quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O sketchbook de Goya

Mendigo recostado, Goya
No livro que estou lendo, “Goya”, de Robert Hughes, a certa altura o autor fala do Caderno Italiano de desenhos que o artista espanhol carregou consigo e fez diversos registros em sua viagem pela Itália. Em sua época, nenhum artista que não fosse italiano ou que não tivesse tido uma formação naquele país era reconhecido na Espanha. Por isso, Goya foi para a Itália, seguindo os passos de gerações de artistas estrangeiros que iam se formar na “escola do mundo”, como era considerada a Itália “desde a época de Albrecht Dürer, no final do século XV”, observa Hughes.

Alegoria da Prudência
Esse “Cuaderno italiano” foi adquirido pelo Museu do Prado, de Madrid (Espanha) em 1993. Assim que veio a público, diz o Portal do Museu na internet, seu impacto foi grande não só entre os especialistas mas também entre o público geral. O Caderno de desenho de Goya tinha uma encadernação simples, assinada por ele várias vezes, tanto dentro quanto fora e tem um tamanho confortável para a pessoa carregar consigo. O papel, conforme informa o Museu, é de boa qualidade e apresenta uma espécie de marca d’água do famoso papel Fabriano, uma manufatura de papel italiana que vem desde o século XIV.

Nesse caderno, Goya fez os desenhos mais antigos que se conhece dele, inclusive desenhos preparatórios para pinturas que foram feitas na Itália ou imediatamente após sua temporada por lá. Além dos desenhos, como todo caderno de registro de artista que hoje são conhecidos como sketchbooks, Goya também fez anotações à mão como a lista de cidades por onde teria passado e até dados biográficos. Entre essas anotações o rascunho de uma carta a Mengs (pintor alemão), amigo do artista polonês Taddeo Kuntz com quem Goya compartilhou uma moradia em Roma. Nessa carta, Goya expressava sua vontade de voltar a Roma na companhia de Mengs. Também há a anotação do nascimento do seu primeiro filho, Antonio Juan Ramón y Carlos, no dia 29 de agosto de 1774. Ele teria anotado também: “me case el beinti cinco de Julio del año de 1773, y era Domingo / oy 15, de decienbre”.

Esse tipo de caderno era chamado, em italiano, de taccuini, e era ao mesmo tempo caderno de desenhos, de memórias ou de anotações várias. Eles foram muito utilizados pelos artistas desde que o papel se expandiu, a partir do século XV. Em suas páginas, pintores e escultores tomavam notas e faziam esboços para suas obras.

O sketchbook de Goya consta de 172 páginas, onde faltam algumas e outras estão incompletas ou rasgadas. Algumas folhas estão manchadas de óleo, pelo seu uso no ateliê onde se usava óleo de linhaça ou de nozes, na mistura dos pigmentos na pintura. Para os desenhos, ele usou lápis preto, e sanguínea (uma espécie de giz avermelhado e que existe numa só dureza, diferentemente do grafite). As tintas são de bistre, de tom castanho luminoso, fabricado com restos de fuligem e de madeira queimada das lareiras, mas também pó de carvão.

O “Cuaderno italiano” de Goya também contém cópias de pinturas e esculturas que ele teria feito em Roma, como, por exemplo o desenho da primeira página, cópia de “Alegoria da Prudência” de Corrado Giaquinto, assim como o desenho do “Hercules Farnesio” e o “Torso de Belvedere” de Pierre Legros, o Jovem, que são afrescos da basílica de São João de Latrão.

As figuras desenhadas na primeira página apresentam imagens e composições que seguiam o estilo neoclássico dos artistas romanos do século XVIII. Também estão lá os rascunhos que Goya fez para a pintura “Aníbal que vê a Itália pela primeira vez a partir dos Alpes”, com a qual ele concorreu na primavera de 1771 em um concurso da Academia de Parma, para o qual ele não teve êxito, segundo nos diz Robert Hughes.

Nas primeiras páginas do caderno também tem anotações curiosas, inclusive em italiano, como: materiais de pintura que ele adquiriu, número dos papas até 1771, notas sobre máscaras de carnaval ou de personagens da Commedia dell’Arte, o que mostra que ele teria assistido em 1771 ao carnaval em Roma, assim como pode ter visto apresentações de humoristas italianos.

Na sua lista de cidades pelas quais teria passado, estão também as cidades de Toulon e Marseille, na França, por onde ele deve ter passado em seu regresso à Espanha. Ele anotou que algumas dessas cidades ele viu “por fora”, como Turim e Milão. Mas parou em Gênova, Bolonha, Parma, Pádua e Veneza. Florença não está em sua lista, assim como Nápoles. Ao fim da lista, Goya completou com a frase:  “y otras muchas q. no me acuerdo”.

Lista das cidades
Nesse mesmo caderno, Goya registrou, já na Espanha, as primeiras encomendas que recebeu  como a “Virgem del Pilar”, “Morte de São Francisco Xavier”, para o Museu de Zaragoza, assim como os importantes afrescos que fez para o mosteiro cartusiano conhecido como Aula Dei, de Zaragoza, em 1774. Robert Hughes diz que esses monges pertencem a uma ordem “silenciosa e enclausurada, e o mosteiro nega a admissão a mulheres, sob quaisquer circunstâncias. Visitantes masculinos são recebidos, mas em termos estritamente limitados - um pequeno grupo, uma vez por mês, durante cerca de uma hora”. E essas pessoas continuam a ir até o mosteiro, ainda hoje, para ver de perto esses afrescos de Goya, os primeiros de sua carreira.

As últimas páginas, que datam de 1790, mostram alguns esboços de figuras claramente feitos por uma criança, assinados por “Xavi”, que pode muito bem serem atribuídas a seu filho Javier Goya, nascido en 1784.
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O Museu do Prado destaca que esse “Cuaderno italiano” de Goya se enquadra dentro do apreciado gênero dos “cadernos de artista”, dos quais há muitos exemplares, desde o século XV, que permitem algum conhecimento sobre seus autores, como pensavam, como desenhavam, como viviam.

Esse caderno resume o que deve ter sido a vida de Goya. Nessas páginas estão refletidas sua personalidade simples, seu senso de humor e até seu perfeccionismo. Falou de seu casamento, de seus filhos, das cidades que conheceu. Fez anotações sobre arte, assim como sobre suas contas; uma receita para a fabricação de verniz; registros de pinturas que lhe chamaram a atenção. Em seus desenhos, vê-se como lhe interessava muito o estudo da anatomia do corpo humano, os drapeados dos tecidos, os gestos e os rostos. Mas também desenhou um gato em cima de um muro, uma cabeça de burro entrando por uma janela, figuras enigmáticas cobertas com mantos da cabeça aos pés e uma cabeça humana meio mosntruosa que parece vomitar algo.


Algumas destas páginas do sketchbook de Goya aparecem neste post, mas mais podem ser vistas diretamente no portal Goya en el Prado, do Museu do Prado.

Anotação sobre nomes de aglutinantes e pigmentos
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terça-feira, 29 de janeiro de 2013

As opiniões sobre arte de Robert Hughes


Capa do livro

Comprei o livro “Goya” de Robert Hughes, lançado aqui no Brasil pela Companhia das Letras em 2007. Comprei-o no final de 2012 e estou lendo-o, para compreender um pouco mais profundamente a obra desse grande artista espanhol. Mas por enquanto, vou falar do autor do livro, Robert Hughes, um crítico com uma visão de arte que me interessa muito e a quem respeito.

Robert Hughes é um crítico de arte australiano, que nasceu em 28 de julho de 1938 e faleceu no ano passado, em Nova Yorque, EUA, onde residia desde a década de 1970.

Hughes sofreu um acidente de carro em 1999, onde quase perdeu a vida. Por causa do acidente, passou por mais de 20 cirurgias. Ainda por cima, em 2001, seu único filho cometeu suicídio aos 34 anos de idade. Após o sofrimento desses anos, lançou em 2003 este livro sobre o pintor espanhol Francisco Goya (1746-1828), um de seus preferidos.

Há uns anos atrás Robert Hughes concedeu uma entrevista a uma certa revista brasileira cujo nome é impronunciável, porque esta certa revista prima pelo descontrole emocional já faz alguns anos, e seu jornalismo é muito tendencioso na direção da direita. Mas o que interessa é falar de Hughes e o que ele falou naquele momento.

E disse que Francisco Goya, o grande pintor espanhol, fez uma obra que “extrapola seu tempo” e explicou porque resolveu escrever um livro sobre ele:

- “Por meio de sua trajetória e de suas ideias, pode-se entender melhor a história da Espanha e da Europa. Mas não só. Mais que qualquer outro pintor, Goya nos permite obter um conhecimento profundo da natureza dos sentimentos e da ideia de justiça, assim como de seus reversos, a injustiça e a crueldade. Nós vivemos num mundo de ironias ex­tremas e de paixões e agressões tão de­satinadas quanto às de que trata Goya. A loucura de que ele nos fala é uni­versal e atemporal. Apesar de repre­sentar tanto para a arte, ainda faltava um livro que o alçasse à sua devida dimensão. Julguei que era uma tarefa importante fazê-lo.”

O crítico de arte Robert Hughes
No livro, Hughes fala do acidente de carro que sofreu e das alucinações e pesadelos daqueles “dias difíceis”. Mas disse que somente com todo o sofrimento físico que passou após o desastre passou a ser capaz de conhecer “a experiência da dor”. No livro, Hughes conta um desses pesadelos, e nele era o próprio Goya quem vinha ajudar a esmagar a sua perna. E na entrevista ele disse que acredita que “um escritor que não conhecesse o medo, a dor e o desespero não teria uma visão completa do universo de Goya. Não es­tou dizendo, é óbvio, que seja necessá­rio quase perder a vida num acidente para entender um artista. Mas isso cer­tamente facilitou a apreciação da maté­ria-prima de sua obra, o sofrimento.”

No livro, Hughes mostra que Goya “foi também um dos poucos narradores visuais da dor física, do ultraje, do insulto ao corpo.”

Abaixo, alguns trechos do que ele disse na entrevista, que considero muito importante destacar e publicar aqui neste Blog:

Sobre a inundação que ocorreu em 1966 em Florença, cidade italiana, quando muitas obras de arte foram destruídas:
“Em Florença, vivi a expe­riência de encontrar destroços de peças renascentistas em meio à lama, uma tra­gédia que me fez compreender de uma vez por todas que aquilo que foi criado no período de ouro da arte é insubstituí­vel. Não apenas porque não se pode­riam refazer tais obras. Vivemos numa era muito pobre em matéria de artes vi­suais. Hoje se podem encontrar bons escultores e pintores, mas a ideia de que a arte atual possa um dia se igualar às enormes realizações do passado é um disparate. Nenhuma pessoa séria, por mais que se empolgue com a arte con­temporânea, poderia acreditar que ela um dia será comparada àquilo que foi feito entre os séculos XVI e XIX.”

Sobre como as pessoas podem se relacionar com a obra dos mestres do passado:
“Olhando para o que eles pro­duziram. Aprendendo a entender e a amar sua arte. Os mestres da pintura se relacionam a nós da mesma forma que as grandes obras literárias e as composi­ções musicais do passado. Como o ho­mem atual pode se relacionar com Cer­vantes? Por meio da leitura de sua obra. Dom Quixote continuará sendo uma his­tória contemporânea em qualquer tem­po e lugar. É preciso ter em mente que a arte é feita antes de tudo para deliciar os olhos e o espírito. É por meio desse ape­lo intuitivo que ela nos arrebata e con­duz, no fim das contas, a um conheci­mento mais profundo de nossa natureza.”

Autorretrato, de Rembrandt
Sobre o papel das artes plásticas na formação cultural de uma pessoa:
“Não recomendo que se olhe para os grandes artistas com o intuito de atingir um nível cultural superior, pois, como já disse, o objetivo maior da arte é dar prazer. Mas posso falar de seu ca­ráter enriquecedor pela minha própria experiência. Muito antes de eu me tornar um crítico, a arte desempenhou um papel fundamental em minha vida, na medida em que me fez entender certas questões existenciais mais claramente do que qualquer livro ou aula teórica o fariam. Seria um exagero dizer que se pode educar alguém por meio da arte. Mas ela é capaz de fazer de nós pessoas melhores e mostrar que existem muitos mundos além do nosso umbigo.”

Sobre o pensamento contemporâneo de que o presente precisa se livrar do passado:
“A noção de que há uma oposição entre o presente e o passado é estúpida. Trata-se de uma deturpação vulgar do ideário modernista de pri­meira hora. Ele consistia em questionar o tradicionalismo, mas não a herança dos antigos mestres. Os futuristas ita­lianos, é verdade, chegaram a propor a destruição das obras de arte criadas no passado - como se fosse possível apa­gar sua influência apenas com sua ex­tinção por meios físicos. Mas o fato é que toda arte digna de nota feita no sé­culo XX se baseou no passado. Os mo­dernistas que realmente importam, co­mo Matisse e Picasso, nunca se pauta­ram por sua rejeição. Muito pelo con­trário: as fontes de que extraíram sua inspiração foram os artistas da Renas­cença e do século XVIII.”

Impressões sobre o artista pop norteamericano Andy Warhol:
“Warhol foi uma das pessoas mais chatas que já conheci, pois era do tipo que não tinha nada a dizer. Sua obra também não me toca. Ele até pro­duziu coisas relevantes no começo dos anos 60. Mas, no geral, não tenho dú­vida de que é a reputação mais ridicu­lamente superestimada do século XX.”

Sobre Marcel Duchamp:
“Foi um prazer conhecê-lo, embora certamente não seja o primei­ro artista em minha lista dos mais im­portantes de sua época. Sua elevação à condição de figura "seminal" nunca me convenceu. Já vi de perto todos os trabalhos que ele fez e nunca obtive nenhum prazer com eles. Duchamp não foi um grande artista, e sim um homem de ideias notáveis. Pessoal­mente, prefiro um pintor como o fran­cês Pierre Bonnard. Muita gente consi­dera Duchamp um deus e Bonnard um impressionista enfadonho. Mas eu gostaria muito mais de ter em casa um de seus belos quadros do que um tra­balho de Duchamp. Além disso, a in­fluência de Duchamp sobre a arte con­temporânea foi liberadora, mas tam­bém catastrófica. Porque ser o pai dessa boba­gem chamada arte conceitual não é uma distinção de que se orgulhar. Para com­preender o tamanho do estrago, basta dizer que sem ele hoje não haveria as chamadas instalações, aquelas obras to­las em que o espectador é convidado a passar por túneis e outros recursos in­fantis. Ou precisa ler uma bula para en­tender o que o artista quis dizer.”

Sobre os preços astronômicos de leilões de obras de arte:
“Francamente, não consigo imaginar uma boa razão. Os preços se tornaram tão obscenos e sem sentido que, a meu ver, só podem ser resultado de al­gum tipo de doença social. As pessoas que se sujeitam a pagar tanto por um qua­dro são movidas por motivações ridículas, como ostentar seu prestígio e poder. Não compactuo com essa insanidade.”
“A supervalorização atende aos interesses de certos marchands e cole­cionadores, mas é danosa para a arte. Passa-se a valorizar um artista ou ten­dência em função de seu cacife no mercado, e não da importância de suas realizações. Além disso, sua transformação em bem de consumo de luxo muitas ve­zes dificulta que um dia o grande públi­co possa contemplá-las em museus.”
“Daqui a vinte anos, veremos quanto se pagará pelas obras de um sujeito como Hirst - que, aliás, não me interessam nem um pouco. Hirst e outros de sua geração fazem do escândalo uma arma de marketing. Mas um renascentista co­mo Piero della Francesca conseguiu ser radical num nível que ele nunca passou nem perto de alcançar.”

Sobre as Bienais de Arte:
“Não ligo a mínima para bie­nais, trienais, quadrienais ou coisas que o valham. Elas hoje têm relevância ape­nas para os negociantes de arte. Por bai­xo da fachada novidadeira, a maioria desses eventos se transformou em feiras vulgares. Nunca estive na Bienal de São Paulo. Mas a de Veneza eu conheço bem. Alguns anos atrás, fui convidado a colaborar com seus organizadores e me vi em tal pesadelo que renunciei a meu posto. Já que é tudo comércio, melhor deixar para quem entende disso.”

Sobre a arte de países sem muita tradição nessa área:
“Não direi que será sempre assim. Mas eles enfrentam um problema e tanto: não têm controle sobre o mercado. Parece-me inusitado que a Austrália amargue uma presença pró­xima do zero na arte mundial enquan­to qualquer porcaria que se produz na Califórnia logo alcança visibilidade. A atmosfera do circuito internacional de arte é corrupta, já que se vive de criar modismos e falsos novos gênios para faturar. Essa é uma das razões pelas quais eu me aposentei como crítico. Prefiro me concentrar em alguns artistas cujo trabalho realmente importa a ver minhas resenhas sendo usadas para in­flar as cotações alheias. O presente, em arte, é sempre um terreno pantanoso e sujeito aos golpes de marketing. Tome­-se como exemplo o carnaval que se faz no momento a respeito da arte chinesa. A maior parte do que se convencionou rotular de pós-modernismo chinês é ape­nas uma empulhação bem promovida pelos marchands e casas de leilões. As vítimas deles são os colecionadores no­vos-ricos que pululam pelo mundo afora e compram tudo o que vêem pela frente. Eles podem ter dinheiro, mas não pas­sam de idiotas e vítimas da moda.”

É isto. Mais um na nossa lista dos que se opõem ao “pensamento único” da arte contemporânea e consideram o que se faz atualmente em nome da Arte um grande jogo que envolve mercado, marchands, galeristas e, infelizmente, artistas. Poucos ganham bilhões de dólares ou de euros nesse jogo, mas a “arte” que eles dizem negociar durará a moda da próxima estação. Daqui a 500 anos as pessoas continuarão admirando “Dom Quixote” de Cervantes e a “Escola de Atenas”, de Rafael Samzio ou qualquer um dos autorretratos de Rembrandt. Mas duvido muito que resista ao tempo qualquer um dos tubarões da coleção dos formois de Damien Hirst e outros. 

Robert Hughes lamentava nosso tempo em que a Arte virou brinquedo nas mãos do Mercado. Para ele, a história da Arte Moderna é uma história trágica e lamentava ter vivido somente após os grandes momentos criativos do Modernismo, em seus primórdios no começo do século XX. O Mercado que transformou a Arte em mercadoria é o mesmo que ajuda a multiplicar e a proliferar os artistas-celebridades.

Esta pintura do artista realista Gusta Courbet, O Desesperado, seria um bom espelho
da nossa estupefação diante de certas "obras de arte" contemporâneas.