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segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Os vôos necessários

Franz Kafka no final da vida escreveu alguns pequenos contos, entre os quais "A primeira dor", publicado em 1922, quando a serpente do nazi-fascismo já chocava seu ovo...

"A primeira dor" fala de um artista de circo, um trapezista, aquele que vive com a vida por um fio, sobre o abismo. Mas o trapezista amava tanto seu instrumento de trabalho - o trapézio - que jamais se separava dele, vivia pendurado no alto, ou fazendo acrobacias ou simplesmente quieto enquanto outros apresentavam seus espetáculos. Ele passara a vida inteira como artista de circo; era o que sabia fazer. E amava fazer.

Desde que me entendo por gente, vivo pendurada em meu próprio trapézio: meu amor pela pintura. A vida inteira fui ao encontro dela, me perdi dela, corri atrás, fugi, ela me alcançou, me agarrei a ela como uma náufraga... Do alto do meu sonho, balanço entre um susto e outro, sabendo que é preciso ir além do medo. Pintar me reinventa. Ensinar pintura é um risco ao qual o meu trapézio me balançou para ainda mais alto. O frio na barriga também traz o prazer do risco, o espaço aberto, o chamado do vôo...

Nas vertigens do caminho, o Ateliê Contraponto caiu em minhas mãos e eu precisei enfrentar todos os medos, executando novas acrobacias. Oscilando no meu próprio céu, me movimento dentro do meu sonho, sabendo que os abismos do tempo atual podem me ameaçar. Mas meu vôo é firme, pois criei asas no desejo de permanecer grudada a meu trapézio até o final do espetáculo.

E o Ateliê Contraponto segue como espaço de resistência... mesmo em um momento em que, de novo, aquela velha serpente volte a chocar seu ovo... 

Mas a pintura resiste!

Que venha 2018!

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Abaixo, registros da exposição de final de ano no ateliê, ao final do quarto ano de trabalho:
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Desenhos e pinturas de alunos do Ateliê Contraponto: Sarah Hounsell, Taïs Isensee,
Virgínia Morais, Guilherme Martinez
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Pinturas a óleo de Taïs Isensee
Pinturas a óleo de Virgínia Morais

Desenho de Ananda Campos, à esquerda. Ao centro e direita, desenhos de Fernando Correia

Desenhos com giz-pastel e carvão de Sarah Hounsell
Desenho e pintura de Paulo Marianno
Desenho com lápis-grafite de Rubi Conde

Pinturas com Guache de Maria Fucatu

Pinturas a óleo de Guilherme Martinez

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Ir para Madrid

"Velha fritando ovos", Diego Velázquez, 1618
Abaixo, um trecho do livro "Vida y obra de Don Diego Velázquez", escrito em 1899 por Jacinto Octavio Picon, onde ele conta um pouco como foi a ida de Diego Velázquez, pintor espanhol sevilhano, para a capital Madrid. Também conta como era a relação do pintor com o rei, uma relação de assalariado, mas que lhe garantia moradia e alimentação, para ele e sua mulher, Juana Pacheco. Diego conheceu Juana na casa de seu mestre Francisco Pacheco. Casaram-se quando ele tinha 19 anos. Viveram juntos até o fim da vida. Ela morreu oito dias depois da morte dele, no dia 14 de agosto de 1660.
A tradução do texto foi feita por mim de forma livre. E cortei do texto o que não tivesse grande importância.
Autorretrato, Velázquez
"Por grande que fosse a cultura de Sevilha naquele tempo, era natural que Madrid, onde habitavam os reis e as famílias mais ricas, atraísse a atenção dos artistas provincianos. Só Madrid é nobre, se dizia vaidosamente então, e à corte quis ir Velázquez, ávido de estudar as maravilhas com que enfeitavam seus palácios, casas e conventos, Felipe IV, os grandes senhores e as comunidades religiosas. Ademais, ainda vivia El Greco em Toledo, e na sacra estupenda mole de El Escorial, segundo a pomposa linguagem da época, havia quadros de Tintoretto e Ticiano; estímulos de sobra, superiores naquela ânsia de se aperfeiçoar, para que o artista quisesse empreender a viagem.
«Desejoso, pois, de ver El Escorial — declara Francisco Pacheco (sogro de Velázquez) — partiu de Sevilha a Madrid, por volta do mês de Abril de 1622. Foi acompanhado dos amigos D. Luis e D. Melchor del Alcázar, e em particular de D. Juan de Fonseca, que estava a serviço do rei e era um admirador de sua pintura”. Don Antonio Palomino, do seu lado, diz que Velázquez partiu de Sevilha acompanhado somente de um criado: posteriormente outros biógrafos, Lefort entre eles, supuseram que este servidor fosse seu escravo, Juan de Pareja, mas não se tem certeza.
"El niño de Vallecas", Velázquez, 1635 
Em Madrid, retratou ao poeta Luiz de Góngora, o que seu sogro Pacheco o atesta. O poeta, residente então em Madrid, tinha 60 anos de idade. Dada a importância do personagem e o interesse demostrado pelo sogro, era natural que Velázquez não se limitasse a pintar só a cabeça: o natural era que, por respeito à personalidade de um e ao carinho do outro, tivesse feito uma obra mais aprimorada, onde o autor de “Polifemo y las Soledades”, tão admirado em seu tempo, estivesse de corpo inteiro ou ao menos em meia figura. Mas o artista fez um retrato da cabeça de Góngora mais seca, dura e cansada do que as que fez antes de ir a Madrid.
Ou porque algum assunto grave requeresse ali sua presença, ou porque estava desesperado por não alcançar seus desejos, Velázquez voltou nesse mesmo ano a Sevilha; no ano seguinte, em 1623 don Juan de Fonseca o chamou por ordem do Conde-Duque de Olivares, oferecendo-lhe uma ajuda de custo de 50 escudos para a viagem que, segundo parece, fez acompanhado de seu sogro Francisco Pacheco. Hospedou-se em casa de Fonseca e como mostra de sua habilidade ou prova de gratidão, Velázquez lhe fez um retrato. Conta Pacheco que naquela mesma noite “um filho do Conde de Penharanda, camareiro do Infante Cardenal” o levou ao palácio e “em uma hora todos os que estavam no Palácio vieram ver”. Logo se ordenou que retratasse ao rei, o que foi feito em 30 de agosto de 1623. Até então ninguém ainda havia pintado a imagem do rei Felipe IV.
"O bufão Calabacillas", Velázquez, 1639
Velázquez foi contratado como pintor do rei em 1623 com um salário de 20 ducados ao mês, algo como ganhava qualquer serviçal da corte, como o barbeiro, por exemplo. Foi feita a mudança de Sevilha a Madrid. Pintou o retrato do rei a cavalo, feito todo a partir do natural. O quadro foi colocado na Calle Mayor, frente ao rei e a toda sua corte, o que despertou a inveja de outros artistas. Tudo isto foi contado por Francisco Pacheco.
Velázquez fez vários retratos de Felipe IV.
A boa sorte de Velázquez estava assegurada, entendendo por isso a segurança de seguir servindo ao rei. Choveram sobre o artista sevilhano todos os aplausos e até poesias. Seu próprio sogro lhe dedicou um soneto e don Juan Vélez de Guevara lhe compôs outro.
Passou a viver numa casa ao lado do palácio do rei, que representava um custo anual de 200 ducados. Felipe IV lhe deu outros 300 ducados de presente e ordenou que lhe pagassem um salário mensal, como era feito aos eclesiásticos a serviço da monarquia. Ou seja, Velázquez era um assalariado do rei.
Diego Velázquez seguiu fazendo seu trabalho de pintor. Nesta época fez também um retrato de sua esposa, Juana Pacheco. Por volta de 1626 pintou ao Infante don Carlos de corpo inteiro e em tamanho natural em pé, vestido com capa e traje negro. Podemos afirmar que neste retrato termina a primeira fase da pintura de Velázquez. Se pode afirmar a superioridade indiscutível do quadro em relação aos anteriores. Está desenhado, como todos os outros, com aquele maravilhoso sentimento da linha que ele teve desde o princípio, mas no que toca ao modo de pintar, ele começa a mostrar maior soltura, menos esforço para conseguir o modelado e, no que se refere à cor, a tendência a buscar a doce e elegante harmonia entre tons cinzas e negros que ele manejava como ninguém.
"O bufão don Diego de Acedo", Velázquez, 1639
Felipe IV encomendou, não só a Velázquez mas a outros artistas em forma de concurso, um quadro que representasse a expulsão dos mouros, executada a mando de seu pai Felipe III, um ato cheio de crueldades. Mais de 300 mil pessoas foram expulsas da Espanha, por serem de origem moura. Felipe IV ofereceu um prêmio a quem melhor representasse o tema. Francisco Pacheco conta que seu genro fez “um quadro grande com o retrato do rei Felipe III comandando a expulsão dos mouros”. Velázquez venceu o concurso e com isto o rei ordenou que se lhes pagasse uma ração igual aos que ganhavam os que viviam no palácio, que eram de 12 reais por dia para sua refeição e outras ajudas de custo. Velázquez ascendeu um grau na escala dos criados do palácio.
Ao rei agradava muito esta e outras obras pintadas por Velázquez. Mas a Tesouraria do Palácio não era um modelo de esmero no pagamento dos salários e muitas vezes o artista teve que fazer uma reclamação e soube que aquela ração diária de 12 reais se referia somente aos quadros de retratos do rei e não aos outros quadros que pintasse Velázquez. O rei Felipe tinha decretado a seguinte ordem:
«A Diego Velázquez, meu pintor de Câmara, ordeno que se dê pela despensa de minha casa uma ração cada dia em espécie como a que têm os barbeiros de minha Câmara, em consideração por ter se dado por satisfeito de tudo o que se lhe deve até hoje pelas obras de seu ofício; e de todas as que adiante mandarei, fareis com que se registre assim nos livros da casa. (Há uma rúbrica do Rei). Em Madrid, 18 de Setembro de 1628. Ao Conde de los Arcos, em Bureo».
"Retrato de don Juan Pareja", Velázquez
Digam o que quiserem os adoradores do passado acerca da diferença de tempos, usos e costumes, para sustentar que o que hoje parece humilhante era naquele tempo uma honra, a verdade é que lendo tais coisas vem aos lábios o sorriso amargo que inspiram a grande mesquinhês humana; sobretudo se se considera que os barbeiros da Câmara eram tratados como gente de segunda linha, assim como Velázquez era tratado como o eram os anões e bufões da corte que inclusive lhes serviram de modelo, como o menino de Vallecas, Nicolasito Pertusato, o bobo de Coria, Calabacilla e Solpillo. Enquanto isso, em outros países em épocas mais remotas, os reis honraram seus pintores, como Francisco I a Leonardo da Vinci, como Julio II a Michelangelo, Como Leão X a Rafael, como Maria de Médicis a Rubens, e como a cidade de Amsterdam a Rembrandt.

Felipe IV pensou de distinto modo e assim como em certa ocasião se lhe ocorreu expulsar da Espanha os estrangeiros porque comiam muito pão, acreditava que o nome de seu artista predileto não estava mal junto com os nomes dos barbeiros, maltrapilhos, anões e bufões. A alguns destes Velázquez imortalizou, pintando-os de forma que mesmo sendo da baixa ralé hoje figuram juntos com os retratos dos reis nos museus. Se ele fez isso de forma maliciosa, foi genial; se fez isso por inocência, como pode ser presumido porque ele era um homem de grande bondade, o tempo acabou vingando-o."
"Café da manhã", Velázquez, 1618,
Museu Hermitage, São Petersburgo, Rússia

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Máscara negra

"Máscara negra" é uma das mais belas músicas criadas para a folia brasileira, pelo grande compositor Zé Keti. Música bela e triste. Brinquei um pouco com este tema hoje, de um jeito solto, leve, como quem afina o instrumento. Junto com a máscara negra, o "Som do pandeiro" que espera ser finalizada para viajar para Madrid em junho.

Bom carnaval a todos!




Máscara Negra


Quanto riso, oh, quanta alegria!
Mais de mil palhaços no salão
Arlequim está chorando
Pelo amor da Colombina
No meio da multidão.
Foi bom te ver outra vez
Tá fazendo um ano
Foi no carnaval que passou
Eu sou aquele Pierrô
Que te abraçou e te beijou, meu amor
A mesma máscara negra
Que esconde o teu rosto
Eu quero matar a saudade
Vou beijar-te agora
Não me leve a mal
Hoje é carnaval!
Som do pandeiro, Mazé Leite, óleo sobre tela, 2015 - in progress

domingo, 13 de julho de 2014

Ateliê Contraponto - noturnos.

Ateliê Contraponto à noite, Mazé Leite, óleo sobre tela, 30 x 40cm, 2014
Travessa Dona Paula à noite, Mazé Leite, óleo sobre tela, 30 x 40cm, 2014

segunda-feira, 2 de junho de 2014

O resgate dos valores humanos

Maurício Takiguthi expôs na Galeria Contraponto
Maurício Takiguthi inaugurou o Ateliê e Galeria Contraponto em São Paulo, em março passado, com uma exposição de seus trabalhos de pintura mais recentes. Extremamente dedicado a seu ofício, Takiguthi impressiona não só pela qualidade de sua obra, mas também pela profundidade de seu pensamento. Conversar com ele é um exercício que sempre desafia os mais desatentos a um esforço de concentração um pouco maior do que se precisa para desencadear um diálogo comum. Porque ele “pensa” seu trabalho.

Maurício Takiguthi
Mais uma vez entrevistei esse pintor que tem uma escola aqui em São Paulo, o Ateliê de Arte Realista. Há dez anos atrás, Maurício Takiguthi estava quase sozinho em sua teimosia de ensinar as técnicas da arte figurativa. Dez anos depois já podemos contar com pelo menos meia dúzia de ateliês figurativos em São Paulo, com dezenas de praticantes, entre estudantes e artistas. O mais recentes destes ateliês que por aqui surgiram é o Ateliê Contraponto, do qual faço parte com mais três colegas.

Mas voltemos à nossa conversa com Takiguthi, que tanto insiste no resgate do conhecimento e da tradição, na busca do auto-aperfeiçoamento do artista como um caminho solitário mas comprometido com o que há de mais profundo no conhecimento do próprio ofício. Tudo isto, diz ele, para resgatar valores mais humanistas.

Maurício diz que desde que começou sua formação e seu trabalho como pintor, há uns 28 anos, ainda se mantém basicamente como a mesma pessoa que se coloca diante do mundo como aprendiz: vivendo “cheio de dúvidas, questões, e instigado pela curiosidade de querer entender o que os mestres viam”. Mas acrescenta que não há como medir a plausibilidade deste tipo de desejo, desta ambição. Nunca podemos saber aonde nossos desejos nos levam, mas serve como um motor que nos move e que move o pintor Maurício Takiguthi até hoje “depois de 28 anos de estrada”.

“Continuo insistindo em obter respostas, acrescenta ele. Porque continuo frustrado boa parte do tempo por não tê-las. Porque continuo ‘apanhando’ e, mais importante, porque continuo sentindo tesão pelo realismo que me instiga na esperança de um dia ter acesso”.

Ter acesso ao que?

Aqui podemos buscar apoio no pensamento do filósofo alemão Friedrich Wilhelm von Schelling (1775-1854), que em seu texto “A relação das artes plásticas com a natureza” mostra como o olhar do artista, penetrando no Real, enxerga o mundo através da sua essência, que é acessível ao nosso espírito (mente). E Schelling adverte que aquele que apenas enxerga do mundo a sua casca, a sua superfície, a ele “jamais será facultado atingir o processo profundo”. Enquanto que para o artista que tem consciência de si e de seu papel, sabe o caminho para desvendar as aparências que muitas vezes a realidade toma. Diz Schelling: “Antes de mais nada, a natureza vem ao nosso encontro de modo hermético e sob uma forma mais ou menos rígida. Assemelha-se à beleza sóbria e serena que não chama a atenção por meio de sinais gritantes e nem atrai o olhar vulgar. Como podemos fundir, digamos, do ponto de vista espiritual, aquela forma aparentemente rígida a fim de que a força mais clamorosa das coisas flua juntamente com a força de nosso espírito, transformando-as num só molde? Temos que ultrapassar a forma, para, aí então, readquiri-la como algo inteligível, vívido e verdadeiramente sentido. (grifo meu)

"Ensimesmado I", Takiguthi,
óleo sobre tela
Todos os grandes artistas, desde os da pintura, passando pela literatura, pelo teatro e pela música alcançaram o cerne, a essência do mundo, criando obras seminais que se sobrepõem à nossa concepção de tempo; obras que emocionam pessoas que estão separadas de seus criadores por séculos de distância, que permanecem encantando, gerando pensamentos, inspirando.

E intrigando. Qual é o processo profundo, qual é o caminho que nos leva a este mergulho do qual retornamos como criadores?

Não é uma resposta fácil. Mas um caminho possível é o exercício do ofício ao qual cada um se propôs e é isso o que diariamente Takiguthi ensina a seus alunos. Por sua origem japonesa, ele se reporta muitas vezes aos ensinamentos zen-budistas que dizem que “a prática é que é expressiva”.

“Desse ponto de vista, diz ele, somos algo a partir do que fazemos e não do que dizemos ou acreditamos”. Por isso fica difícil criar qualquer adjetivo que qualifique o sujeito, pois no momento em que uma pessoa se dá uma denominação, por exemplo se chama a si próprio de “artista”, isso cria, segundo Maurício, uma predisposição a que “as palavras comecem a substituir ilusoriamente o que fazemos, obscurecendo a realidade dos fatos e a visão sobre nós mesmos”.

"Ensimesmado V", Takiguthi,
óleo sobre tela
Ou seja: a ideia é fazer ao contrário do que se faz atualmente, onde o poder do discurso é imenso, mas a prática é subestimada. Nas artes contemporâneas, antes da obra há uma retórica altamente hermética sobre ela, o discurso substituindo a coisa concreta. Se sobrepõe o mundo do idealismo mental contra o contato direto com a realidade. O ofício do artista acontecendo prioritariamente no mundo da mente, gerando nebulosidades que, como bem diz o poeta Affonso Romano de Sant’Anna, fazem com que as artes visuais atuais possam melhor ser interpretadas do ponto de vista da psicanálise.

Mas a prática concreta é mais enfática do que qualquer discurso. “Faz sentido, acrescenta Maurício, pois “se somos honestos é porque praticamos atos honestos e não simplesmente porque dizemos aos outros ou temos essa ideia sobre nós mesmos... E em geral a pessoa que se preocupa demais em se autodefinir ou falar de suas qualidades pessoais é que provavelmente está mais ocupada em convencer-se ou convencer ao outro – pela retórica, e não por atos concretos. Pode servir como marketing pessoal, mas não como autoaperfeiçoamento”.

Por isso a “leitura da ação” diz mais do que a definição verbal.

Neste ponto, pergunto a Takiguthi a respeito da temática de sua pintura atual. As figuras que ele pinta são fortes, parecem habitar um lugar entre a vida e a morte, com gestos dramáticos, olhares densos; figuras que parecem nos apontar nossos próprios medos, nos defrontando incomodamente. Ao mesmo tempo, os traços são fluidos, gestuais, gerando movimentos em ondas que parecem todo o tempo nos levar para dentro dos abismos dessas figuras.

Ateliê e Galeria Contraponto
“Diferentemente do que se associa a um realista, eu procuro não ficar na mera imitação da natureza ou atingir qualidades ‘fotográficas’. Não sou adepto da ideia de que o melhor propósito de uma pintura é de parecer com uma fotografia. Quero registrar na tela a minha percepção interna da natureza humana ou, mais relevante para mim, conseguir visualizar minha realidade interior. Muito disso se passa pelo diálogo silencioso com o que faço: a partir da imersão no processo que nem sempre é fácil, dadas as grandes distrações da vida numa metrópole, procuro me debruçar sobre questões intrínsecas da pintura e do desenho.”

Os fundamentos conceituais, os instrumentos técnicos, a prática e a estrutura mental se fundem e combinam num todo complexo e se tornam elementos com os quais ele trabalha para recriar o que ele chama de “etéreo”, que evidencie um certo estado de espírito, ou sensação. “Talvez este seja o resumo do tema da minha vida como pintor: ter a ambição impossível de traduzir essa qualidade invisível por meio de asserções visuais no campo do indizível”.

Ou seja, Takiguthi parece buscar expressar aquele lugar onde o reino das palavras não existe. Resta a sensação, a contemplação, a absorção da alma do artista em contato com a alma do observador, criando um uníssono impossível de traduzir em palavras, porque faz parte daquele espaço onde navega toda a subjetividade humana. Este também é o papel da arte: produzir essa conexão entre o Real e o artista que traduz pictoricamente o que vivenciou, alcançando um timbre possível de ser compreendido por outro ser humano.

- Que relação há entre o que você pinta hoje e o tempo contemporâneo, Maurício? Pergunto a ele.

“Se está falando do tempo contemporâneo enquanto relação entre a postura tradicional e o status quo com sua lógica pós-moderna, que tem a arte como entretenimento, barulho, escândalo ou transgressão... nenhuma!” diz ele. Maurício Takiguthi insiste em se voltar para a arte tradicional que para ele é sinônimo de conhecimento, do caminho solitário do mestre em busca da construção, do sentido dos valores permanentes do ser humano, do resgate da contemplação da arte, da observação seletiva baseada em critérios. Daí sua crítica de que hoje não há espaço para isso, em especial aqui no Brasil.

"Letárgico I", Takiguthi,
óleo sobre tela
Takiguthi explica que o tempo contemporâneo impõe um fluxo interminável de informações, de imediatismo pragmático que força as pessoas a produzir “num ritmo ansioso e alucinado” do qual é difícil escapar. “O que pode ser feito é minimizar seus efeitos pela consciência dessa forte influência quase arrasadora, dada a impossibilidade de o indivíduo simplesmente descolar-se social e culturalmente dessas imposições”, acrescenta.

Mas diz também que a pintura pode desempenhar esse papel que ele chama de “campo de respiro” em outro tipo de ar. “Não o ar viciado e barulhento que exige aceitação acéfala das regras, mas um ar onde o tempo transcorre de maneira diferente, mais desacelerada. Onde o ar, ao invés de ser estritamente racional, calculista, mecânico, previsível, vinculado fortemente às demandas da utilidade, pode assumir uma dimensão intuitiva, voltada para a introspecção e contemplação das coisas visíveis e invisíveis”.

Ele afirma que essa mudança de perspectiva na relação com o tempo e “o deslocamento para estados mentais mais sensoriais”, apazigua o espírito, amplia a sensibilidade. É uma proposta a uma resistência ao modus operandi exigido pela sociedade atual, que exige do ser humano coisas além da sua capacidade, física e mental. Me pergunto se não seria por isso que hoje temos uma sociedade onde se usa tanto remédio para depressão e se faz uso de tantos narcóticos? Esse deslocamento da prioridade aos valores humanos em prol da produção e do consumo não está criando uma sociedade doente, com indivíduos massacrados diariamente em busca da sobrevivência? O esvaziamento de símbolos universais, o corte radical com a tradição histórica perpetrado inclusive por artistas ditos modernos e contemporâneos não estaria nos distanciando cada vez mais de nós mesmos, dos nossos sonhos, da nossa capacidade de criadores do mundo?

Talvez isso dependa da busca novamente do que é essencial, do que não é óbvio atualmente, “das qualidades perenes, universais, que demandam tempo e maturidade para poder visualizar e compreender”, complementa Maurício.

"O louco", Takiguthi,
óleo sobre tela
Neste ponto da conversa, relembro um diálogo que aconteceu entre nós e outros amigos, num sábado à noite no Ateliê Contraponto, quando Maurício disse que está abdicando da possibilidade de ser chamado de “artista”. Aquilo me interessou e logo quis saber o motivo. Takiguthi respondeu:

- “Já faz um tempo que venho constatando a existência de um patrulhamento ideológico, forte mas implícito, em torno das exigências para que uma pessoa seja considerada um artista: que deva estar “antenada” na busca pela próxima tendência (como na moda) - perdendo, assim, a conexão com sua busca interna; que deva ignorar as habilidades do seu campo de atuação (que significa conhecimento prático e técnico); que faça prevalecer a habilidade retórica de convencer o outro de que o que faz é arte, em detrimento do conhecimento em profundidade que lhe permita pensar o que faz ou fazer o que pensa; entre outras. Este patrulhamento serve fundamentalmente para tornar oficial o monopólio da verdade e manter a posse da “aura” artística, tão importante numa sociedade sufocadamente racional”.

Hoje qualquer um pode, ou quer, se dizer “artista”. Mas raríssimos são aqueles que preferem praticar seu ofício, no suor do dia a dia sobre a mesa de desenho, frente ao cavalete, questionando, buscando aprender cada vez mais, se aperfeiçoando como o Demiurgo de Platão, o Grande Artesão, cujo próprio significado está naquele que trabalha, no artífice, no operário manual. Demiurgo, palavra grega que vem de duas outras: demios, significando “o povo” e ourgos, que significa “trabalhador”, aquele que trabalha para que outros aproveitem do produto do seu trabalho em muitas formas.

A atriz Fernanda Montenegro
Fernanda Montenegro, a conhecida atriz brasileira, numa entrevista recente a um canal de televisão ilustrou bem o que o Maurício fala sobre a prática do “ofício”. Disse ela que as pessoas “confundem teatro com liberdades, até com licenciosidades, com realização de sua opção sexual, com glórias, paetês, retrato no jornal, riqueza…” Hoje em dia a deformação já surge, diz ela, nas famosas “celebridades”. E completa: “Todo mundo vira artista hoje em dia, todo mundo pode ser artista… Mas ator não é todo mundo que pode ser!” Ela sugere aos que desejam a glória de ser ator, que desistam, que vão fazer outra coisa da vida. A não ser que se “ficar em tal desassossego que não tem nem como dormir se ficar sem aquilo” então deve tentar. Mas se não houver esse distanciamento em relação ao deslumbramento que hoje a palavra “artista” causa em qualquer um, ela simplesmente solta: “Não é do ramo!”

Pois os que são do “ramo” conhecem a delícia e a dor da prática diária, silenciosa, profunda do ofício. Os que são do “ramo” não projetam nada no futuro, se dispõem unicamente ao aperfeiçoamento de si mesmos como artesãos, seja no teatro, na literatura, na música… e na pintura.

Mas o problema é que o artista de hoje aceita, acrescenta Takiguthi. “Apesar de aparentemente pregar a transgressão como estilo de vida, está mais desesperado em se enquadrar e ser cooptado pelo sistema. Sob a lógica atual, faz de tudo para chocar/entreter o espectador para poder existir artisticamente. Cultua o ego ao tentar virar celebridade, abre mão do comprometimento sincero com a obra, para transformá-la numa extensão do próprio umbigo e vitrine de si mesmo. Defende verborragicamente a todo custo a auto-imagem que cria de si como artista/celebridade, por uma via afetada, ególatra e arrogante. Caça desesperada e exclusivamente a fama, a reputação e os interesses mercadológicos. O seu foco concentra-se nos aspectos extrínsecos à sua prática e, certamente, quer ser maior do que faz”.

"Genealogia", Takiguthi,
óleo sobre tela
Foi num dia em que refletia sobre isso que Maurício Takiguthi se viu “esgotado” com esse estado de coisas. Ao ver como a palavra “Arte” se encontra atualmente tão contaminada - assim como outras palavras - é que ele recorreu a uma frase de uma música de Raul Seixas e decretou para si mesmo: “Pára este mundo que eu quero descer!”

Com isto, ele disse que prefere simplesmente seguir outro caminho aonde possa se manter fiel ao ofício do pintor e desenhista realista. Isto como reação contra a busca do reconhecimento, da autorização “do outro” para o que faz, “autorização” dada hoje somente por instituições artísticas, legitimadores da arte como críticos, curadores e senhores do mercado de arte. Ele prefere exercer seu ofício solitário “com simplicidade, leveza, serenidade e liberdade, sem idealizações ou ideologias descartáveis”.

Essa busca, esse retorno à ideia de “ofício” para Maurício Takiguthi é a reafirmação do compromisso harmonioso e silencioso com o processo do trabalho. E complementa:

- “É materializar uma inversão radical nos valores: no lugar da “aura”, a realidade concreta do cotidiano; no lugar do glamour, o trabalho árduo; no lugar da retórica, a sinceridade e a sensibilidade para algo existente.  Enfim, é só isso que eu desejo ardentemente hoje em dia: quero respeitar meu ofício, reverenciar a prática, dedicar toda a atenção e energia aos seus elementos intrínsecos para compreender a sua essência, sob o rigor da excelência”.

Voltando-se para seu ofício, o artesão escuta, vê melhor o que faz e o que vê. Estabelece “uma interação sensível com um mundo complexo e infinito, onde pequenas revelações e insights cotidianos fazem muito sentido”, finaliza ele.

"Cárcere", Takiguthi,
óleo sobre tela

domingo, 30 de junho de 2013

Retrato de Fernanda

Retrato de Fernanda Sanches, Mazé Leite, óleo sobre tela, junho de 2013
Terminei neste sábado, 29 de junho, esta pintura em óleo sobre tela em quatro seções com a modelo Fernanda Sanches, no Atelier Takiguthi. Optei por uma palheta de valores mais altos, esfriando as sombras com azul, verde e violeta, e na luz mais alta também utilizei temperatura também fria. Para isso, resolvi experimentar o amarelo de cadmium limão misturado com um pouco de branco. Como na camada de baixo eu tinha utilizado antes uma tonalidade alaranjada, esse amarelo de cadmium com branco acabou dando uma luz mais fria. 

Infelizmente a fotografia sempre deixa a desejar em relação ao original, alterando um pouco as cores e por isso tem duas versões aqui, a maior acima e esta pequena ao lado. Algo entre as duas fotos estaria perfeito. Mas enfim, dá uma noção do original. Sabemos que isso também depende do monitor do computador de quem está olhando. 

Na sala do ateliê onde estava a modelo, o foco de luz vinha do lado direito, com um jato forte de luz amarelada, que resolvi aproveitar para construir esta pintura. Foto abaixo, com a modelo Fernanda Sanches.


Pintando retrato da modelo Fernanda Sanches, óleo sobre tela, Mazé Leite