terça-feira, 9 de julho de 2024

Ponto de Fuga

22/08/2022

São Paulo está sofrendo uma modificação visual como há muito tempo não se via. Praticamente não há bairro, entre a zona oeste e sul, onde inúmeros edifícios não estejam sendo levantados. Residenciais ou não, essas torres se erguem verticalmente ocupando o espaço que antes era de casas e sobrados. À esquerda e à direita do meu campo visual, aqui no bairro onde moro, a visão ampla está sendo bloqueada, incluindo a visão do céu. É como uma espécie de cerco, de redução dos limites, mesmo que visuais, e a sensação vai do desconforto à claustrofobia. Roubaram de mim o horizonte, encurtaram o espaço, aceleraram o tempo, apagaram as estrelas… 

Imagino o futuro: mais densidade demográfica e mais carros, muitos mais. Mais gente disputando espaços, consumindo energia, consumindo… Torres altas, falos verticais finos ou largos, agressivos, ao gosto da arquitetura da vez.  Os modismos arquitetônicos das novas modernidades urbanísticas, vêm afagando o mercado imobiliário e o lucro: em cada andar do prédio, onde antes cabiam dois ou quatro apartamentos, que agora caibam dez, vinte. Porque os tamanhos das moradas das pessoas também foram limitados a 15, 20, 30 metros quadrados. 

Mas se oferece mundos. E Fundos: ou imobiliários abstratos ou bem concretos se você uberizar seu bem. Mas é para o seu bem! Você pode interagir com a vizinhança, caso queira. Há espaços para a malhação coletiva, piscinas, lobbies, spa, espaço co-working, lounge, espaço delivery e rooftop (a língua portuguesa não dá conta de tanta modernidade?)… Ah os rooftops! Pagando para morar apertado, você tem acesso à visão do céu no telhado da torre. Lá, sim, você pode respirar, mesmo que o ar impuro da urbe, e ampliar um pouco mais sua visão, não muito, o suficiente para voltar a ser o escravo que se é, mesmo sem querer, da engrenagem toda do sistema. Enjaulado como um carneirinho, você tem acesso ao mundo, se quiser, nos aplicativos do seu celular. Só que não. A ilusão se perde aos poucos, à medida em que se amadurece. Não se iluda, não me iludo! 

Quando cheguei em São Paulo, há 35 anos, a cidade me era um encanto. Tudo era grande, quantitativa e metaforicamente. Andava pelas ruas do Bexiga com suas casas antigas, testemunhas da passagem do tempo nas vidas de gerações de pessoas. E de Adoniran Barbosa. A avenida Paulista estava logo ali, mais acima, imponente, com prédios modernos. Também caminhei anos pelas ruas da Vila Madalena, onde também morei, bairro habitado por estudantes da USP e antigas famílias portuguesas que, aos domingos, voltava a parecer uma pequena cidade do interior. E pelos meninos do Premeditando o Breque, o velho “Premê”, que encontrei uma ou duas vezes no Sujinho da Vila. Trabalhava, estudava, cuidava de crescer na vida, ia ao cinema, lia, frequentava museus, shows, bares, casas de amigos. São Paulo é tudo isso. 

Muitas vezes saí por aí cantando o Premê: “é sempre lindo andar na cidade de São Paulo, o clima engana, a vida é grana em São Paulo, a japonesa loura, a nordestina moura (eu) de São Paulo, gatinhas punks, um jeito yankee de São Paulo, na grande cidade me realizar, morando num BNH…” Hoje São Paulo não tem mais jeito yankee, seu jeito é hipster! Mas já foi fashion. 

Seu Francisco nunca saiu muito longe de sua aldeia. Seu Dito trocou a vida em Cunha pela vida no sítio, que ele comprou quando era possível a um trabalhador comprar um pedaço de terra naquela região. Seu Francisco não é fashion, seu Dito não é hipster. Há muitos mundos no mesmo mundo meu, que continuo nordestina e carrego em mim a sina da música de Luiz Gonzaga: quem sai da terra natal, em outro canto não pára. Não parei no meu canto nesta cidade grande que é de muitos e é também muito minha. Mas os movimentos de uma vida errante me levam em direção ao Ponto de Fuga que se inicia na pequena área de montanhas que circundam o Vale do Paraíba. Mas como não ando só, vou cantando a música de Chico Maranhão, que vai dizendo: “fique também pensando que o ponto de fuga por ser pequenino não cruza as retas mais curvas que o mundo tem”… 

O trator está rasgando a terra, corte suave para traçar ruas. Como vamos chegar, há que se desenhar um espaço onde viver entre a Serra do Mar e a Serra da Bocaina, em meio ao mar de morros. A primeira construção, coletiva, já está com as paredes levantadas. Há formigas comendo as folhas dos limoeiros e há a braquiária crescendo de novo na horta que preparamos. Ou seja, a Vida pulsa. Há um lago que foi reformatado para ficar bonito. Há o espaço da minha casa a ser construída em breve sendo posto à vista. Já sabemos os nomes dos nossos vizinhos, algo de suas histórias, de seus bichos, da Zina e do Gominho. Já iniciamos novas relações com artistas cunhenses, da cerâmica e das artes plásticas. Já agendamos as datas das festas de São Benedito, do Pinhão, do Divino. Vamos chegando, lentamente, suavemente… pois alguém nos “avisou pra pisar neste chão devagarinho”. 

Pareço um pião neste momento: nas mãos de uma criança, o pião sobe e desce, fazendo caracóis em movimento para a frente e para trás, para cima e para baixo. Meu carro já conhece as direções de um lado e do outro, já se sujou no pó fino da estrada de terra seca por falta de chuvas e se enlameou quando as chuvas vieram grossas, penetrando a terra. Olho para meus três gatos e falo a eles que esperem, que terão dias melhores na liberdade do mar de montanhas. Xavier, Tom e Chico me fitam sérios, parece que querem entender porque de vez em quando eu desapareço do apartamento, escorro pelo elevador do prédio, pelas ruas e estradas em direção àquele Ponto de Fuga… É necessário desenhar e retraçar esses caminhos, é meu ofício, é minha vida de artista e o traço precisa ser feito daqui pra lá, de lá pra cá, quantas vezes for preciso porque viver é preciso e necessário.

Quando a lua "incandeia"

25/07/2022


O “master plan” finalmente está pronto. Isso significa que o arquiteto escolhido colocou no papel o conjunto das decisões tomadas por nosso grupo, sobre como iremos ocupar nosso terreno em Cunha. O resultado é um desenho, apresentado em “planta baixa”, onde ele indica as curvas de nível do terreno, o arruamento e a disposição de doze cotas que serão distribuídas entre os associados da Ecomunidade Bem Viver. Além disso, indica onde passará a rede de distribuição de energia elétrica, a rede sanitária e a distribuição da água.

Necessário explicar alguns pontos importantes sobre o que um agrupamento de pessoas necessita para habitar uma localidade. O que fazer com ítens básicos: luz, água, esgoto, lixo. Num condomínio comum, segue-se o padrão conhecido, pagando-se por luz e água, captação coletiva de dejetos lançados em qualquer lugar, inclusive nos rios e no mar. Quando resolvemos nos unir nesta associação, decidimos também nos unir à natureza e cuidar dela, como cuidamos de nós e dos nossos animais. A água necessária temos fartamente, provenientes de duas nascentes que iremos cuidar como preciosidades. A energia elétrica será distribuída de forma padrão, inicialmente, mas projetando um futuro em que esta energia virá de placas captadoras da energia do sol. Os dejetos que produzimos passarão por sistemas de biodigestão, que se transformam em adubo rico para plantas que necessitam de ambiente úmido, como as bananeiras. Quanto ao lixo, serão separados: o lixo reciclável que será levado para locais onde seja separado e reutilizado, e o lixo orgânico que irá alimentar nossas composteiras.

Esses temas já foram fruto de conversas do grupo como um todo e das recentes conversas na casinha alugada do nosso vizinho. Conversas de cozinha são sempre inspiradas: enquanto alguém cozinha e todos bebem uma cervejinha ou uma cachaça, os temas vão surgindo. Luciana, antropóloga que viveu anos de experiência nas matas do Pará perto de tribos indígenas, sempre traz boas histórias, como a de alguns que, nas noites mais frescas, dormem literalmente ao lado do fogo das fogueiras e acordam cobertos pelo pó gris das cinzas. Ou se fala dos banheiros secos, comuns na região nordeste e norte do país. São espécies de “toilettes” que não usam vasos sanitários, as pessoas ficam de cócoras mesmo, posição milenarmente mais natural para defecar. Mas já somos “letrados”, viemos da cidade, então os confortos que aprendemos não precisam ser descartados. 

O passo seguinte ao desenho do “master plan” é contratar um profissional especialista em traduzir o desenho feito pelo arquiteto e dar a ele concretude: medir espaços, fincar pequenas estacas de bambu demarcando terrenos e ruas. Na sequência, outro profissional com sua máquina de terraplanagem irá rasgar as ruas, transformando o desenho do arquiteto em um traçado tridimensional, real. E seguindo nesse planejamento, um pedreiro já foi contratado para construir um barracão de ferramentas, que também servirá de oficina. Esta primeira construção é necessária para que possamos acionar o quarto profissional, o que irá puxar o fio da rede elétrica municipal que passa ao largo, trazendo luz para todos nós…

Enquanto a conversa seguia na cozinha onde Luciana preparava uma sopa de lentilhas para nós, incluindo Gabi, Vitor, Kawni e Alê, saí para fora para ver a que alturas subia a lua cheia. Ela brilhava gigante, tão brilhante que despertou-me um sentimento de reverência. Era um pedaço de luz amarela no céu, um amarelo espalhafatoso, quase escandaloso que tinha subido acima das colinas e ofuscava a vista, revelava a natureza em volta. 

Que diferença das noites escuras das luas novas e minguantes, onde o “lá-fora” da casinha é um todo completo de escuridão. Desta vez, há sombras por todo lado: de árvores, de cercas, de folhas. Até meu corpo projeta uma sombra angulada, dobrando o meu tamanho. Dá para imaginar a pequenina sombra projetada por alguma ave noturna, meio incandiada por tanta luz. Incandiar é uma palavra que aprendi ainda criança em Caruaru: significa ficar com a vista ofuscada diante de qualquer luz, inclusive a do candeeiro. “Incandeia, incandeia, incandeia, incandeia meu candiá”, canta Zeca Pagodinho e canta o povo nas rodas de samba por aí… Me incandeia, Lua! Luz-me, Lua!

Pensei nos pequenos pés de abacate que plantei recentemente e que lutam para se adaptar. Que pequenas sombras estarão projetando agora? Um frio na barriga me fez retornar à casa, porque acabei de ver em pensamento o que será brevemente minha vida que até há pouquíssimo tempo não passava de um sonhar.

Compramos uma roçadeira no dia seguinte. Queremos aprender a roçar, é necessário manter sob controle a braquiária e o mato acostumado a crescer livre e sem controle. Já cobriram os pés de mandioca, antes quase sufocaram as mangueiras e as frutas cítricas. 

Andar pelo terreno agora é diferente. Já visualizamos jardins, bancos, flores, casas, nossas casas. Ali será o pomar, onde vamos cuidar coletivamente de legumes e folhas que nos alimentarão. Acolá, aquele lago ainda feio, informe, feito por mãos um pouco descuidadas, será nosso reservatório de água e em volta dele plantaremos flores, colocaremos pilhas organizadas de pedras para enfeitar o entorno. A nossa mata crescerá ainda mais bela, porque lhe adicionaremos mais árvores. Os passarinhos se multiplicarão em volta das miríades de flores que teremos e as abelhas captarão o néctar produzido pelas glândulas vegetais, levando-o para as colmeias que teremos.

Isto é o sonho.

O pesadelo é o Brasil de hoje.

Soubemos que no Paraná um aniversariante petista foi assassinado a tiros por um militante bolsonarista. O criminoso que preside o Brasil se anima em ameaças cada vez mais explícitas contra a nossa democracia fragilizada. E deixa de mãos amarradas os partidos, a oposição, os movimentos sociais, o povo, a todos nós. Um sequestro de um país inteiro! Sob essa onda proto-fascista, notícias horríveis vêm de todos os lados: menina de 11 anos estuprada e obrigada a dar à luz; um homem negro levado para trás de uma viatura e assassinado a tiros pela polícia; mais negros mortos violentamente em mais lugares; mais mulheres violentadas e assassinadas por seus parceiros em mais novos crimes; mais assaltos, mais roubos de celulares, mais sequestros, mais medo, mais doenças mentais, mais gente passando fome! E nas florestas, árvores sendo derrubadas, minérios sendo roubados, indígenas sendo assassinados…

Ontem saí para dar uma volta na avenida Paulista. O parágrafo acima caiu-me em cheio, pesado. Um homem empacotado com uma bandeira de Bolsonaro caminhava entre os transeuntes, talvez sem saber que carregava sobre os ombros a violência e incorporava a própria Morte… 

“Mudar o mundo, meu amigo Sancho, não é loucura, não é utopia, é  justiça.” Apesar desta necropolítica, seguiremos sonhando. E cantando. “Incandeia, incandeia, incandeia, incandeia meu candiá!”…

Dissonâncias na vida fora dos padrões

20/07/2022

Fim de tarde de segunda-feira pegamos a estrada que segue além do terreno da Ecomunidade Bem Viver. Passamos por outros sítios, o do vizinho de cerca e os de logo depois, em busca de um pedreiro, pois vamos construir uma espécie de barracão para guardar ferramentas e servir de oficina. Os três cães vieram nos receber bravos: quem são essas duas mulheres e esse rapaz estranhos a eles? Mas são cachorros de roça, latem mas não mordem. Principalmente se a dona da casa desce para ver quem chegou, seguida por um filhote de gato, esse, sim, amistoso e brincalhão.

O pedreiro ainda não tinha voltado do trabalho; está construindo um fogão à lenha em algum sítio nas redondezas. Mas deve estar pra chegar, disse a esposa. Resolvemos tomar a estrada de volta e quem sabe cruzar com ele, em seu fusca vermelho. Nosso carro tinha ficado numa bifurcação da estrada, logo depois da porteira principal. Como a noite vinha chegando, resolvemos esperar um pouco, sentados dentro do carro. 

Seja pela escuridão que começava a apagar as cores do mato, seja por algum pensamento aleatório, começamos a lembrar tempos da ditadura militar no Brasil e das pessoas que resistiram, que foram presas, torturadas, assassinadas. Nossos olhares se estenderam para a América Latina, afinal estávamos no ponto exato da bifurcação da estrada, ponto de convergência: a figura de Simón Bolívar surgiu gigante à nossa frente, herói latino-americano, mas logo lhe pusemos ao lado dos nossos heróis, porque somos um país que tem história de resistência desde que foi invadido por portugueses lá pelos mil e quinhentos… E demos vivas a Zumbi, a Antonio Conselheiro, aos resistentes de todos as cores brasileiras.

Mas a noite caiu e o pedreiro não veio, decidimos voltar para casa. Passamos outra vez ao lado de nossa terra onde Júlio havia trabalhado o dia inteiro, aspergindo seu inseticida natural feito de folhas de várias espécies, fermentadas com água e açúcar mascavo. Essa alquimia natural tem sido fruto de estudo e pesquisa dele nos últimos tempos, trazendo para nós a sabedoria de antigos agricultores de longínquos países asiáticos. Nossos pés de limão e frutas cítricas estão crescendo bem, florindo e produzindo os primeiros frutos, e isso atrai pulgões e outros insetos oportunistas. Júlio é sábio, Júlio acorda e dorme cedo, se interessa por grandes questões do mundo, incluindo a de criar novas formas de vida que respeitem o meio-ambiente. E se preocupa em viver em um mundo mais justo, onde a distribuição de riqueza seja ampla e todos possam viver em paz. Júlio tem vinte e cinco anos…

De volta à casa, em torno da mesa, olhamos mais uma vez para o mapa da nossa terra. O arquiteto encarregado de fazer o desenho da distribuição dos lotes no terreno de três alqueires e meio, apresentou uma proposta. Como nos reunimos semanalmente de forma virtual, o projeto foi cuidadosamente verificado por todos nós e, após poucas mas importantes alterações, o plano de ocupação está aprovado. Cabe agora a ele cuidar de apresentar a versão final, com todas as medidas feitas para que a terra possa ser redesenhada com ruas, lotes, energia elétrica, instalação hidráulica, sanitária, etc.

Com isso, o momento de tomar posse, de fato, do nosso pedaço de terra se aproxima e as coisas se movimentam. Agora é pra valer, as horas estão chegando… O encontro com o lugar do sonho vai se tornando cada vez mais real e o passo em direção à mudança de vida foi iniciado. Entra outra fase: a do planejamento das construções coletivas, a abertura de ruas, a instalação da rede elétrica, a captação de água, a cerca-viva que precisa ser plantada, as buscas por bons pedreiros e as apresentações aos vizinhos, aumentando nossa rede de contatos.

Em breve cada um tomará posse do lote que lhe coube e irá planejar as construções das moradias. Entre as cotas, onze mangueiras crescem, exuberantes, felizes com a luz que abrimos e a limpeza de mato que fizemos em torno delas. Algumas já passam do nosso tamanho. Lá embaixo, perto da área mais úmida, crescem nossos ipês e outras mudas de árvores. Três abacateiros ainda se esforçam por se adaptar ao bioma. Dar tempo ao tempo… “Aguardaremos, brincaremos no regato, até que nos tragam frutos, teu amor, teu coração…”

Do lado direito, na parte mais baixa do terreno, uma árvore se destaca. Não sabemos ainda de que espécie ela é, que nome tem. É alta, tronco grosso, cascudo. Sua sombra é bem ampla e já sonhamos em limpá-la embaixo, montar um banco de bambu, uma mesinha e, ao lado dela, enterrar fundo um mourão para segurar uma rede… Com a permissão de Oxóssi, Òké Arô! Agô! Levar livros para ler embaixo dela, papeis para escrever e desenhar sob suas folhas, fazer dessa árvore um lugar de encontro e reflexão, onde o pensamento possa viajar para outros mundos, voar como os pássaros de Cunha, pois o “pensamento parece uma coisa à toa” mas os mundos são infinitos quando a gente voa. Ou sonha. Sonhei que uma senhora estava comigo lá e me dizia que esta árvore é a “cereja do bolo”. Essa árvore é a existência de um Brasil mais antigo e mais bonito do que a avenida Faria Lima… Viva o Brasil maior do que a Faria Lima, esse lugar da estreiteza, do egocentrismo, do lucro, das vaidades… 

Voltar para São Paulo, ato necessário, para onde a vereda da minha vida ainda aponta. Cidade boa, cidade má, São Paulo é tudo, um mundo. Um dia desses eu esperava o farol abrir para pedestres para atravessar a avenida Liberdade. Um rapaz se aproximou de mim. Não, não era um rapaz. Era uma moça. Não, não era uma moça. Era um homem Trans: corpo de homem, cabelos, adereços e roupas femininas, enfeitando sua longínqua e improvável masculinidade. Parou bem na minha frente. Antes que eu pensasse qualquer coisa, me tascou a pergunta: – moça, a senhora tem preconceito de mim? Olhamo-nos nos olhos, ele aguardando minha resposta que veio tão imediata quanto sua pergunta: não! Jamais! Tive de me segurar para não dar um abraço naquela pessoa, rejeitada por este mundo quadrado que resolveu, em algum momento do passado, estreitar as possibilidades de ser em apenas duas vias, macho e fêmea. Mendigue Trans, havia sido xingade um minuto antes de me encontrar, por uma pessoa a quem foi pedir uns trocados.

Passei dias refletindo sobre tudo isso. Os incômodos que sentimos no caminhar da vida quando esbarramos em momentos dissonantes, é bom que nos movam para debaixo das árvores, estas velhas sábias que estão milênios a nos ensinar que não existe indivíduo, que a vida é em rede…

Belezas acesas por dentro

 

06/06/2022

O caminho vai se tornando familiar. Chego até à Marginal Tietê em direção à rodovia Ayrton Senna, depois Carvalho Pinto, Dutra e a transversal Paulo Virgínio. Mas ainda estou saindo de São Paulo, carregando comigo minhas coisas e meus pensamentos. A vida anda complexa nestes tempos, exigindo de nós uma autoconsciência ainda maior, no sentido de saber que somos um coletivo e não um indivíduo absoluto pleno de poder sobre todas as coisas.

Deve ser o peso de encarar a vida urbana tão conturbada de hoje em dia que trouxeram esses pensamentos. O neurocientista Sidarta Ribeiro começa seu novo livro “Sonho manifesto” dando um verdadeiro soco no estômago, mostrando as nossas feridas civilizatórias que estão mais abertas do que nunca: 800 milhões de pessoas passando fome no mundo; 800 mil pessoas se suicidam anualmente em todo o planeta, o dobro do número dos homicídios; crianças, mulheres e até caciques indígenas violentados e mortos na Amazônia; jovens sem perspectiva de futuro; trabalhadores esgotados para se manter no Brasil, no Japão e nos EUA; a cada minuto, onze pessoas morrem de fome… E por aí vai a lista tenebrosa. 

Adicione-se a essa receita triste as mudanças climáticas que nos tem atingido e que atingiu minha terra, Pernambuco, nestes últimos dias. Mais de cem pessoas mortas em uma nova tragédia causada pelas mudanças climáticas. Estamos alcançando uma linha de chegada perigosa que, se a cruzarmos, poderá ser o começo de muitos fins. No entanto, ainda há tempo.

Cheguei na casinha da roça no sábado à tardinha. As cores do céu pintadas pelo crepúsculo formavam uma paleta riquíssima de amarelos, laranjas, vermelhos e até violetas e rosas. Alguns verdes da terra se amarelavam para se aproximar do céu ou até se saturavam ainda mais, tornando-se mais verdes, para nos mostrar os avermelhados de algumas nuvens. Opostos magníficos que são cores complementares… Na medida em que seguimos pela estrada de terra e o sol vai baixando no horizonte recortado das montanhas, os verdes e os tons terras vão se tornando escuros. Há um momento em que quanto mais escuro é o que está próximo de nós, mais há luz no céu. E quanto mais luz há no céu do fim do dia, mais escura é a sombra concentrada nas massas de árvores. Pura ilusão óptica, mas um dos mais belos jogos perceptivos da mente humana… ou da alma? O resultado? Beleza! Ainda vou pintar essas cores!

Chegamos trazendo a noite. Uma fogueira já estava acesa e uma roda de amigos novos, visitantes, tinha se formado entre a fogueira e a cozinha, onde Lumena cozinhava pinhão para todos. Todos artistas da modelagem, do desenho, da criação. As conversas foram leves, plenas de risos e do prazer das nossas narrativas pessoais, que são estimulantes e curativas. Depois que eles saíram e que nos prometemos reeditar este encontro no Morro do Querosene em São Paulo, fomos dormir.

Desde que cheguei, ouvi com estranhamento o mugido de um boi nas redondezas. Dentro do silêncio da noite, aquele som era tão triste que me tocou, trazendo um sentimento de solidariedade àquele ser que sofria. Fiquei com muita vontade de procurar e abraçar aquele bicho, porque seu mugido era um verdadeiro e doloroso lamento. Mas não saberia me guiar pelos meandros da noite escura e encontrar o animal que, num intervalo de alguns minutos, repetia seu grito. 

Adormeci, enquanto ouvia o lamento do boi que foi se misturando a um som da minha infância, que veio de lá do fundo da minha memória: os aboios que meu pai cantava. Ele muito cedo aprendeu a guiar o gado pelas pastagens ou a levá-los de volta ao curral, entoando esses cantos chamados de “aboio”, que todo sertanejo nordestino pratica. O gado reconhece a voz do dono e parece ficar em silêncio, encantado pelos aboios cantados do vaqueiro. Porque nesses mundos por muitos de nós esquecidos, homens, mulheres e natureza se entendem, falam a mesma língua. Porque “já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens, é certo e indiscutível pois que bem comprovado nos livros das fadas carochas”, diz Guimarães Rosa em “Conversa de bois”.

Amanhecido o dia, soube que o bicho era uma vaca. Homens tinham vindo comprar bezerros e tinham levado o dela porque era chegada a hora do desmame. Na mesma hora meu sentimento materno emergiu e me identifiquei de imediato com a dor que essa mãe sentia. Mais tarde, deparamo-nos com ela: uma vaca preta que, ao nos ver, abriu a boca num novo som que parecia querer atravessar todas as montanhas e que trouxesse seu bezerro de volta. Parecia nos ameaçar… Foram seres como nós que lhe causaram essa consumição. Mas “não, ela é boazinha”, disse o dono dela depois. Só estava sofrendo. “Em dois dias passa”, completou seu Francisco, homem acostumado à dinâmica dos bois.

Ainda estamos naquela fase de aprender tudo desse lado do mundo: o tempo das sementes e da colheita, como cortar a braquiária, usar a enxada e a foice, podar, coroar as árvores tomadas pelo mato. E o aprendizado inclui as temporalidades todas: quando é tempo de semear e de colher, no ritmo da natureza em cuja rede está envolvida até a Lua! Já sabemos que é melhor colher bambu na lua minguante… Até mesmo os mais céticos das crenças populares se calam diante do fato de que os bambus colhidos em lua cheia, por exemplo, racham mais porque soltam mais líquido. 

Uma das grandes lições que tenho aprendido desde que resolvi me alinhar à esta rede dos que defendem a interrupção do modo de vida atual que nos leva à morte, é que toda a nossa racionalidade ajuda, mas não basta.  “Compreender” as coisas só com a mente é limitante, pois somos também feitos de coração. Nossos mundos reais são entremeados do imaginário individual e coletivo. É justo resgatar do mais fundo de nossas almas o que lá pode estar oculto o que nos faz mais ricos: a percepção de que somos parte desse grande mistério que chamamos Vida. Oxalá isso se torne consciência nesse mundo que parece ter decretado seu fim. Epa Babá!

As noites de outono em Cunha, na lua minguante ou na nova, trazem um presente especial. A Via Láctea surge no céu quase ao alcance de nossas mãos e podemos admirar as nuvens de poeira cósmica que se formam em redor de constelações e estrelas. Ali atrás da casinha está “subindo” no céu o Cruzeiro do Sul. Oposto a ele, me virando mais para o Norte, o Sete-Estrelo, como chamamos as Plêiades no Brasil. O Sete-Estrelo da lenda Tupi, que são os sete filhinhos que Sy, a mãe, abandonou. Girando meu corpo um pouco mais, encontro as Três Marias do Cinturão de Órion. Maria da Glória, Maria da Penha, Maria das Dores?… Assim sigo dançando na noite, tocada pelas estrelas e pela minha imaginação que agora vê o “gado” celeste se movimentando junto comigo, dançando a dança do universo… 

Vou me deitar porque a noite é gelada também. A vaquinha finalmente silenciou, a dor amainou. Entro murmurando a música de Lulu Santos, inspirada por minha visão noturna: 

“Tudo o que se vê não é

Igual ao que a gente viu há um segundo

Tudo muda o tempo todo no mundo…”

Eu vim do Cunha...

 

4/04/2022

O tempo voou entre janeiro e abril, quando retomo estas crônicas sobre meu novo projeto de vida, a mudança da cidade para o campo. Nesse meio-tempo, adquirimos um pouco mais de três alqueires de terra em meio ao mar de montanhas da região de Cunha. Nesse meio-tempo, perdi um gatinho, o Miguilim, meu amigo felino que deixou a vida com apenas um ano de idade, e me fez refletir muito sobre a natureza da Vida em seu sentido maior. Meu gatinho me ensinou, em seus doze dias finais de vida, que se faz cada vez mais necessário, além de ter consciência ambiental e respeito à Natureza, o respeito pela Vida que pulsa em tantas outras formas. Fomos educados na cultura ocidental branca a ter respeito somente ou prioritariamente à vida humana, e caminhando dentro do conceito do homocentrismo nos damos todas as prerrogativas para ocupar, expandir, limitar, destruir, adaptar, queimar e até matar outros seres vivos que atravessarem nossos projetos e nosso desenvolvimentismo a todo custo. Miguilim me ensinou sobre a Vida…

Viajei para Cunha há poucos dias carregando comigo, além desses pensamentos, vários itens para nosso futuro trabalho na terra: enxada, cavadeira, tesoura de poda e rastelo, mas também vários itens para equipar a casinha de roça que alugamos enquanto não temos nosso primeiro teto. Cheguei no fim da manhã, sozinha, pois meus amigos viriam em outro carro um pouco mais tarde… Fiz uma arrumação geral em tudo, preparando para a chegada deles. O céu estava se fechando e um vento forte começou a cantar em todas as direções. Uma frente fria tinha chegado em São Paulo e, nas montanhas, ela vinha com mais força ainda. Por volta das 18 horas, fui pra porta da casa, ficar de olhos e ouvidos atentos. Mas o vento forte trouxe consigo uma chuva intermitente e isso era preocupante, uma vez que a noite estava caindo e a estrada de terra é sempre um perigo a enfrentar, em especial na escuridão molhada.

Que foi tomando conta do lugar. À noite, toda a variação de verdes possíveis dos morros e montanhas se tornam uma mesma massa cinza escura. O mistério parece descer sobre a terra… Ventos vindos de direções variadas arrancavam sonoridades diferentes para meus ouvidos: estalos nos bambus, farfalhar das folhas das árvores, algum barulho surdo de algo que cai e as águas que dançam na ventania, estalando sobre as folhas e o mato. O mistério se fez maior, e uma pontinha de medo me deu um leve arrepio. Lembrei do poema do Drummond “Anoitecer”, que Zé Miguel Wisnik musicou:

“É a hora em que o sino toca
mas aqui não há sinos; (…)
Hora de delicadeza
gasalho, sombra, silêncio.
Haverá disso no mundo?
É antes a hora dos corvos
bicando em mim meu passado
meu futuro, meu degredo…”

Esse clima de mistério que se abateu sobre mim, sozinha nas montanhas, numa cabana isolada, sem internet, sem telefone, sem possibilidade de comunicação, me trouxe à lembrança uma conversa que tive com minha mãe recentemente. Falávamos de vida na roça, como foi a vida dela até a adolescência, vivendo no meio do sertão do agreste pernambucano, onde viveram seus pais, meus avós e bisavós, e outros antepassados que saíram de Portugal para tentar a vida no Brasil selvagem e nunca mais voltaram. Lá pelas tantas, minha mãe me lembrou do nome do lugar onde nasceu e viveu meu pai, meu avô, meu bisavô… Cunha! Cunha! No mesmo momento em que ela pronunciou a palavra, ouvi a voz do meu pai me chamando muito pequena para ir para “o Cunha”! Assim mesmo no masculino ele falava, pois resumia numa expressão que o lugar onde meu avô vivia tinha esse nome.

Cunha! Mistérios da vida, dos giros que o mundo dá, como esse vento que sopra em redemoinhos trazendo gotas d’água e mais frio pra dentro da cabana. Me veio a vontade de agradecer a meus ancestrais; talvez eles tenham a ver com o fato de eu estar me mudando, a esta altura da minha vida, para Cunha? Nem o vento soube me responder pois soprava ainda mais forte qualquer braveza, entrando pelas frestas do telhado, me fazendo ir lá dentro buscar um cachecol de lã de lhama. O que importa? Mistérios são para serem contemplados, ficarem pulsando na alma como possibilidade de poesia, infinitamente… 

Mais de sete da noite e meu ouvido alerta não detectava nem sinal de meus amigos… Pensei: aguardo mais uma hora e se ninguém aparecer tento sair para ver se não encalharam em algum lamaçal da estrada. Mas uns quarenta minutos depois ouço vozes: da Sandra, da Paty, da Jane? Peguei minha lanterna e meu guarda-chuva, pronta pra ajudar a abrir as duas porteiras que separam a casa da estrada. Mas encontro elas e Luciana carregando malas e mochilas nas costas, sob a chuva. O carro não alcançou a última subida. Fui com a Paty até ele buscar o resto das coisas e Kawni, que lá tinha ficado de guarda. E a noite foi só festa e alegria, finalmente todas juntas.

Em breve teremos uma espécie de mapeamento do nosso terreno: onde ficará a casa-sede, onde estarão as cotas individuais, onde estará nossa horta, como canalizar a água do riacho que, sim, corre solto e limpo pela terra. Nos dois dias seguintes fomos, as seis pessoas prontas a acariciar nossa terra: limpamos em redor das fruteiras cítricas e das cinco mudas de árvores que plantamos, todas um pouco sufocadas pela braquiária e pelos lírios. Respiraram, estão crescendo. Logo nosso primeiro Ipê plantado, por nove mãos, será uma imensa árvore que vai nos dar sombra, flores e beleza. Colhemos macaxeira (mandioca ou aipim, nas línguas do sudeste) e dela fizemos a sopa que aqueceu nossa próxima noite. Fizemos fogueira e comemos pinhão, numa roda ao redor do fogo, com Jéssica e Leo que se juntaram a nós. Lumena, Flávio e Johnny desta vez não vieram, mas foram incluídos na roda do afeto. 

Na tarde seguinte foi preciso cobrir os dois quartos com as lonas que tinha trazido. Aquele vento frio insistia em nos castigar à noite, minhas amigas tinham dormido mal e nada como uma noite mal-dormida para trazer maus pensamentos, dúvidas, medos, toda espécie desses monstros mentais que nos atacam nas horas da escuridão. Mas essas devem ser as horas “da delicadeza, gasalho, sombra, silêncio”… Lonas colocadas e a próxima noite foi passada mais confortavelmente.

Não sabemos ainda ao certo quando será o momento de chegar e ficar em Cunha, de forma definitiva. Em alguns momentos vem a vontade de ser logo, em breves meses; em outros, é claro que domina a dúvida e ela pede tempo. Tempo pra pensar, pra sentir, pra resolver as paradas todas de quem se enrolou muito numa cidade grande como São Paulo. Nesse rolê metropolitano, mil garras nos seguram, verdadeiras teias nos enredam. E há os diversos cantos de sereias urbanas enganadoras que nos iludem com promessas as mais diversas como as oferecidas por uma grande cidade e seus bares, restaurantes, cinemas, teatros, museus e shows aos quais quase nunca vamos com a frequência que deveríamos… ou gostaríamos. Enquanto isso, o tempo passa… Mas a música de Criolo confirma e decreta e não me deixa duvidar:

“Os bares estão cheios de almas tão vazias
A ganância vibra, a vaidade excita
Devolva a minha vida e morra
afogada em seu próprio mar de fel!
Aqui ninguém vai pro céu!”