terça-feira, 7 de junho de 2011

O pintor Paul Gauguin amou a luz na Baía de Guanabara...*

“É extraordinário conseguir tanto mistério
em tanta luminosidade”
(Stephane Mallarmé sobre seu amigo Gauguin)

O pintor Paul Gauguin
Num dia como hoje, 7 de junho, há 163 anos atrás, nascia o pintor Paul Gauguin, um dos grandes nomes da pintura francesa do século XIX, que foi homenageado no final do ano passado com uma exposição no museu Tate Modern de Londres.

Eugène Henri Paul Gauguin nasceu em Paris, em 7 de junho de 1848. Era filho de um jornalista republicano e da peruana Aline Chazal que, segundo certos autores, seria neta de Simon Bolívar. Sua avó materna, Flora Tristán, foi uma ativista feminista e socialista no Perú. Gauguin passou os primeiros anos de sua infância em Lima, só voltando à França com sete anos de idade.

Em sua juventude, Gauguin embarcou na Marinha Mercante e em seguida na Marinha Francesa, passando seis anos navegando pelos mares do mundo, passando inclusive pelo Brasil, pelo Rio de Janeiro. Voltando à Paris em 1870, vai trabalhar na Bolsa de Valores e três anos depois casa-se com uma moça dinamarquesa – Mette Sophie Gad – com quem teve cinco filhos: Émile, Aline, Clovis, Jean-René et Paul-Rollon.

Em 1874, conhece o pintor Camille Pissarro e vê a primeira exposição dos pintores impressionistas. Gauguin se apaixona cada vez mais por pintura e começa a pintar ele também. A convite de Pissarro e Edgar Degas, participou da quarta exposição dos Impressionistas. 

Em 1883, quando ele já tinha participado de mais três exposições impressionistas, a Bolsa de Valores de Paris sofre uma grande queda e ele perde o emprego. 

Visão após o sermão - A luta de Jacó com o Anjo, 1888,
73x93cm, National Gallery of Scotland,
Edimburgo, Grã Bretanha
Gauguin decide se dedicar totalmente à pintura, e se estabelece em Rouen, onde Pissarro morava. Durante esses dez meses em Rouen, Gauguin pintou 40 telas, inspirando-se nas ruas e arredores da cidadezinha. Mas não conseguia vender o suficiente para sustentar sua família. Empobrecidos, mudam-se para Copenhagen, onde vivia a família de sua esposa. Os conflitos com a família dela não demoram a tornar sua vida insuportável. Gauguin decide ir embora para Paris, levando consigo o filho Clovis.

Entre junho de 1885 e meados de 1886 ele aceitava qualquer trabalho em Paris, para sobreviver. Mas continuava pintando, e participou da última exposição dos impressionistas em 1886. Em julho desse ano, deixa o filho Clovis numa pensão e segue para a Bretanha, onde pinta intensamente. Em abril de 1877, sua esposa Mette vai a Paris buscar o pequeno Clovis e pegar algumas pinturas de Gauguin que pudesse vendê-las para ajudar no sustento dos filhos.

No mesmo mês, Gauguin embarca junto com o pintor Charles Laval (1861-1894) em direção ao Panamá, onde eles vão trabalhar na escavação do famoso Canal do Panamá. Numa carta à esposa, ele diz que estava fugindo de Paris porque “é um deserto para os pobres. Meu nome como artista se torna cada dia mais importante, mas, enquanto espero, passo até três dias sem comer”.

Mas no Panamá, não foi muito diferente. As condições de vida lá eram terríveis e assim que reúnem um pouco de dinheiro, Gauguin e Laval vão para a Martinica, lugar por onde Gauguin já havia passado, quando trabalhou como marinheiro. 

Mulheres do Taiti, 1891, óleo sobre tela, 69x91cm,
Musée d'Orsay, Paris,França
Também lá ele e Charles Laval viveram em condições bem precárias, de junho a outubro de 1887. Mas Gauguin se apaixonou pela luz e pelas paisagens da Martinica, pintando 12 telas. Doentes de disenteria e malária, resolvem voltar à França, em novembro do mesmo ano, quando Gauguin encontra pela primeira vez o pintor Vincent Van Gogh. 

No começo de 1888, ele se aproxima de um grupo de pintores experimentais conhecidos como a Escola de Pont-Aven. Gauguin já pintava de forma mais sintética do que antes. A arte indígena o inspirava, assim como os vitrais das igrejas medievais e as estampas japonesas. Nesse mesmo ano, pinta  “Visão após o sermão: a luta de Jacó com o Anjo”, uma pintura que vai influenciar Pablo Picasso, Henri Matisse e Edvard Munch.

De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos?,
1897-1898, óleo sobre tela, 139 x 374,5 cm,
Museum of Fine Arts, Boston, EUA
Ele aceita o convite de Van Gogh, e vai morar dois meses com ele em Arles, no sul da França. Os dois passam o tempo pintando, muitas vezes o mesmo tema, ou pintando um ao outro. Só que eles eram de temperamento muito diferente e tinham frequentes brigas. Gauguin resolve ir embora, depois de uma briga em que Van Gogh tentou agredi-lo com uma lâmina de barbear. Van Gogh corta a própria orelha.

Em 1891, Gauguin parte para a Polinésia, após vender algumas obras. Se instala no Taiti, onde ele encontra um meio de fugir da civilização ocidental e de toda sua artificialidade. Ele mesmo se definia “um selvagem”. Gauguin passa o resto de sua vida nessas regiões tropicais e só volta à França uma única vez. Influenciado pela natureza polinésia, sua pintura ganha nova força e ele faz algumas esculturas. No Taiti, pinta um de seus mais famosos quadros: “D'où venons-nous ? Que sommes-nous ? Où allons-nous?" (De onde viemos ? Quem somos ? Para onde vamos ?).

O espírito da morte espreita, 1892, óleo sobre tela, 72,4x82,4 cm,
Albright-Knox Art Gallery, Buffalo, New York, EUA
Conhece Téhura, uma jovem adolescente que se tornou sua modelo e companheira. Em poucos meses, pinta cerca de 70 telas. Ao saber da morte de sua filha Aline, fica profundamente abalado. Sofre com uma ferida na perna que não cicatriza, está doente de sífilis e, deprimido, tenta se matar. Decide se mudar para as Ilhas Marquesas, em setembro de 1901. 

Só que Gauguin levava consigo a fama de seus artigos combativos em favor da gente nativa que ele havia publicado no jornal Les Guêpes. Tinha uma postura ideológica dura em relação à Igreja, ao governador e à polícia local, saindo em defesa do povo do arquipélago das Marquesas, assim como já tinha se posicionado na Polinésia em favor dos indígenas. Trazia em seu sangue a tradição da avó peruana socialista. Em abril de 1903 foi condenado a três meses de prisão, mas morreu antes, em 8 de maio, pobre e doente.

Auto-retrato com chapéu, 1893-94, óleo sobre tela,
46x38cm, Musée d'Orsay, Paris, França
Após sua morte, os amigos fizeram uma verdadeira campanha de valorização de sua obra.
Gauguin, mais do que tudo, expôs em suas telas a luminosidade das terras por onde passou, desde os primeiros anos de vida no Peru, incluindo suas viagens de navio, quando passou pelo Brasil e “amou a luz da baia de Guanabara”. 

Com uma pintura muito característica sua, Gauguin pintou as peles morenas dos moradores da Polinésia e do arquipélago das Marquesas, as peles morenas que tanto o tinham encantado em suas viagens pelo mundo. Sua pintura colorida, iluminada de sol, carregada de histórias de culturas tão diferentes da sua cultura original francesa, mostra um homem sensível à beleza dos recantos longínquos, dos cantos distantes dos salões burgueses da França.






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* Trecho da música O Estrangeiro, de Caetano Velloso

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Romantismo em São Paulo e Londres


WILLIAM TURNER:
Pescadores no mar, 1796, óleo sobre tela, 
91 x 122 cm, Tate Gallery
Duas exposições - em São Paulo e Londres - trazem à mostra pinturas que têm origem no século XIX, de artistas do movimento conhecido como Romantismo. Esses artistas expressavam em sua arte os novos pensamentos que passavam a dominar o mundo, ideias que fervilhavam nos diversos movimentos revolucionários da época, especialmente na França. Ideias de Socialismo, inclusive, como alternativa às injustiças geradas pelo capitalismo industrial.

JOHN CONSTABLE:
A casa do almirante em Hampstead, 1821,
óleo sobre tela, 60x50 cm, Alte Nationalgalerie, Berlim
Mas no século XIX, especialmente em Paris, os pintores também se rebelavam contra o estilo Neoclássico, que uniformizava o mundo dentro do padrão da estética clássica, grega e romana. Pintores, mas também escritores, não queriam mais guardar fidelidade a esses modelos antigos, que limitavam a criatividade e as manifestações da individualidade, com duras e dogmáticas regras para as artes (para se ter uma ideia, havia receitas para se pintar bem, dentro dos cânones neoclássicos; havia uma receita de mistura de tonalidades de cores que eram usadas para pintar a pele das pessoas, por exemplo).

Os românticos - como ficaram conhecidos esses artistas rebeldes - pregavam a livre efusão dos sentimentos, a visão e a experiência individual do mundo. Eles não acreditavam num Belo absoluto, universal e eterno. O Belo era, para eles, transitório, relativo. Mesmo a feiúra do mundo era Bela. Podemos lembrar de um poema de Baudelaire que falava de uma carniça, assim como podemos buscar exemplos em vários poemas de seu livro Les Fleurs du Mal. Mas isso eu deixo para meu amigo Jeosafá Gonçalves, literato e estudioso de artes literárias.

WILLIAM BLAKE:
O Corpo de Abel Encontrado por Adão e Eva,
1825. Aquarela sobre madeira.
A origem da palavra Romântico, segundo vários estudiosos, vem do inglês "romantic", no sentido de pitoresco e até de bizarro. Na França, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) foi um dos pensadores que não somente influenciaram o Romantismo francês mas a própria Revolução Francesa, com suas ideias de Igualdade, Liberdade e Fraternidade. Segundo Carlos Cavalcanti (professor brasileiro de História da Arte, já falecido) o Romantismo nasce como consequência ao individualismo burguês que gerou o liberalismo econômico e político, que nasceram na Revolução Industrial.

Além de grande influência sobre as mudanças profundas que mudavam a história da França e da Europa, o Romantismo trouxe um novo tipo de artista: o excêntrico, o esquisito, o inconformado e rebelde contra os valores da burguesia industrial. Ser artista passou a ser sinônimo de uma pessoa desvairada, boêmia e de conduta antisocial. São os sonhadores, os poetas malditos, os que morriam de tuberculose e de fome. Eram aqueles que se negavam a pertencer a um mundo que trazia tão desagradável realidade: injustiça social, divisão de classes, preconceitos sociais, visão utilitária - leia-se comercial - do mundo e das relações. Foram os Românticos os primeiros pintores politizados, os artistas que pintavam a vida social. E os que, numa visão entre sentimental e utópica do mundo, recebiam com bons olhos as ideias socialistas nascentes.

EUGENE DÉLACROIX: A Liberdade guiando o povo, 1830,
Museu do Louvre, Paris.

Nesse meio, surgiram - para ficar só nas artes plásticas - Henry Fuseli, William Turner, John Constable, Samuel Palmer, William Blake, El Greco, Jeronimus Bosch, Théodore Géricault, Eugene Délacroix, Camille Corot, Charles Daubigny, Théodore Rousseau, Jean François Millet, além de outros tantos, entre os quais o famoso ilustrador de obras literárias Gustave Doré. No Brasil, um nome se destaca: João Batista da Costa (1865-1926) que, influenciado pela Escola de Barbizon (movimento de artistas românticos franceses), deu aulas de pintura e dirigiu a nossa Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro.

Na exposição em Londres, o foco são os artistas da Grã-Bretanha, suas origens, inspirações e legados. São obras da coleção da própria Tate Britain, onde se mostram grandes obras de Henry Fuseli, William Turner, John Constable e Samuel Palmer, bem como as obras recém-adquiridas de William Blake.

No Brasil, no MASP, podem ser vistas obras de El Greco, Bosch, Turner, mas também de pintores impressionistas como Gauguin, Van Gogh, Renoir, Monet e Manet, todos também pertencentes ao acervo do Museu de Arte de São Paulo.

JEAN-FRANÇOIS MILLET: As respigadeiras, 1857,
Museu D'Orsay, Paris.
É uma excelente oportunidade para ver de perto obras que ilustram a história da arte, em especial a pintura que representou um verdadeiro momento de ruptura na tradição, um movimento revolucionário nas artes que acontecia em momentos de revoluções profundas, em especial na França, como lembra Gombrich, o historiador da arte e autor de vários livros sobre o assunto.

Na Tate Britain, a exposição vai até 31 de julho de 2011. No Masp, a exposição foi aberta no ano passado e não tem previsão de encerramento.
THÉODORE GÉRICAULT:
A barca da medusa, 1817-1818, óleo sobre tela, Museu do Louvre, Paris.


quarta-feira, 1 de junho de 2011

Desenhos de mar


"... cantando espalharei por toda parte

se a tanto me ajudar o engenho e a arte"
(Os Lusíadas, de Camões)



Tempos desses, numa praia do sul, no inverno, sem vento, mar gelado. E aquilo tudo ali à minha frente: mar, pequenos barcos, gaivotas, ondas, areia... deu a impressão de que o Real se magnificou ali na minha frente, e registrei aquilo ali em desenhos e no poema abaixo: 



À beira-mar


Onde está o vento?
Tento mais a mais me adaptar
ao imprevisto sopro dos ventos
me inventando a cada instante
criando a mim mesma
para ser possível a dança do momento.


Mas agora não há vento por aqui:
há um mar gelado, gaivotas, nuvens... e faz frio...
Hoje eu não sou o vento que sopra de todas as partes.
Hoje?
      - Eu aguardo o rumo dos acontecimentos
        sem o vento
        eu, como este barco solitário e inerte
        aguardo meu marinheiro...


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O poema veio original e estranhamente em francês:


Au bord de la mer

Où est le vent?
J'essay de plus en plus m'adapter
au imprévu souffle des vents
en inventant à moi même à chaque instant
en créeant à moi même
pour être possible la dance du moment.

Mais maintenant n'a pas de vent ici
il y a une mer de glace, des mouettes, des nues... il fait froid...
Aujourd'hui je ne suis pas le vent qui souffle de toutes parts
Aujourd'hui?
      - J'attends le chemin des èvènements
      sans les vents
      Moi, comme cette barque solitaire et inerte,
      j'attends mon marin.


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Enquanto isso, outras histórias se passavam por ali:
Um urubu tava por ali comendo um pedaço de peixe...


... e outro urubu se aproximava
mas as gaivotas eram maioria...
elas se espalhavam pela praia e pelo trapiche...

disputando com pessoas que iam ver o mar.

domingo, 29 de maio de 2011

Estudo de Arte Realista

Alguns dos que estudam Arte Realista com Maurício Takiguthi, em seu atelier
em São Paulo. Maurício é o de camiseta preta, frente ao cavalete.
Neste sábado à tarde, umas 20 pessoas se reuniram lá no Atelier Maurício Takiguthi, como fazemos uma vez por mês, para estudar mais um capítulo do livro de Heinrich Wölfflin, "Conceitos Fundamentais de História da Arte", desta vez sobre Pluralidade e Unidade na Pintura. Vimos como a pintura clássica era basicamente feita de partes autônomas dentro do quadro, não só pela diversidade de figuras mas também pela forma técnica da pintura, mais linear. Vimos como depois, no Barroco, as várias partes de uma pintura formam um todo único, sem ser possível deslocar um pedaço qualquer do contexto do quadro sem que a parte deslocada perca sentido. No Barroco (Caravaggio, Rembrandt, Rubens, Vermeer, Vélazquez...) é que podemos observar um entrelaçamento nas cores, uma espécie de espalhamento das massas, uma inter-relação entre todas as partes e figuras. O quadro, como um todo, conversa entre si.


Assunção de Maria, de Rubens
Mas Wölfflin alerta que isso não significa necessariamente um julgamento de valor, que um fosse superior ao outro, somente aponta que a Unidade estética do quadro surge como algo totalmente novo. Na pintura clássica as partes possuem uma função autônoma. Nesta pintura de Rubens (1577-1640) - ao lado - dá bem para ver que o quadro poderia ser dividido em dois, por exemplo, sem muito prejuízo do conjunto. E mesmo que os olhares se dirijam sobretudo para a figura de Maria no céu, os diversos personagens parece que não possuem relação entre si.


O que não é possível com este outro quadro, de Rembrandt (1606-1669) - abaixo - pois, como dá para ver, as partes se encontram interconectadas num todo indivisível e não seria possível destacar nenhum pedaço da cena, sem que ela sofresse prejuízo. Até mesmo no estudo de uma simples cabeça dá para se perceber claramente esses dois conceitos de unidade e de pluralidade dentro da História da Arte. E aqui vale lembrar que a Arte não se encontra separada do resto da vida, mas reflete as mudanças que vão ocorrendo no mundo e na sociedade ao longo do tempo. Até o pré-Renascimento, por exemplo, o poder da Igreja Católica influenciava diretamente a Pintura, com os padres dando as regras inclusive do uso das cores e fazendo uma grande diferenciação entre o mundo celeste e o mundo terreno. A partir do Renascimento, com o capitalismo mercantil trazendo mudanças profundas em todos os níveis, as coisas do céu foram perdendo importância e mesmo que os assuntos religiosos continuem sendo um tema na pintura, os seres humanos que aparecem nela já tem mais realidade e mais valor do que nas pinturas de períodos anteriores. Não dá mais para separar a terra e o céu. 


Nos detivemos também um pouco mais detalhadamente no estudo do quadro do grande pintor holandês Jan Vermeer (1632-1675) "Alegoria da Pintura", de 1666. O quadro é um grande exemplo de como um artista pode ser minucioso sem ser detalhista. Quando ampliamos ao máximo qualquer trecho dessa pintura vemos como Vermeer trabalhava com a ideia de que bastam pequenos toques do pincel, por exemplo, para dar o efeito desejado. Vermeer, assim como Rembrandt, são considerados pictóricos e não lineares, ou seja, dão preferência às massas de cor, aos valores, aos efeitos da luz. Um exemplo entre muitos em Vermeer: o lustre no alto da sala é trabalhado com muita minúcia em termos de uso da massa, do efeito da luz e da sombra, da massa que ultrapassa a forma, etc. Nos olhos e nos lábios da modelo, vemos como apenas pequenas pinceladas configuram a expressão doce e suave que ela aparenta. Isso mostra a diferença entre ser minucioso (na aplicação das regras da arte pictórica) e não detalhista.

Alegoria da Pintura, de Vermeer
Enfim, o estudo detalhado desta pintura, por si só, já serve como um curso inteiro sobre como funciona a pintura realista. Há uma profunda unidade na forma, nas cores, no tema, na composição, nos valores, na luminosidade.


Tributo à ética protestante do trabalho, de Jeremy Geddes
Um exemplo de pintura detalhista e linear é o do pintor hiper-realista contemporâneo Jeremy Geddes, um pintor australiano. Nesta tela a óleo pintada em 2009, que se intitula "A Tribute to the Protestant Work Ethic", podemos ver que: - é uma pintura linear, mais próxima da acadêmica; há uma preocupação muito grande em ser detalhista até nos mínimos efeitos; no conjunto do quadro, parece que o artista está mais preocupado em mostrar o quanto ele é bom. Diferentemente desse outro quadro de Vermeer, onde o pintor até aparece, mas de costas. O que importa não é ele, Vermeer, mas sim importa mostrar como a representação da realidade pode se dar de forma pessoal, suscinta, simples, elegante. 


Coisas como essas são bastante elucidativas de como a arte de uma época é o reflexo não somente daquele período histórico, mas mostra também o quanto um mestre é feito não somente de técnica, de execução perfeita, mas também de Pensamento, de Conceito, de Conhecimento. E de visão de mundo.


No Atelier de Arte Realista, em pleno século XXI, buscamos aprender a técnica do desenho e da pintura em profundidade, mas também nos interessa - a mim, pelo menos - compreender conceitualmente o que significa ser, hoje, uma pintora realista.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Os novos Maneiristas – arte-espetáculo

Uma grande leiloeira de obras de arte, a Christie’s nova-iorquina, realizou entre 26 e 27 de maio, um grande leilão com obras de 150 artistas latino-americanos, porque a bola da vez do restritíssimo mercado de arte agora é a América Latina. Um empreendimento altamente lucrativo para investidores em obras de arte, que deve movimentar em torno de 25 milhões de dólares, segundo os organizadores. E muito lucrativo também para os artistas que o mercado escolheu, entre os quais as brasileiras Beatriz Milhazes e Adriana Varejão.


Estou preparando uma pesquisa sobre o assunto Arte e Mercado, que devo publicar em breve neste blog. Mas desde já adianto algumas indagações, que considero importantes, com vistas a provocar uma reflexão maior sobre os termos atuais que gestam o que nestes tempos se chamam de “artes visuais”.


A Fonte, de Duchamp
Antes de mais nada, vale sempre lembrar de uma historinha que sempre funciona como pano de fundo para as coisas esquisitas que teimam em acontecer hoje, na chamada “arte contemporânea”. Em 1917 – há 94 anos, portanto! – o francês Marcel Duchamp mandou para uma exposição que acontecia em Nova Iorque, um urinol de parede, que ele intitulou “A Fonte”. Inaugurou, na História da Arte, o período da chamada “arte conceitual”, a arte da boa ideia ou, como diz Ferreira Gullar, a “arte da caninha 51”.


Hoje (um hoje que já dura muito, e dura porque existe um sistema muito organizado por trás dele), os Neo-Maneiristas se revezam em imitar artistas do passado. Houve um tempo em que os pintores imitavam outros pintores, que eles consideravam grandes Mestres, ou seja, pintavam “à maneira de” Da Vinci, de Ticiano, de Rafael... Eram os Maneiristas. Viviam na Europa no mesmo período em que o Brasil começava a se formar, lá pelos idos de 1520-1600. Eles tinham muito orgulho de fazerem cópias perfeitas dos seus mestres, pois dominavam a técnica do desenho e da pintura da época, de forma excelente (veja abaixo).


Os maneiristas de hoje também se satisfazem em repetir ideias de artistas passados, dos tempos de Duchamp (antes de Marcel Duchamp, devem pensar eles, será que o mundo existia???)


O artista e sua obra: Damien Hirst
e seu cadáver de tubarão,
conservado em formol
 
Não parece que hoje o que importa é causar frisson estético, e chamar a atenção do mercado para que o artista – o neo-maneirista – ganhe lá também os seus dólares e abocanhe a sua fração vantajosa financeiramente? Mesmo que seja como autor de um espetáculo que beire a crueldade, para dizer o mínimo? “Isto vai desde obras\espetáculos onde, por exemplo, se incendeia uma galinha, fatia-se um boi, tortura-se um inseto, até a utilização do corpo humano em cenas de mutilação”, diz Affonso Romano de Sant’Anna, em O Enigma Vazio.


Já se fez de tudo na “Arte Conceitual”, depois do penico de Duchamp... Já foram usados todos os meios e todos os líquidos humanos para serem apresentados como obras de arte em galerias e museus da moda: sangue, esperma, saliva, suor, menstruação e... merda! 


O artista e sua obra: a merda
enlatada de Piero Manzoni
Literalmente. Em maio de 1961, Piero Manzoni transformou suas próprias fezes em uma obra, que ele vendeu muito bem: mais 1 milhão de libras por latinhas com a merda do artista, etiquetadas com o título “Merda d’artista”. Em 2004, o britânico Damien Hirst vendeu – como obra de arte – um tubarão mergulhado em formol, por 12 milhões de dólares, ao administrador de fundos norteamericano Steve Cohen.


Seria uma ideia fazer aqui uma lista das coisas que já foram expostas como obras de arte, mas em respeito a quem acompanha este blog, vou dispensá-los do mal-estar físico - além de intelectual - que essa lista causaria...


Mas não posso deixar de falar sobre uma exposição que está acontecendo neste momento no Rio de Janeiro, na Casa França-Brasil, um espaço que pertence ao governo do Estado do Rio: A exposição “2892”, inaugurada em 14 de maio último, de Daniel Senise.


Os lençois expostos na Casa França-Brasil. Mais vale
olhar para o teto do prédio!
Consta que em 1993, esse artista doou lençóis brancos ao Instituto Nacional do Câncer e a um Motel do Rio de Janeiro. Obra de caridade? - Não, Arte Conceitual, amigo! 


À maneira de Duchamp (e tantos d’outros) Senise iria recolher esses lençois mais de 15 anos depois para apresentá-los numa exposição assinada por ele, esta que está ocorrendo neste momento. O título dessa exposição é o número das pessoas que se enrolaram nesses... lençóis(?). Agora fico sem saber se chamo de lençois algo que foi elevado à condição de obra de arte. De um lado, os lençóis que passaram pelos clientes do Motel. Do outro, os que enrolaram os doentes com câncer... No meio, um corredor macabro, onde o visitante desavisado pode ser surpreendido por sua imaginação que irá visualizar ali todas as “marcas de amor” naqueles lençois e, do outro lado, marcas de doentes de câncer... Sangue, esperma, líquidos humanos... 


E “isso” é Arte? 


Que mundo é este, onde a arte que fazemos é ESSE tipo de arte? Será que não há uma tremenda coerência com essa produção de arte contemporânea atual e essa sociedade neoliberal que acha cada vez mais legal ser de direita, como disse Marcelo Rubens Paiva recentemente? Uma sociedade que aplaude o preconceito, a discriminação, a elitização, o jogo midiático manipulador e o consumismo, teria que tipo de artistas para ilustrar seu pensamento? Uma sociedade dominada pela caretice evangélica, por falsos mas milionários profetas, por pensadores medíocres mas ilustres que usam meia dúzia de palavras para arrancar risadinhas nervosas da classe média, teria outro tipo de artista, que não os escolhidos do mercado e do sistema?


Como diz o poeta e crítico de arte Affonso Romano de Sant’Anna, a arte contemporânea já não é mais assunto para quem é especialista em Artes, mas em Psicanálise...


OS MANEIRISTAS JÁ FORAM BONS NO PASSADO!

Retrato de Maximilien II e sua família,
atribuída a Giuseppe Arcimboldo, por volta de 1563