terça-feira, 9 de julho de 2024

Dissonâncias na vida fora dos padrões

20/07/2022

Fim de tarde de segunda-feira pegamos a estrada que segue além do terreno da Ecomunidade Bem Viver. Passamos por outros sítios, o do vizinho de cerca e os de logo depois, em busca de um pedreiro, pois vamos construir uma espécie de barracão para guardar ferramentas e servir de oficina. Os três cães vieram nos receber bravos: quem são essas duas mulheres e esse rapaz estranhos a eles? Mas são cachorros de roça, latem mas não mordem. Principalmente se a dona da casa desce para ver quem chegou, seguida por um filhote de gato, esse, sim, amistoso e brincalhão.

O pedreiro ainda não tinha voltado do trabalho; está construindo um fogão à lenha em algum sítio nas redondezas. Mas deve estar pra chegar, disse a esposa. Resolvemos tomar a estrada de volta e quem sabe cruzar com ele, em seu fusca vermelho. Nosso carro tinha ficado numa bifurcação da estrada, logo depois da porteira principal. Como a noite vinha chegando, resolvemos esperar um pouco, sentados dentro do carro. 

Seja pela escuridão que começava a apagar as cores do mato, seja por algum pensamento aleatório, começamos a lembrar tempos da ditadura militar no Brasil e das pessoas que resistiram, que foram presas, torturadas, assassinadas. Nossos olhares se estenderam para a América Latina, afinal estávamos no ponto exato da bifurcação da estrada, ponto de convergência: a figura de Simón Bolívar surgiu gigante à nossa frente, herói latino-americano, mas logo lhe pusemos ao lado dos nossos heróis, porque somos um país que tem história de resistência desde que foi invadido por portugueses lá pelos mil e quinhentos… E demos vivas a Zumbi, a Antonio Conselheiro, aos resistentes de todos as cores brasileiras.

Mas a noite caiu e o pedreiro não veio, decidimos voltar para casa. Passamos outra vez ao lado de nossa terra onde Júlio havia trabalhado o dia inteiro, aspergindo seu inseticida natural feito de folhas de várias espécies, fermentadas com água e açúcar mascavo. Essa alquimia natural tem sido fruto de estudo e pesquisa dele nos últimos tempos, trazendo para nós a sabedoria de antigos agricultores de longínquos países asiáticos. Nossos pés de limão e frutas cítricas estão crescendo bem, florindo e produzindo os primeiros frutos, e isso atrai pulgões e outros insetos oportunistas. Júlio é sábio, Júlio acorda e dorme cedo, se interessa por grandes questões do mundo, incluindo a de criar novas formas de vida que respeitem o meio-ambiente. E se preocupa em viver em um mundo mais justo, onde a distribuição de riqueza seja ampla e todos possam viver em paz. Júlio tem vinte e cinco anos…

De volta à casa, em torno da mesa, olhamos mais uma vez para o mapa da nossa terra. O arquiteto encarregado de fazer o desenho da distribuição dos lotes no terreno de três alqueires e meio, apresentou uma proposta. Como nos reunimos semanalmente de forma virtual, o projeto foi cuidadosamente verificado por todos nós e, após poucas mas importantes alterações, o plano de ocupação está aprovado. Cabe agora a ele cuidar de apresentar a versão final, com todas as medidas feitas para que a terra possa ser redesenhada com ruas, lotes, energia elétrica, instalação hidráulica, sanitária, etc.

Com isso, o momento de tomar posse, de fato, do nosso pedaço de terra se aproxima e as coisas se movimentam. Agora é pra valer, as horas estão chegando… O encontro com o lugar do sonho vai se tornando cada vez mais real e o passo em direção à mudança de vida foi iniciado. Entra outra fase: a do planejamento das construções coletivas, a abertura de ruas, a instalação da rede elétrica, a captação de água, a cerca-viva que precisa ser plantada, as buscas por bons pedreiros e as apresentações aos vizinhos, aumentando nossa rede de contatos.

Em breve cada um tomará posse do lote que lhe coube e irá planejar as construções das moradias. Entre as cotas, onze mangueiras crescem, exuberantes, felizes com a luz que abrimos e a limpeza de mato que fizemos em torno delas. Algumas já passam do nosso tamanho. Lá embaixo, perto da área mais úmida, crescem nossos ipês e outras mudas de árvores. Três abacateiros ainda se esforçam por se adaptar ao bioma. Dar tempo ao tempo… “Aguardaremos, brincaremos no regato, até que nos tragam frutos, teu amor, teu coração…”

Do lado direito, na parte mais baixa do terreno, uma árvore se destaca. Não sabemos ainda de que espécie ela é, que nome tem. É alta, tronco grosso, cascudo. Sua sombra é bem ampla e já sonhamos em limpá-la embaixo, montar um banco de bambu, uma mesinha e, ao lado dela, enterrar fundo um mourão para segurar uma rede… Com a permissão de Oxóssi, Òké Arô! Agô! Levar livros para ler embaixo dela, papeis para escrever e desenhar sob suas folhas, fazer dessa árvore um lugar de encontro e reflexão, onde o pensamento possa viajar para outros mundos, voar como os pássaros de Cunha, pois o “pensamento parece uma coisa à toa” mas os mundos são infinitos quando a gente voa. Ou sonha. Sonhei que uma senhora estava comigo lá e me dizia que esta árvore é a “cereja do bolo”. Essa árvore é a existência de um Brasil mais antigo e mais bonito do que a avenida Faria Lima… Viva o Brasil maior do que a Faria Lima, esse lugar da estreiteza, do egocentrismo, do lucro, das vaidades… 

Voltar para São Paulo, ato necessário, para onde a vereda da minha vida ainda aponta. Cidade boa, cidade má, São Paulo é tudo, um mundo. Um dia desses eu esperava o farol abrir para pedestres para atravessar a avenida Liberdade. Um rapaz se aproximou de mim. Não, não era um rapaz. Era uma moça. Não, não era uma moça. Era um homem Trans: corpo de homem, cabelos, adereços e roupas femininas, enfeitando sua longínqua e improvável masculinidade. Parou bem na minha frente. Antes que eu pensasse qualquer coisa, me tascou a pergunta: – moça, a senhora tem preconceito de mim? Olhamo-nos nos olhos, ele aguardando minha resposta que veio tão imediata quanto sua pergunta: não! Jamais! Tive de me segurar para não dar um abraço naquela pessoa, rejeitada por este mundo quadrado que resolveu, em algum momento do passado, estreitar as possibilidades de ser em apenas duas vias, macho e fêmea. Mendigue Trans, havia sido xingade um minuto antes de me encontrar, por uma pessoa a quem foi pedir uns trocados.

Passei dias refletindo sobre tudo isso. Os incômodos que sentimos no caminhar da vida quando esbarramos em momentos dissonantes, é bom que nos movam para debaixo das árvores, estas velhas sábias que estão milênios a nos ensinar que não existe indivíduo, que a vida é em rede…

Belezas acesas por dentro

 

06/06/2022

O caminho vai se tornando familiar. Chego até à Marginal Tietê em direção à rodovia Ayrton Senna, depois Carvalho Pinto, Dutra e a transversal Paulo Virgínio. Mas ainda estou saindo de São Paulo, carregando comigo minhas coisas e meus pensamentos. A vida anda complexa nestes tempos, exigindo de nós uma autoconsciência ainda maior, no sentido de saber que somos um coletivo e não um indivíduo absoluto pleno de poder sobre todas as coisas.

Deve ser o peso de encarar a vida urbana tão conturbada de hoje em dia que trouxeram esses pensamentos. O neurocientista Sidarta Ribeiro começa seu novo livro “Sonho manifesto” dando um verdadeiro soco no estômago, mostrando as nossas feridas civilizatórias que estão mais abertas do que nunca: 800 milhões de pessoas passando fome no mundo; 800 mil pessoas se suicidam anualmente em todo o planeta, o dobro do número dos homicídios; crianças, mulheres e até caciques indígenas violentados e mortos na Amazônia; jovens sem perspectiva de futuro; trabalhadores esgotados para se manter no Brasil, no Japão e nos EUA; a cada minuto, onze pessoas morrem de fome… E por aí vai a lista tenebrosa. 

Adicione-se a essa receita triste as mudanças climáticas que nos tem atingido e que atingiu minha terra, Pernambuco, nestes últimos dias. Mais de cem pessoas mortas em uma nova tragédia causada pelas mudanças climáticas. Estamos alcançando uma linha de chegada perigosa que, se a cruzarmos, poderá ser o começo de muitos fins. No entanto, ainda há tempo.

Cheguei na casinha da roça no sábado à tardinha. As cores do céu pintadas pelo crepúsculo formavam uma paleta riquíssima de amarelos, laranjas, vermelhos e até violetas e rosas. Alguns verdes da terra se amarelavam para se aproximar do céu ou até se saturavam ainda mais, tornando-se mais verdes, para nos mostrar os avermelhados de algumas nuvens. Opostos magníficos que são cores complementares… Na medida em que seguimos pela estrada de terra e o sol vai baixando no horizonte recortado das montanhas, os verdes e os tons terras vão se tornando escuros. Há um momento em que quanto mais escuro é o que está próximo de nós, mais há luz no céu. E quanto mais luz há no céu do fim do dia, mais escura é a sombra concentrada nas massas de árvores. Pura ilusão óptica, mas um dos mais belos jogos perceptivos da mente humana… ou da alma? O resultado? Beleza! Ainda vou pintar essas cores!

Chegamos trazendo a noite. Uma fogueira já estava acesa e uma roda de amigos novos, visitantes, tinha se formado entre a fogueira e a cozinha, onde Lumena cozinhava pinhão para todos. Todos artistas da modelagem, do desenho, da criação. As conversas foram leves, plenas de risos e do prazer das nossas narrativas pessoais, que são estimulantes e curativas. Depois que eles saíram e que nos prometemos reeditar este encontro no Morro do Querosene em São Paulo, fomos dormir.

Desde que cheguei, ouvi com estranhamento o mugido de um boi nas redondezas. Dentro do silêncio da noite, aquele som era tão triste que me tocou, trazendo um sentimento de solidariedade àquele ser que sofria. Fiquei com muita vontade de procurar e abraçar aquele bicho, porque seu mugido era um verdadeiro e doloroso lamento. Mas não saberia me guiar pelos meandros da noite escura e encontrar o animal que, num intervalo de alguns minutos, repetia seu grito. 

Adormeci, enquanto ouvia o lamento do boi que foi se misturando a um som da minha infância, que veio de lá do fundo da minha memória: os aboios que meu pai cantava. Ele muito cedo aprendeu a guiar o gado pelas pastagens ou a levá-los de volta ao curral, entoando esses cantos chamados de “aboio”, que todo sertanejo nordestino pratica. O gado reconhece a voz do dono e parece ficar em silêncio, encantado pelos aboios cantados do vaqueiro. Porque nesses mundos por muitos de nós esquecidos, homens, mulheres e natureza se entendem, falam a mesma língua. Porque “já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens, é certo e indiscutível pois que bem comprovado nos livros das fadas carochas”, diz Guimarães Rosa em “Conversa de bois”.

Amanhecido o dia, soube que o bicho era uma vaca. Homens tinham vindo comprar bezerros e tinham levado o dela porque era chegada a hora do desmame. Na mesma hora meu sentimento materno emergiu e me identifiquei de imediato com a dor que essa mãe sentia. Mais tarde, deparamo-nos com ela: uma vaca preta que, ao nos ver, abriu a boca num novo som que parecia querer atravessar todas as montanhas e que trouxesse seu bezerro de volta. Parecia nos ameaçar… Foram seres como nós que lhe causaram essa consumição. Mas “não, ela é boazinha”, disse o dono dela depois. Só estava sofrendo. “Em dois dias passa”, completou seu Francisco, homem acostumado à dinâmica dos bois.

Ainda estamos naquela fase de aprender tudo desse lado do mundo: o tempo das sementes e da colheita, como cortar a braquiária, usar a enxada e a foice, podar, coroar as árvores tomadas pelo mato. E o aprendizado inclui as temporalidades todas: quando é tempo de semear e de colher, no ritmo da natureza em cuja rede está envolvida até a Lua! Já sabemos que é melhor colher bambu na lua minguante… Até mesmo os mais céticos das crenças populares se calam diante do fato de que os bambus colhidos em lua cheia, por exemplo, racham mais porque soltam mais líquido. 

Uma das grandes lições que tenho aprendido desde que resolvi me alinhar à esta rede dos que defendem a interrupção do modo de vida atual que nos leva à morte, é que toda a nossa racionalidade ajuda, mas não basta.  “Compreender” as coisas só com a mente é limitante, pois somos também feitos de coração. Nossos mundos reais são entremeados do imaginário individual e coletivo. É justo resgatar do mais fundo de nossas almas o que lá pode estar oculto o que nos faz mais ricos: a percepção de que somos parte desse grande mistério que chamamos Vida. Oxalá isso se torne consciência nesse mundo que parece ter decretado seu fim. Epa Babá!

As noites de outono em Cunha, na lua minguante ou na nova, trazem um presente especial. A Via Láctea surge no céu quase ao alcance de nossas mãos e podemos admirar as nuvens de poeira cósmica que se formam em redor de constelações e estrelas. Ali atrás da casinha está “subindo” no céu o Cruzeiro do Sul. Oposto a ele, me virando mais para o Norte, o Sete-Estrelo, como chamamos as Plêiades no Brasil. O Sete-Estrelo da lenda Tupi, que são os sete filhinhos que Sy, a mãe, abandonou. Girando meu corpo um pouco mais, encontro as Três Marias do Cinturão de Órion. Maria da Glória, Maria da Penha, Maria das Dores?… Assim sigo dançando na noite, tocada pelas estrelas e pela minha imaginação que agora vê o “gado” celeste se movimentando junto comigo, dançando a dança do universo… 

Vou me deitar porque a noite é gelada também. A vaquinha finalmente silenciou, a dor amainou. Entro murmurando a música de Lulu Santos, inspirada por minha visão noturna: 

“Tudo o que se vê não é

Igual ao que a gente viu há um segundo

Tudo muda o tempo todo no mundo…”