da transmissão e aquisição de saberes”.

Diz mais:

“O direito à cultura reduz-se ao direito dos consumidores de escolher um livro, um filme, ir a um concerto, de visitar museus ou exposições de que perdeu o norte nos catálogos de farta oferta em que deliberadamente se confunde o que é entretenimento, padronizado por indústrias que exploram um gosto médio sem espessura, que não obrigam nem incentivam qualquer reflexão, com as da criação artística e cultural que promovem e incentivam a transmissão e a produção de conhecimento”.

Na minha área - a das artes plásticas - por exemplo, nós que não temos um marchand, um agente qualquer do mercado de arte, ficamos à mingua em nossos ateliês, felizes que somos de vender um quadro a cada seis meses, ou de expor nas paredes de algum restaurante, que é o que restam aos artistas que vivem de fora do mercado. Pior do que isso, é a apropriação do Mercado Capitalista sobre o estilo da arte que se quer impor como prática, a tal da “arte contemporânea” que se limita à arte de conceito, à videos, à instalações, à pinturas sem sentido. Eu e mais tantos outros pintores, fazemos arte contemporânea simplesmente porque somos contemporâneos! Estamos vivos e bem vivos! A arte figurativa retoma um grande fôlego nos tempos atuais. Mas no Brasil não há um incentivo à variedade da produção artística, há o artista-standard que agrada aos agentes de Mercado. Em geral, eles são produzidos na ECA-USP e FAAP, em São Paulo, e na Escola do Parque Lage, no Rio. Essas escolas produzem para o Mercado. E prestam um grande desserviço à arte brasileira, quando espalham ideias do tipo “desenhar não é mais preciso”. 

Isso sem falar no fato de que as artes plásticas se converteram em um dos melhores produtos para aqueles que precisam lavar dinheiro. Traficantes e corruptos de todos os tipos têm investido muito dinheiro no chamado "mercado de arte".

Bumba-meu-boi do Maranhão
Mas o Estado brasileiro também se demitiu em promover a cultura e os artistas que não passam pelo crivo da indústria cultural. Parece que em Portugal também, como afirma o crítico Manuel Augusto: “A primeira das muitas causas de não poder haver qualquer expectativa desse género é a demissão do Estado em promover a cultura, nomeadamente através do serviço público de rádio e televisão, meios que tinha a obrigação de utilizar. Em linha com essa demissão, estão os critérios de atribuição de subsídios à criação artística e cultural que deveriam privilegiar a descentralização cultural e não os de uma suposta valorização da produção artística nacional nos mercados internacionais com critérios mais que duvidosos”.

Ele continua criticando essa política de incentivo a uns poucos e de descaso a muitos artistas. “Veja-se o apoio concedido à dupla João Louro/Maria do Corral (artistas portugueses contemporâneos), que se inscrevem na grande farsa que é a arte contemporânea, que tanto deslumbram Barreto Xavier e no apoio recusado à XVII Festa do Teatro/Festival Internacional de Teatro de Setúbal, com significativas diferenças de custos em euros, a bitola da Secretaria de Estado da Cultura, para se perceber os não desígnios culturais da governação”.

“As palavras-chave dessas políticas ditas culturais são mercado e promoção”. 

No nosso caso, repito: a falta de política cultural do governo brasileiro permite que ela seja feita e colocada em prática por quem quer gerar e obter lucro com a produção artística e cultural. O resultado, que já vem ocorrendo há décadas, é uma cultura brasileira que se empobrecerá na direção de uma uniformidade cultural, imposta pela indústria cultural. Não queremos um Brasil standardizado culturalmente! Queremos um Brasil rico culturalmente, com sua cultura variada em seus quatro cantos!

O que Manuel Araújo critica lá, criticamos cá. Nós, produtores culturais, além de tudo somos obrigados a não limitar nossa ação ao que produzimos, mas - para que não morramos como artistas - a promover nós mesmos nossas obras. “Há uma fé ilimitada que todas as acções de promoção, desde que esse seja o objectivo primordial, são boas, não interessando se são excelentes ou medíocres”, diz ele. “Todos sabem, menos os governantes e seus agentes, que promover a mediocridade cultural tem o efeito de amplificar a mediocridade (grifo meu). Legitimar a mediocridade até se atingir o ponto de não retorno da ausência, do vazio cultural, no aniquilamento da qualidade, empurrando os cidadãos para a iliteracia cultural, o que os amputa da capacidade do exercício da cidadania”.

“A afirmação e a convicção de que «a cultura» gera lucro, o ex-libris da Economia da Cultura e dos enormes equívocos das indústrias culturais e criativas, onde se confundem, sem inocência, actividades industrializadas de entretenimento com actividades sem lucro financeiro. Legitima os critérios da economia do dinheiro, os interesses dos patrocinadores, a contabilidade dos públicos.”

E como o capitalismo é um sistema que se baseia no lucro puramente, vai transformando o mundo num imenso depósito de bens de consumo e transformando a todos em consumidores. Mas nós somos mais do que consumidores neste mundo de meudeus! Somos todos diferentes, e esta é nossa riqueza! Somos seres humanos, cada um com cada cara, cada cor, cada história de vida...


..............
* Jornal Avante!, órgão do Partido Comunista Português

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Como pintar um quadro de 11 mil euros

François Cluzet e Omar Sy, atores do filme
Neste final de semana, às vésperas das eleições municipais, fui assistir ao filme “Intocáveis”, dos diretores franceses Eric Loredano e Olivier Nakache.

É um belo filme, do começo ao fim. A história, tocante. Conta como Driss, um senegalês morador da periferia de Paris, consegue um emprego de “tomador de conta” de um rico aristocrata, Phillipe, que ficou tetraplégico após uma queda de parapente. O filme é baseado na história real entre o milionário Phillipe Pozzo di Borgo e seu acompanhante, o argelino Abdel Sellou.

O papel desempenhado pelo ator Omar Sy, que morou na periferia de Paris assim como seu personagem Driss, traz à tona algumas reflexões. Em primeiro lugar, como se trata de uma história de amizade onde se cria uma profunda relação de confiança entre dois homens de duas classes tão distintas, o grau de humanidade implícita nessa história é muito comovente. De um lado, um negro pobre, que mora com a mãe e irmãos num pequeno cubículo de um bairro da periferia. Sua mãe é faxineira em prédios de escritórios. Seu irmão mais novo, traficante. Ele próprio, passou uma temporada no presídio por alguma infração cometida anteriormente. Do outro, um homem rico, branco, que mora num apartamento imenso e luxuosamente decorado, mas que está tetraplégico e depende, assim, completamente dos cuidados de Driss.

O filme mostra, todo o tempo, as diferenças entre o mundo de Phillipe – o dos ricos – e o mundo de Driss e sua família – os pobres.

Não indo muito longe na interpretação, me atenho ao que mais me interessa desse roteiro. Além das evidentes diferenças entre os dois mundos, o filme também mostra como existe uma lacuna muito grande dentro da cultura e da arte, que também opera uma separação de classes. Intencionalmente ou não, o filme ridiculariza a prática cultural burguesa: a arte contemporânea é um embuste, uma forma a mais de investimento financeiro; as sessões de ópera e música clássica, para platéias da elite “bem-arrumada” são, aos olhos de Driss, pura chatice; os poemas que Phillipe (François Cluzet) costuma recitar, ele também ridiculariza. A educação que o menino pobre e negro recebeu em sua escola não é a mesma educação refinada do patrão Phillipe: o acesso à literatura, a museus, a recitais de música, a assimilação dos símbolos da tradição cultural e artística ocidental passaram bem longe da cultura “aprendida” por Driss na rua, nos guetos, na luta pela sobrevivência.

Há uma cena em que Driss acompanha Phillipe a uma galeria onde está havendo uma exposição de arte contemporânea. Os dois param diante de uma tela em branco, com uma mancha vermelha de tinta jogada na tela. Phillipe diz que aquilo lhe transmite calma. Driss, gozador do modo de vida do patrão, lhe garante que poderia fazer melhor do que aquilo. Uma atendente se aproxima e anuncia o valor do quadro: mais de 40 mil euros! Driss não se conforma como alguém pode pagar tão caro por uma tela branca manchada de tinta. O mesmo que dizer que o mundo burguês de Phillipe tem também códigos culturais guiados pelo valor monetário. Nesse mundo onde as regras de etiqueta tornam tudo uma perfeita chatice, os valores subjetivos e as relações humanas estão também submetidos ao poder do dinheiro. Driss parece mostrar a Phillipe que em seu mundo falta naturalidade, espontaneidade e, num certo sentido, profundidade e sinceridade nas relações.

Mas Driss resolve pintar um daqueles quadros. Se vale tanto assim, não custa tentar. Phillipe, que já se divertia com esse ajudante que ia contra as regras de seu mundo em todos os momentos, resolve sugerir a um amigo, rico como ele, que comprasse o quadro de Driss por 11 mil euros. O amigo, um investidor, não se arrisca a perder um provável grande negócio. Enquanto isso, Driss e Phillipe se divertem. E nós, na platéia, nos divertimos com o ridículo desses signos burgueses que incluem a chamada arte contemporânea. Que não diz nada, não significa nada. Mas vale muito dinheiro!