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terça-feira, 5 de maio de 2015

A técnica a serviço da arte

Instrumentos musicais, Evaristo Baschenis, século XVII, Itália
Reproduzo abaixo um trecho de um manual para violão, escrito pelo violonista uruguaio Abel Carlevaro. Mesmo sendo voltado para a música, o texto pode muito bem ser relacionado ao aprendizado da arte de uma forma geral. O original se encontra em espanhol que traduzi de forma livre. Os destaques são meus.

O texto:

"1. A técnica a serviço da arte

Um dos grandes problemas para se tocar um instrumento tem sido sempre a técnica. Esta não é um resultado puramente físico da ação dos dedos, senão que é uma atividade que obedece à vontade superior do cérebro: nunca pode ser um estado irreflexivo.

O velho violonista, Picasso, 1903
De um lado, há algo que é necessário aprender: o ofício. Por outro, deve sempre existir algo nosso, que ninguém nos pode ensinar. Ao intérprete são colocados dois problemas: o aspecto puramente mecânico de uma obra musical, e como esta obra deve ser expressada. Convém sempre começar pelo último. Desde o primeiro momento em que se se aproxima de uma obra de arte, deve-se tentar penetrar o mais possível dentro dela porque senão como vamos trabalhar uma obra sem saber o que temos que expressar? Não esquecer nunca isso, porque do contrário a arte se desnaturaliza. Se o ofício propriamente dito passa a ocupar o primeiro plano, a arte haverá perdido sua qualidade própria.

Em resumo: quem não possua uma grande técnica não poderá ser um bom intérprete. O que importa é o ponto de partida: se provém do espírito irá ao espírito; do contrário, será somente um produto de laboratório. A diferença básica entre o verdadeiro intérprete e o simples executante está em que este último se baseia no trabalho mecânico unicamente, fazendo ressaltar somente o malabarismo digital de que cuida como um dom precioso dando à técnica um valor em si, uma personalidade, uma autonomia que não lhe pertence. Orgulhoso de seu poder, crê conseguir com isto tudo o que pode lhe considerar um virtuoso. E essa técnica, produto de tantos sacrifícios, está a serviço do que? Qual é a razão que nos demonstre a verdade de tal hipertrofia? É um absurdo querer fazer música utilizando a técnica como única finalidade, sem pensar em nada mais, desumanizando a arte. Cuidado com este monstro! Depois de criado, é necessário superar suas forças para obrigá-lo a servir aos puros valores da arte. Senão, produzirá irremediavelmente o contrário.

O espírito e a matéria são duas forças que devem unir-se na criação da arte. Então a matéria se tornará um pouco espírito e o espírito poderá tomar formas concretas. A arte pertence ao domínio do espírito; a técnica é patrimônio da razão. Da união destes dois elementos nasce a manifestação artística, verdadeira simbiose criada pelo homem.

2. O simples deve ser resultante de um complexo inteligentemente combinado

A aquisição paulatina do mecanismo, da técnica em definitivo, deve estar ligada às etapas da evolução pelas quais se deve necessariamente passar, dentro de um determinado período de estudo.

Numa primeira etapa se estudam os diversos elementos de forma separada, como se em cada caso houvesse somente um ponto a dominar. Num estado de evolução mais adiantado, teremos que relacionar todos os elementos antes separados, para alcançar, então, a técnica correta, o verdadeiro mecanismo do ofício.

Cada movimento é derivado de outro e sua aquisição total resulta do complexo motor, sem cujo conhecimento e domínio é inútil pretender tirar melhor proveito. (...)

O domínio completo é consequência dos diversos domínios parciais e seu uso correto é fruto da seleção das diversas combinações. Isso quer dizer que a técnica deve responder a um trabalho plenamente consciente, descartando, com isso, outros conceitos vinculados a disposições ou atitudes naturais, ou, pior ainda, à casualidade.

A análise, com o auxílio de uma lógica concreta e definida no que respeita aos movimentos a empregar, não deve ser interpretada como uma reação contra as manifestações intuitivas. O emocional e o subjetivo toma vida íntegra, e assim deve ser, pois a análise servirá como firme plataforma para a livre emoção.

(...)"

Instrumentos musicais, Evaristo Baschenis, século XVII, Itália

segunda-feira, 26 de maio de 2014

O ofício da Arte II

O violino de Ingres, autor desconhecido, século XIX

Em maio de 1989 a editora Parsifal Ediciones, da Espanha, publicou pela primeira vez em língua espanhola o livro “El mensaje de Igor Strawinsky”, escrito por Théodore Stravinsky, filho do compositor russo.

Este livro me veio às mãos num momento em que o tema do ofício diário do artista tem surgido em conversas com o pintor Maurício Takiguthi, um dos maiores defensores do exercício diário do trabalho do pintor, do desenhista. Concordo completamente com ele: muitos mestres, de todas as áreas das artes, já apontaram que o resultado de seu trabalho - sua obra de arte - deve-se a infindáveis estudos, dias e anos a fio. Uma obra de arte não surge do dia para a noite.

Assim também encontrei neste livro do pintor Thédore Stravinsky - que fala sobre seu pai, o músico - um exemplo do artista dedicado a seu trabalho.

“A arte postula a comunhão, e compartilhar com os outros
o gozo que o artista mesmo experimenta
é para ele uma necessidade imperiosa.” 
(Igor Stravinsky)

Retrato de Igor Stravinsky, 1958
Litografia feita por Theodore Stravinsky
“A música parece a Stravinsky antes de tudo como ‘um elemento de comunhão com o próximo e com o Ser’". Assim começa o texto de Théodore, que discorre um pouco mais sobre a necessária comunicação entre o artista e o seu público. Um compositor, diz ele, tem suas aspirações próprias, suas alegrias, seus sofrimentos, suas feridas. Um artista de verdade sente necessidade natural da prática do seu ofício. Como exemplo, uma frase do próprio Stravinsky:

Para mim, a composição é uma função diária à qual me sinto chamado a cumprir. Componho porque para isso sou feito e não poderia jamais me dispensar de fazê-lo.”

Igor refletia muito sobre a questão do “tempo”. Para ele a música “é o único campo em que o homem realiza o presente…” A música, diz ele, estabelece ordem nas coisas, “uma ordem entre o homem e o tempo”. E por isso, para ele o ato de compor era sinônimo de realizar essa ordem. Mas de um tipo de ordem que nada tem em comum com “nossas sensações correntes”, pois se trata de ir a fundo na essência das coisas para arrancar dela um contraponto que possa interromper a sequência das “coisas correntes” e nos levar a um estado de espírito onde o tempo é outro, de outra natureza.

Para mim, hoje esta questão do tempo é dos temas que mais têm me tocado e que está indissoluvelmente ligado ao tema do ofício. Vivemos alucinados, na correria do cotidiano, das mil coisas a fazer. Vivemos num tempo em que o passado não conta e o futuro não existe. Já vivemos - até bem pouco tempo atrás, uns 20 anos - pensando que o futuro ia ser bom, pois nossa tradição era fértil. Os movimentos pós-modernos neoliberais nos trouxeram a este estado em que parecemos viver sempre no presente, agarrados a ele como bote salva-vidas. Mas não nos trouxe a um mergulho no “eterno presente”, no sentido não-linear da nossa noção de evolução da história, mas ao pragmatismo esquizofrênico do “fazer” coisas o tempo inteiro.

Como a arte pode trazer de volta essa “ordem entre o homem e as coisas”, de que fala Stravinsky? 

O artista precisa necessariamente - diz Théodore - experimentar ele mesmo esse contato com a essência do mundo, e do tempo. E mostrar que o que é acessório é completamente descartável quando se tem o essencial. Mas observa que esta tomada de consciência foi se elaborando em Stravinsky de forma progressiva, “como o germe de uma semente”. Para chegar a um tal estado, “Stravinsky necessitou de toda uma vida de trabalho, de experiências, de reflexões.” Numa atitude fundamental “constante”, atesta o filho do compositor russo.

Neste ponto ele propõe uma reflexão sobre forma e conteúdo:

Partitura da composição
"Pássaro de Fogo" de Stravinsky
No campo da arte “que me importam as coisas belas que quereis dizer-me (e que são espírito) se tu não encontrastes a forma adequada que possam ser assimiladas (forma que é matéria)? A imagem do homem, seu autor, toda obra de arte é ao mesmo tempo espírito e matéria, indissoluvelmente unidos em uma única entidade. Tropeçamos aqui com a eterna questão: a forma e o conteúdo. Não há forma viva sem conteúdo autêntico, e tampouco há conteúdo autêntico sem forma adequada. É uma exigência simples da nossa natureza.”

Mais à frente Theodore Stravinsky discorre sobre a atividade criado, dizendo que ela é feita sob dois signos distintos, que ele chama de “ontológicos” e “éticos”.

Nos artistas que baseiam sua atividade criadora dentro do signo da ontologia (parte da filosofia que estuda a natureza do ser, a existência, a realidade), estes concentram seus esforços na “obra a realizar”. É essa obra que vai ditar suas exigências e todos os passos que seu autor precisa dar para poder alcançá-la. E pergunta: como conceber uma obra a realizar se não for sob determinada forma? Por isso, buscar a perfeição da forma é a preocupação principal e constante dessa “família” de artistas. E completa que esses artistas fazem isso porque

“sabem muito bem que somente sob esta condição é que sua obra terá aquela completa autonomia que querem conferir-lhe.”

Quanto aos que seguem o signo da “ética” (no sentido dos valores morais, de caráter pessoal) começam seu trabalho interrogando ao seu eu, a “cujas exigências tratarão de conformar a obra a realizar.” Esse “eu” é o que rege tudo e a ele tudo deve obedecer. O critério de “sinceridade” passa a ser dominante. A obra de arte gerada aí não tem autonomia, porque se encontra marcada “com o selo do seu autor” ou como “expressão daquilo que ocorre em seu foro interno e desejada como tal pelo artista”. Os artistas desta categoria se incluem dentro daqueles que buscam o “conteúdo espiritual” de suas obras. Mas, continua Théodore, esse conteúdo “é algo muito mais profundo e somente a forma, quando alcançou sua perfeição, tem a virtude de nos fazê-la sensível; é somente ela a que, expressando-se substancialmente, nos revela ao mesmo tempo o eu profundo em que ambos - forma e conteúdo - encontraram seu nascimento simultaneamente. Quando conseguem realizar uma obra válida, uma obra-mestra têm que admitir que inconscientemente, e apesar deles mesmos, esses artistas trabalharam, na realidade, como os anteriores.”

E conclui dizendo: toda obra perfeita, seja qual seja sua etiqueta, pode ser considerada clássica. E que Stravinsky pertence, sem sombra de dúvidas à primeira categoria, pois “seu sentido ontológico da obra, seu gosto artesanal pelo ofício se desenvolvem e se comprovam nele com o passar dos anos, na medida em que vai tomando consciência de si mesmo, de sua vocação própria”.

Para Stravinsky, a inspiração se identifica com “aquela atração irresistível que experimenta pensando no objeto a realizar, no problema concreto que se propõe a resolver”.

Igor Stravinsky
Théodore exemplifica o gosto inato de seu pai pelo seu ofício e pela “obra bem feita”, mostrando um pouco como era sua sala de trabalho. “O aposento em que trabalha não tem nada a ver com o espaço de um intelectual, mas é uma verdadeira oficina; sua mesa, uma bancada. Tintas e lápis de diferentes cores aparecem junto a borrachas flexíveis ou duras, penas de todo tipo e calibre, raspadores grandes e pequenos, traçadores, réguas, papeis secantes e potes de cola”. E isso sempre chamou a atenção de todos os que se acercaram dele. O mesmo amor que ele tinha por seu ofício, diz Théodore, ele tinha pelas coisas.

Sempre se diz que uma obra de arte é reflexo em maior ou menor grau de seu autor. E isto também vale, na opinião de Théodore, para as outras artes: pintura, escultura, poesia. E opina, também como artista plástico que era: “sob pena de ir parar num esoterismo mais ou menos declarado, ou no puramente decorativo” a pintura e a escultura “deve salvaguardar (pelo menos em certa medida), seu caráter figurativo. Só ele permite realizar aquela ‘comunhão com o próximo’ que é - como vimos no caso de Stravinsky - o mais íntimo desejo de todo artista autêntico”.

O mesmo se passa com a poesia, diz ele. “É pelo sentido inteligível, racional das palavras e das frases que se estabelece a comunhão entre o poeta e o leitor; é por esse canal necessário, mas que não deixa de ser bastante diverso, que se transmite sua verdadeira mensagem poética.”

E continua: “A música, sendo como toda arte uma linguagem, expressa necessariamente algo; da mesma maneira que uma linguagem, uma arte inexpressiva é inconcebível”. Mas para que não se confundam os que contra-argumentam mostrando que o debate forma-conteúdo é morto, a obra de arte, seja ela música, poesia ou pintura expressa “algo essencialmente inefável”. Os longos textos que se escrevem para “explicar” determinadas obras jamais poderão suprir a falta de sentido e de qualidade estética, seja musical, poético, imagético. 

Concluindo esse primeiro capítulo do livro, entre os escolhidos para comentar aqui, transcrevo a frase de André Gide, que Theodore Stravinsky colocou como abertura do capítulo de que trata da evolução do músico:

Foi retendo e restaurando a tradição quando esta se estava extraviando, que Poussin pode parecer a Delacroix saudavelmente revolucionário”.

(Nicolas Poussin foi um pintor francês que morreu em Roma em 1665 e sempre foi um ferrenho defensor do classicismo na pintura. Do outro lado, Eugène Delacroix, outro pintor francês que viveu no século XIX, foi um dos maiores artistas do movimento romântico e realista.)