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sexta-feira, 1 de março de 2019

As Marias, Mahins, Marielles, malês

 

E começa o carnaval, a festa mais longa do Brasil, que foi estendida além dos clássicos três dias. E não, não termina mais na quarta-feira de cinzas… E viva a folia, que ninguém é de ferro! Está aberto o reinado de Momo e que ele traga alegria a este país entristecido por um governo parvo, caótico, perdido! Salve Momo, abaixo Bolsonaro!

O nosso carnaval é algo herdeiro do espírito original das festas pagãs. São aqueles dias em que todo mundo se esquece de tudo o que há de ruim e mergulha nas festas pelas ruas do país.

Mas foi no tempo de um papa, Gregório Magno (590-604), que o velho espírito da Saturnália - um festival que durava dias e onde reinava a mais completa orgia dos cidadãos romanos - migrou de vez para a festa do “dominica ad carnes levandas”, o nosso Carnaval, uma combinação de desfiles, festas, bebidas, comidas, fantasias, que se estende até o primeiro dia da Quaresma. Se estendia, pois nestes tempos tristes melhor empurrar a alegria até o final de semana seguinte. Pois, depois, tudo volta ao cinzento da luta pela sobrevivência… E do nefando projeto de reforma da previdência ameaçando a todos nós.

Carnaval, tempo de se fantasiar de qualquer coisa e sair por aí, vestido de qualquer coisa, no grande teatro da folia. Tempo de usar máscaras, de criar uma persona, de se vestir de outro alguém…

O triunfo da dúvida, Victor Brauner, 1942
Num certo sentido resgatando também o velho teatro grego, assim como os personagens da Commedia Dell’Arte da Idade Média, como Pierrot, Arlequim e Colombina, que aqui se misturam aos bonecos de Olinda, ao Axé da Bahia, aos Fofões do Maranhão, aos mendigos vestidos de rei porque o império é o da alegria que se espalha… Mesmo que não seja só alegria, ou que a alegria seja um tanto só na superfície... Estamos em tempos estranhos...

O carnaval carrega em si algo de tristeza… Assim como o samba, que entoa o grito do mais profundo do peito do nosso povo negro. Pois por trás da máscara, há a realidade da vida no Brasil destes tempos. E por isso os palhaços do carnaval escancaram um sorriso, mas denunciam uma tristeza, como na lágrima que escorre do olho de Pierrot…

E a Estação Primeira da Mangueira neste 2019 leu a alma do povo e resolveu contar tudo o que se passa, pra geral. Salve! Salve! E salve Marielle Franco e todas as grandes mulheres de luta!

História pra ninar gente grande

Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasil que se faz um país de Lecis, jamelões
São verde e rosa as multidões

Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar

Na luta é que a gente se encontra
Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500
Tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato

Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati

Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês...
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E aqui vai minha homenagem, pra não esquecer nem na folia:

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Então é Natal?

As colunas do Templo de Saturno em Roma
A data de 25 de dezembro está simbolicamente ligada a festividades e rituais que datam de milhares e milhares de anos. Não, o espírito natalino não foi inventado por católicos, mas adaptado de rituais pagãos antigos. Este período se relaciona também, astronomicamente, ao fenômeno do Solstício de Verão (ou de Inverno, de acordo com o hemisfério).

A palavra “solstício” vem da junção de duas palavras em latim: Sol + Sistere (o que não se move). Solstitius, portanto, significa "ponto onde a trajetória do sol aparenta não se deslocar". Em astronomia, é o ponto exato em que o Sol se encontra numa inclinação de 23,5º em relação ao Equador. No Solstício de Verão, cuja entrada se dá exatamente neste 21 de dezembro aqui no Hemisfério Sul, ocorre o dia mais longo do ano. Ao contrário, no Hemisfério Norte, o Solstício de Inverno apresenta um dia mais curto e uma mais longa noite. Este fenômeno ocorre por causa dos movimentos de rotação e translação da Terra. A luz é distribuída de forma desigual no planeta. Luz e escuridão em contraponto...

Este período teve grande importância para muitas culturas desde tempos remotos, tanto no mundo ocidental quanto no oriental, como é o caso da China antiga. Muitos povos da Antiguidade realizavam grandes festivais, envolvendo toda a comunidade, para celebrar a mudança de tempo. O monumento de Stonehenge, por exemplo, um histórico agrupamento de pedras localizado no Reino Unido e erigido por volta de 2.500 anos a.C, está construído de forma a receber os últimos raios do sol do solstício de inverno ou os primeiros raios do solstício de verão. Esses habitantes do continente europeu dos primeiros séculos da Era Cristã - denominados de pagãos pelos católicos - realizavam grandes rituais e festivais ligados à agricultura e à mudança de período.

O monumento de pedras de Stonehenge, Reino Unido
Um dos festivais mais importantes ocorreu na antiga Roma, a Saturnália. O nome é uma homenagem ao deus Saturno (Cronos, na mitologia grega). O festival durava até sete dias. Os romanos celebravam a data em especial no Fórum Romano e no Templo de Saturno, localizados no Capitólio. Realizavam-se banquetes e festas onde todos os cidadãos podiam participar, durante as vinte e quatro horas destes sete dias, ininterruptamente. O jogo era permitido, assim como todas as normas sociais eram suspensas, senhores e servos trocando de papéis. E claro que sempre desembocavam em grandes orgias. O poeta Catulo dizia que esses eram “o melhor dos dias”.

Saturno, o deus da mitologia romana, é ligado à agricultura e seu símbolo é a foice. Deus da Colheita, ele ensinou ao homem a arte do cultivo da terra, que recompensa o trabalho com seus frutos. A Saturnália era, então, por uma lado, a comemoração de um ano bom de colheita e, do outro, o final de um período e início de outro, onde as esperanças se renovavam. Eles mantinham vivas as lembranças dos tempos míticos da “idade de ouro” quando Saturno reinava e havia abundância, fartura, igualdade, paz. Lembremos que o principal meio de subsistência naqueles tempos vinha do trabalho dos camponeses, que também geravam renda aos poderosos da época.

Durante a Saturnália se realizavam sacrifícios a Saturno. As festas e divertimentos envolviam toda a sociedade. Além dos banquetes e jogos, os romanos bebiam, faziam piadas e participavam de jogos de azar, o que era proibido nos outros meses do ano. Também era costume a visita aos amigos e a troca de presentes, pequenas figuras em terracota ou prata e velas de cera, que representavam a luz que ilumina a escuridão.

"Saturnália", Ernesto Biondi, escultura, 1909
Muitos estudiosos do tema da Saturnália apontam que todos os homens, escravos ou senhores, no período destas festas ficavam em pé de igualdade. Escravos não trabalhavam, podiam usar a mesma roupa que seus senhores, comer com eles, jogar dados… Não se realizavam atividades “sérias” durante o festival. Ninguém trabalhava, a não ser os cozinheiros. Os direitos eram iguais para todos, pobres e ricos; todos podiam participar de tudo referente ao festival. O mal-humor estava proibido (segundo Luciano de Samósata), assim como as brigas, as ameaças, as auditorias… Toda a zombaria estava liberada! Era proibido não ser feliz!

Também era o período gelado do ano, mas os corpos se aqueciam com as festas e com o vinho. “Estamos em dezembro, mas a cidade toda está coberta de suor”, escreveu o filósofo Sêneca em uma de suas cartas. Todos celebravam. Os escravos até mesmo aproveitavam o período para zombar de seus senhores. Podiam dizer o que queriam em tom de piada e os senhores eram obrigados a achar graça. Os que não conseguissem rir de si mesmos, eram forçados a pular de cabeça dentro d’água. O poeta Horácio conta, em um de seus textos, um diálogo de um escravo com seu senhor:

- “Quem sabe não é você o mais tolo de nós dois? […] Você, que tem controle sobre mim, é sujeito a tantas outras coisas; e é guiado como uma marionete, por fios e cabos que não domina”.

Mas outras festas pagãs, ao longo da história, também homenageavam outros deuses e conduziam outros rituais nessa mesma época onde ocorria o Solstício de Inverno. Muitas delas em homenagem direta ao deus Sol que, em Roma, foi oficializada pelo imperador Aureliano no ano 270. O Sol Invictus era agora a divindade número um do Império, cujo culto perdurou até à adesão de Roma ao cristianismo, com a conversão do imperador Constantino. Este monarca tinha o Sol Invicto cunhado em seu brasão oficial.

Por volta do século IV, exatamente no ano 354, foi que se oficializou o dia 25 de dezembro como a grande data do calendário religioso cristão. Ocorre que na Pérsia, muito antes disso, o deus Mitra era homenageado com uma festa denominada “Natalis Solis Invicti” (nascimento do sol invencível). A igreja da época se apoderou dessas festas pagãs, assim como de seus conceitos, e inventou o Natal, determinando que Jesus Cristo teria nascido nesta data. Ocorre que o simbolismo do Sol carrega forte representatividade. Então era preciso que a luz do dia se recolhesse cedo trazendo a longa noite do Solstício de Inverno, para que um outro Sol pudesse brilhar, para que a Terra assistisse ao nascimento da Luz maior, surgida naquele ponto da Terra para onde a luz de Vênus, a Estrela-Dalva, apontava: o nascimento do Menino que viria para salvar todos os seres. Ao longo da história, enquanto se espalhava pelo mundo e dominava povos bárbaros e pagãos, a Igreja foi criando o Natal, mantendo algo daquele espírito festivo original… Ainda hoje visitamos e compartilhamos o banquete com amigos e parentes; trocamos presentes, festejamos...

Mas algo do espírito original das festas pagãs chegou até nós no período do Carnaval, aqueles três dias onde a Igreja faz vistas-grossas aos prazeres do corpo. Foi no tempo do Papa Gregório Magno (590-604) que o espírito da Saturnália migrou de vez para a festa do “dominica ad carnes levandas”, o nosso Carnaval, uma combinação de desfiles, festas, bebidas, comidas, sexo, fantasias, que se estende até o primeiro dia da Quaresma, a Quarta-Feira de Cinzas. Desta forma, as saturnálias romanas se mantém nesse espírito orgiástico e alegre, quando também assistimos a troca de papéis: o rei se veste de mendigo e o mendigo, de rei… Mas este é um outro tempo...

Por enquanto é Natal...

E já que temos que terminar, desejando um Ano Bom - de colheitas, como antigamente - aqui desejo que os raios do sol deste Solstício de Verão no Hemisfério Sul iluminem nossos dias e nosso Brasil, afastando para longe a longa noite que parece se anunciar… Que o “Sol Invencível” que ilumina nosso futuro nos alcance logo com seus raios!

"Saturnália", Lawrence Alma-Tadema, óleo sobre tela, 1880

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Máscara negra

"Máscara negra" é uma das mais belas músicas criadas para a folia brasileira, pelo grande compositor Zé Keti. Música bela e triste. Brinquei um pouco com este tema hoje, de um jeito solto, leve, como quem afina o instrumento. Junto com a máscara negra, o "Som do pandeiro" que espera ser finalizada para viajar para Madrid em junho.

Bom carnaval a todos!




Máscara Negra


Quanto riso, oh, quanta alegria!
Mais de mil palhaços no salão
Arlequim está chorando
Pelo amor da Colombina
No meio da multidão.
Foi bom te ver outra vez
Tá fazendo um ano
Foi no carnaval que passou
Eu sou aquele Pierrô
Que te abraçou e te beijou, meu amor
A mesma máscara negra
Que esconde o teu rosto
Eu quero matar a saudade
Vou beijar-te agora
Não me leve a mal
Hoje é carnaval!
Som do pandeiro, Mazé Leite, óleo sobre tela, 2015 - in progress

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

“Hoje tem espetáculo!”


É Carnaval. De hoje até quarta-feira de cinzas as ruas do Brasil serão os lugares da alegria, da folia, da brincadeira, esquindô, esquindô-lelê...

Quando eu era criança, este período me atraía de forma estranha: eu tinha medo de uma figura misteriosa, mascarada, que invadia minha casa com sua feiúra, correndo atrás de mim que, apavorada, me escondia embaixo da cama, com o coração nas mãos e muito, muito medo dele! Trata-se de uma figura coberta dos pés à cabeça, com uma máscara em geral muito feia e que se chama Papangu. Até que um dia descobri que o papangu era meu tio...

Essa figura folclórica do carnaval nordestino, especialmente pernambucano, parece ter surgido em Pernambuco no século XIX. Mas as origens mais antigas desta figura provavelmente remonta às personagens da Commedia dell'Arte. Que foi um movimento de cultura popular na Itália do século XV, que reunia trupes de artistas que saiam pelas ruas e praças fazendo suas apresentações, um misto de teatro e circo, fazendo rir e chorar os públicos que iam juntando em suas passagens pelas cidades italianas. Satirizavam e ironizavam a vida e os costumes das classes dominantes de então. As peças apresentadas eram improvisadas, mas tinham personagens mais ou menos fixos, que cumpriam certos papeis, como o Pierrot, o Arlequim e a Colombina e seguiam mais ou menos o mesmo roteiro.

Nos tempos do império romano, já existiam figuras fantasiadas, uma espécie de esboço do que seria depois a Commedia dell’Arte, com pequenas farsas (peças, no sentido atual), muitas vezes obscenas seguidas de uma peça trágica. Entravam em cena quatro personagens mascarados: Maccus, o comilão, Bucco, um bêbado imbecil, Pappus, o velho gagá e Dossennus, o corcunda malicioso. O espetáculo era ensaiado, mas sempre havia espaço para alguma improvisação.

Com o tempo e a queda do império romano, esses grupos de artistas populares, que tinham já personagens fixos e carregavam suas lonas, foram se extinguindo aos poucos, com seus espetáculos popularescos obscenos e debochados. Os anfiteatros antigos que eram usados por essas trupes foram se transformando em quarteis com soldados que defendiam o império que se desmoronava.

Mas os espetáculos cômicos populares foram sobrevivendo através de acrobatas, charlatães contadores de causos, malabaristas e vendedores ambulantes. Se apresentavam nas ruas, em frente às igrejas ou aos castelos.

Uma parte desses atores ambulantes fazia representações de histórias bíblicas em frente às igrejas, com o apoio dos padres, com o objetivo de educar o público ignorante e analfabeto. As cenas bíblicas, mesmo que repetidas, eram interpretadas a cada vez com alguma modificação. Mas junto a esses atores também haviam os que preferiam encenar histórias da vida cotidiana.

Ao final do século XV, no norte da Itália, surgiram esses grupos de atores que se baseavam na improvisação e apresentavam personagens vestidos com roupas bem coloridas.

A Commedia dell’Arte (literamente “comédia de artistas profissionais”) fazia apresentações ao ar livre com grupos de atores itinerantes. O enredo era básico, muitas vezes uma história familiar, mas os atores improvisavam o diálogo. Os atores adaptavam esses diálogos ao tipo de público que os assistiam, às vezes juntando comentários maliciosos sobre poderosos locais ou frases de humor picante, muitas vezes censurados. O tema mais comum era o amor: um casal que se amava e não podia ficar junto por algum motivo. Os Innamorati (o casal de atores que fazia os papeis principais) em alguns enredos pediam a ajuda de personagens menos importantes, os servos, chamados em italiano de zanni (a palavra “bobo” deriva daí), que, mais astutos, davam um jeito de juntar os amantes. Talvez Shakespeare se inspirou nesse enredo para criar sua peça "Romeu e Julieta", a história de amor trágica sem final feliz? Pode ser.


O ator francês Charles Deburau
em cena como Pierrot,
fotografado por Nadar em 1855
Nesta história dos Innamorati, todos os personagens usavam máscaras, exceto Pedrolino e Colombina. Pedrolino hoje é conhecido por Pierrot, por causa da influência francesa. As máscaras dos outros personagens, por sua vez, eram influência das comédias romanas antigas. Os zannis (servos) eram os personagens mais subversivos, mais astutos e que aprontavam muitas travessuras. O mais conhecido deles é, ainda hoje, o Arlequim (em italiano Arlecchino).
Arlecchino era caracterizado como um homem pobre, original de Bérgamo, que usava retalhos de roupas em forma de losangos em sua roupa, sinal de sua pobreza. Sua máscara era cheia de verrugas e às vezes tinha a forma de uma cara de macaco, de gato ou de porco. Era um acrobata brilhante, mas também era guloso, mal-educado, analfabeto e ingênuo. Mas tinha uma amada: a Colombina, ou Arlecchina, uma serva inteligente e sensual. O pintor francês Jean Antoine Watteau o retratou como um amante melancólico e apaixonado. Outro pintor, o italiano Giovanni Domenico Tiepolo o pintou em uma apresentação em praça pública.

"Mezzetin", personagem pintado por
Jean Antoine Watteau, óleo sobre tela, 1720
Além destes dois, os mais conhecidos até hoje e tema de diversas canções de nosso carnaval brasileiro, havia também o Pedrolino, nosso Pierrot, como já falamos. Ele tinha uma natureza doce e ingênua, sempre disposto a assumir a culpa dos outros. Sua roupa é branca e seu rosto está tingido com pó branco, às vezes com uma lágrima pintada caindo de um dos olhos. 

Alguns franceses, mais tarde, entre eles o poeta Baudelaire, consideraram o Pierrot como símbolo do artista criativo e solitário.

No começo do século XVIII, sob a influência dos movimentos políticos e sociais na França, os zanni (personagens servos) dos novos comediantes vão assumir uma postura mais altiva, até arrogante, mais autoconfiante, menos subalterna do que na velha Commedia dell’Arte na Itália. Dois deles, em especial Brighela e Arlequim, que antes se reconheciam como pobres e dependentes de seus patrões, agora são mais otimistas em relação a seu futuro e têm esperança de que sua situação um dia vai melhorar. Eles são ainda mais astutos.

No século XIX, a Commedia dell’Arte desaparece de cena. Alguns escritores ainda farão referência a ela, como o poeta Paul Verlaine e Théophile Gautier, que conta a história de uma trupe de comediantes que atravessam a França fazendo suas apresentações.
Representação de Joseph Grimaldi,
o célebre clown do circo inglês do
século XI

O circo, como o conhecemos hoje, surgiu no final do século XVIII na Inglaterra. O Clown inglês - palhaço - tem muita semelhança com os personagens da Commedia dell’Arte: era - e ainda é em nossos circos - um personagem fixo, com roupas excêntricas e maquiagem carregada, que cria situações cômicas e arranca gargalhadas do público.

E lembramos uma música que permeia a infância de muitos de nós, moradores das cidades do interior brasileiro (em Caruaru era assim), quando uma pequena trupe de atores percorria as ruas chamando o povo para o Circo, entre eles o palhaço, cantando:

“- O raio, o sol suspende a lua
Olha o palhaço no meio da rua
- Hoje tem espetáculo?
Tem, sim, senhor!”


Hoje, em nosso carnaval, quando vestimos nossas fantasias, muitas delas de Arlequim, Colombina e Pierrot, rememoramos esta antiga tradição. Para a nossa alegria, e a alheia, quase nada é necessário nestes carnavais: uma máscara, uma fantasia, uma canção simples, alguns passos de dança e a alegria toma conta, num contágio quase universal.

Grande lição do carnaval brasileiro, resgatando a Commedia dell’Arte: vamos rir de tudo, vamos rir de nós mesmos, dar grandes gargalhadas! O futuro é para se rir!

Pintura representando o Arlequim, de Giovanni Domenico Tiepolo, 1755

domingo, 6 de março de 2011

O Pierrot apaixonado

Dias de carnaval, dias de alegria no Brasil. Dias de esquecer tudo o que não seja, e não dê, prazer. Dias em que milhares de Pierrots, Arlequins e Colombinas se espalham em todos os sotaques brasileiros, ocupando as ruas, como uma grande, imensa Comédia.

Pierrot et Arlequin, Paul Cézanne, 1888
Mas o Pierrot e o Arlequim, imersos na folia carnavalesca, nem sempre estão esfuziantes de alegria, como mostra a música mais triste de todas as músicas do carnaval (a de Zé Keti): “Oh quanto riso, oh quanta alegria, mais de mil palhaços no salão, Arlequim está chorando pelo amor da Colombina, no meio da multidão.” E mesmo na música de Noel Rosa, “O Pierrot apaixonado que vivia só cantando, por causa de uma colombina acabou chorando, acabou chorando...”

Mas de onde vem essas figuras que habitam nosso carnaval, misturadas a tantas outras? E por que elas carregam essa dupla face, a de um palhaço triste e a de um malandro inquieto? Qual a imensa tristeza presente atrás das máscaras da alegria do carnaval?

No século XVI na Itália, trupes de artistas saiam pelas ruas, entretendo as pessoas, contando suas estórias, fazendo rir, fazendo chorar. A Commedia Dell”Arte italiana era, no começo, caracterizada pela sátira social e ironizava a vida e os costumes das classes dominantes de então. As peças apresentadas eram improvisadas na hora, como o são hoje os repentes e o rap. Ao chegarem nas cidades, se apresentavam em suas carroças ou em palcos improvisados. Mas tinham personagens mais ou menos fixos, que cumpriam certos papeis, como o Pierrot, o Arlequim e a Colombina e seguiam mais ou menos o mesmo roteiro, inicialmente chamado de “canovaccio”. Alguns atores viviam o mesmo papel durante toda a vida.

As representações teatrais das trupes da Commedia dell’Arte sempre ridicularizavam os poderosos, desde reis e rainhas, militares, padres, negociantes e nobres em geral. O esquema de criação era coletivo, havia um roteiro mais ou menos fixo, mas os atores tinham liberdade de improvisação. Muitas dessas trupes carregavam consigo uma pintura bem grande, com uma rua, casa ou palácio, pintados, que servia de cenário.

Pierrot, Pablo Picasso
O nome italiano do Pierrot era Pedrolino, que virou Pierrot na França do século XIX. Ele vestia roupas brancas feitas de sacos de farinha e tinha o rosto pintado de branco. Hoje ele é conhecido com o rosto todo branco e uma lágrima pendendo de um dos olhos. Vivia sofrendo de amor pela Colombina, que amava Arlequim e com isso era ele a principal vítima das piadas dos atores em cena. Pierrot é o “pai” dos palhaços de circo.

Arlequim, assim como Pierrot, era servo de Pantaleão, o mercador de Veneza (que virou uma peça de Shakespeare). Mas Arlequim era um malandro esperto, preguiçoso e insolente, que já entrava em cena saltitando e fazendo movimentos acrobáticos. Era também um debochado e adorava criar confusões com os outros personagens. Usava uma roupa feita inicialmente de muitos remendos coloridos, em losango, e tinha o rosto sujo de barro.

A Colombina, também empregada da Corte de Pantaleão, surgia vestida de branco e era disputada pelo amor do Pierrot e do Arlequim. Mas ela, apaixonada pelo Arlequim, cantava e dançava graciosamente para encantá-lo. O Pierrot, triste e tímido, jazia ao lado, sofrendo o seu amor.

Dos três personagens da Commedia dell’Arte, o Arlequim seria o mais “brasileiro”. Brincalhão, divertido e malandro, ele inspirou os blocos carnavalescos, especialmente em Pernambuco, de onde trago lembranças dos carnavais da minha infância, quando as figuras fantasiadas – os papangus – iam de casa em casa, passando pela minha, pedindo dinheiro ou comida e sempre aprontando alguma. Esse duplo caráter dessas figuras carnavalescas (alegres-tristes) sempre me trouxe um misto de medo e atração.

Mas também lembramos do circo e do palhaço em nossos carnavais. Irmão da Commedia dell’Arte, o circo – como o conhecemos hoje – surgiu na Inglaterra, no final do século XVIII. E com ele, o Palhaço (Clown), esse personagem irmão do Pierrot e do Arlequim, com o rosto maquiado, roupas excêntricas e criando situações cômicas, além de comentários engraçados, que o aproximam do público. As improvisações do Clown no circo, como as do Pierrot e do Arlequim, se realizam ali sob os olhos e a participação do público, criando um espetáculo que, mesmo que se repita a cada apresentação, se torna único no momento do espetáculo.

Essas representações populares que vem desde a Commedia dell’Arte sempre são o palco onde acontecem as narrativas das peripécias da vida humana. Com suas alegrias e seus dramas, elas surgem como a grande representação da multidão, como no carnaval brasileiro. É o grande palco onde é apresentada a comédia humana, como dizia o poeta francês Théophile Gautier. Criação de todos, criação de toda uma cultura, o Carnaval, como o Circo e como as representações teatrais de rua, são a grande forma de Creative Commons do povo. Pertence a todos, é Bem e Riqueza de todos.


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Publico agora a crônica do poeta AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA, que enriquece muito este post. Publicação autorizada generosamente pelo próprio autor.



DE ONDE VEM O ARLEQUIM?


Affonso Romano de Sant’Anna

        Aí pelas ruas talvez exista ainda alguém fantasiado de Arlequim, como ocorria nos carnavais há algumas décadas.   Mas é raro. Assim como o Pierrô e a Colombina, o Arlequim foi muito popular na virada do século. Aliás, não só esse  trio, mas toda uma família de saltimbancos, que havia irrompido nos palcos do século XVI. Mas por uma série de fatores, a tematização desses tipos foi muito constante na virada do século XIX para o século XX.
Família de saltimbancos, Pablo Picasso
        
Em 1892 Leon Cavallo cristalizou o conflito do triângulo amoroso em “Os palhaços”. Em 1905 Picasso pinta “Família de saltimbancos” e outros  quadros com esses personagens. Degas e Cèzanne estão entre muitos que também pintaram seu “Arlequim”. A própria literatura brasileira  vem, em 1919, com “Carnaval” de Manuel Bandeira, em 1920, com “Máscaras” de Menotti del Picchia e “Arlequinada” de Martins Fontes. Mário de Andrade, por sua vez,   tematizou o carnaval sob várias formas e definia-se como uma criatura arlequinal.
        
Mas quem vê o Arlequim tão sestroso, folgazão e brejeiro (como se dizia), mal pode imaginar que num tempo remoto ele foi o avesso disto tudo. Exatamente. Originalmente, em vez de um sedutor, foi um violador. Em vez de amante, um estuprador. Em vez de um dançarino, um guerreiro bárbaro.


Por isto, o estudo de certas imagens e palavras mostram como o certo e o avesso vivem se intercambiando. Preocupado com essas ambivalências, Freud já havia anotado que a etimologia de “branco” e “preto” parecia ser a mesma, alertando para o fato de que o radical do francês “blanche”  e do inglês “black” é o mesmo.


Arlequim, Hallequim. O nome é quase idêntico. Mas o significado diametralmente oposto.


Quem vê no palco ou no carnaval o saltitante e sedutor Arlequim nem percebe que ele é uma variante moderna de um tipo selvagem que comandava uma horda de homens-bestas. Hallequim é uma deformação onomástica de Harila-King – rei dos exércitos. Tinha na mão enorme maça ou tacape. Comandava um feralis-exércitus (exército de mortos). Pertencia à mesma estirpe de figuras primitivas como o lendário rei Frotho, da mitologia dinamarquesa, que invadia aldeias, violentava mulheres e humilhava barbaramente os vencidos. Esses guerreiros exibiam a petulância (agressividade sexual), lascívia (exigências sexuais) e se consideravam conubernales (companheiros da tenda do rei). Vestiam-se de peles selvagens assemelhando-se aos ursos e não cortavam os cabelos até que matassem alguém. Também não tinham propriedades pessoais e viviam se deslocando atrás de presas, como centauros seqüestradores de mulheres.


Mito? Realidade?


Esse exército não era só uma crença. Era muito bem representado por máscaras. Temos uma prova disto, uma descrição que data de 1100, vinda da Normandia, que cita como rei da tropa selvagem um certo Herlechinus, que viria de Harilaking anglo-normando, rei da família Herlechini, que não é senão o Arlequim. Nosso Arlequim da commedia dell`arte foi, na origem, o sublime rei de um exército de fantasmas. Pode-se reconhecer esta forma primitiva do Arlequim em muitas personagens que existem no carnaval, graças à fantasia que usam. A partir de 1470 esta fantasia é descrita como despedaçada, cheia de rasgões, com pequenos pedaços de tecidos coloridos.


Um estudo semiológico das metamorfoses do personagem, sua passagem da horda primitiva para o palco da comédia poderia ser feita mais detalhadamente. Não só a transformação da roupa esfarrapada em estilizados losangos coloridos, mas a conversão do porrete original em espada fálica. Igualmente, a figura original do Hallequim está sempre num cenário onde há cavalos e se inscreve no mito dos centauros. Esses cavalos, carroças, carruagens encaminham o tema do seqüestro, presente nas diversas peças e gravuras que tratam do Arlequim moderno. O que  era grotesco atinge não apenas o cômico, mas até o sublime através da estilização, em peças como O Triunfo de Arlequim, Arlequim Imperador da Lua e Arlequim Cavaleiro do Sol. (séc. XVIII).


O  bárbaro e primitivo Hallequim surgia nas vilas e aldeias em meio a formidável charivari. Sobretudo no solstício de inverno (entre o Natal e a Epifania). Ele está registrado num texto do séc. XIV (Roman de Fauvel) que, em forma de poesia, narra o casamento de um cavalo e uma mulher.


E por aí teriamos muito ainda a discorrer. A moderna teoria da carnavalização, que amplia o que em 1927 foi lançado por Mikhail  Bakhtin, tem notável contribuição a dar não só na problematização e recuperação desse persoangem, mostrando como o imaginário civiliza as imagens arcaicas. Um estudo  moderno do Arlequim não pode desvinculá-lo da figura daquilo que em antropologia se chama de “trickster”- aquele mágico e malandro das tribos, que é tão bem encarnado no “Macunaíma” de Mário de Andrade.


E assim como a imagem do Arlequim se enriquece com a recuperação de seu metamorfoseado avesso histórico, também as figura do Pierrô e da Colombina, vão deixando de ser apenas fantasias episódicas e superficiais de uma festa carnavalesca, para serem estruturas simbólicas de nosso inconsciente e de nossos dramas sociais.


Tomemos um exemplo, entre tantos, na literatura brasileira: “Dona Flor e seus dois maridos” de Jorge Amado, é um romance que pode ser lido nessa clave. Vadinho é o Arlequim: dançarino, boêmio, brigão, don Juan, sedutor, jogador, vivendo aleatoriamente o prazer presente. Morre dançando no carnaval, fantasiado de mulher. Já Teodoro é o Pierrô: é o lugar da ordem, do prazer com horário certo, um burocrata no sexo e nos negócios. Porém, Dona Flor, envolvida por esses dois amores contraditórios, resolve imaginariamente o conflito que a Colombina tradicionalmente nunca pôde resolver. Ela fica com os dois. Trabalha pela inclusão imaginária, vivenciando uma verdade intemporal, pois as criaturas humanas são elas e suas contradições.


As máscaras nos falam das ambiguidades e  a teoria da carnavalização ajuda a resgatar enigmas de ontem e a aclarar comportamentos individuais e sociais hoje.