quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Bananas e poderes podres

Campo de batalha 3, óleo sobre tela, Antonio Amaral, 1973
A força das ideias gera a história, movimenta os povos, muda sistemas. Nas artes, inúmeros artistas não ignoraram o que aconteceu em seu próprio tempo, criando obras que foram testemunhos históricos e ao mesmo tempo marcos estéticos de suas épocas. No Brasil dos tempos da ditadura militar, um artista se destacou: Antonio Henrique Amaral. Antonio Henrique Abreu Amaral nasceu em São Paulo, capital, em 1935 e faleceu em 2015. Formou-se em Direito pela Universidade de São Paulo, mas seguiu a carreira artística. Sua formação se inicia em 1952 na Escola do Masp (Museu de Arte de São Paulo). Ele foi também aluno de gravura do artista Lívio Abramo que, em 1956, ensinava essa técnica no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o MAM.
Antonio Amaral
Em 1958, Antonio Amaral viajou para Chile e Argentina, realizando diversas exposições. Nessas viagens, conheceu o poeta Pablo Neruda. No ano seguinte, além de expor em Washington, EUA, participou de oficinas com artistas norte-americanos em Nova York. Retorna ao Brasil em 1960 e passa uma temporada no Rio de Janeiro, onde entra em contato com Candido Portinari, Djanira e Oswaldo Goeldi, este também gravador. Voltou para São Paulo em 1961, onde passou a trabalhar como redator publicitário, mas sem abandonar sua atividade artística. Com o golpe militar de 1964, Antonio Henrique Amaral incorporou a seu trabalho uma temática mais incisiva, com críticas claras à falta de liberdade e à censura. Em 1967 lançou o livro de xilogravuras intitulado “O meu e o seu”, com apresentação do poeta Ferreira Gullar. Nesse album, ele sintetiza a questão do autoritarismo político dos militares no poder. Neste ano, inicia seu trabalho com a pintura. Em 1968, veio o AI5, radicalizando ainda mais a perseguição dos militares a artistas e intelectuais e a todos os opositores do regime. Começou a trabalhar numa série de pinturas intitulada “Bananas”, onde está muito clara a sua denúncia política contra a ditadura. Era uma referência também às ideias do Tropicalismo, mas também ao tema da antropofagia defendido pelos modernistas de 1922, como Oswald e Mário de Andrade.
"Sem saída",
xilogravura, 
Antonio Amaral, 1967
Em 1971 ganhou um prêmio no Salão de Arte Moderna do RJ, com uma viagem ao exterior. Foi novamente para Nova York e voltou ao Brasil em 1974. Nesses anos fora do Brasil, Antonio exibiu suas obras em exposições em diversos países. Sua série das “Bananas” mostra claramente sua crítica ao que estava acontecendo em nosso país. Um desses trabalhos apresenta uma banana cortada e envolta por um garfo, ambos amarrados por um grosso barbante. Como uma metáfora do regime militar, o artista expõe bananas apodrecidas, espetadas por garfos pesados, que parecem denunciar a tortura cruel aos presos políticos. A metáfora das bananas sempre foi usada em diversos momentos da nossa história, desde a pintura “Tropical” de Anita Malfatti (1889-1964), passando pela “A Negra” de Tarsila do Amaral (1886-1973), e até “Bananal” de Lasar Segall (1891-1957). Na década de 1930 o compositor Braguinha explicitou na letra da música “Yes nós temos bananas”, de forma gaiata, a exploração das riquezas do Brasil por parte dos estrangeiros. Na década de 1940 Carmen Miranda balançava suas curvas nos Estados Unidos, criando a imagem caricata da latino-americana com seu chapéu excêntrico carregado de bananas e outras frutas. Ou seja, Antonio Henrique voltava à mesma metáfora para mostrar que o país da banana e do carnaval sofria com a ditadura militar. Uma de suas pinturas mais explícitas é “A morte no sábado - homenagem a Vladimir Herzog”, na qual o artista denuncia o assassinato do jornalista da TV Cultura nos porões da ditadura dos generais brasileiros.

 "A morte no sábado - homenagem a Vladimir Herzog",óleo sobre tela, Antonio Amaral, 1975

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Uma artista em defesa da vida


Xilogravura de Käthe Kollwitz
Hoje, 10 de dezembro, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 70 anos de promulgação, pela ONU, em 1948. O mundo ainda estava abalado com os efeitos terríveis de duas grandes guerras mundiais. Muitos artistas - ao redor do mundo - expressaram em suas obras os efeitos destes abalos e como eles atingiram o mais básico direito de todos, o direito à vida.

Uma mulher, Käthe Kollwitz, desenhista, escultora e gravadora alemã, se destaca, pelo conjunto de sua obra, como a grande defensora dos direitos humanos mais fundamentais.

É uma experiência de contemplação profunda, observar seus desenhos, sua sensibilidade ao ser humano que sofre. Do início do século XX até à II guerra mundial, a Alemanha, onde vivia Käthe Kollwitz, era um país sombrio, que ela refletiu em seu trabalho: retratou crianças famintas, doentes, jovens mortos pela guerra, operários desempregados, pessoas na miséria… Na década de 1920, em especial, a situação econômica na Alemanha era muito ruim e o povo estava desempregado, faminto, doente... e com medo. O filme do diretor Ingman Bergman, "O Ovo da Serpente", dá um quadro bem real do que era viver em Berlim naquela época. Ao rever o filme, nos dias atuais, é possível encontrar preocupantes similaridades entre aquele período e os dias em que vivemos atualmente aqui no Brasil...

Käthe nasceu na pequena cidade de Königsberg, em 8 de julho de 1867. Antes dos 20 anos de idade, totalmente apoiada por seu pai, viajou à Berlim e Munique para estudar desenho. Tornou-se amiga dos escritores Gerhart Hauptmann e Arno Holz, com os quais ia ao museu de Munique admirar juntos as pinturas de Rubens. Logo em seguida, foi estudar em Berlim com um pintor especialista em retratos, Karl Stauffer-Bern, que lhe orientou a estudar gravura com Max Klinger.

Retornando à Köninberg, ela continua trabalhando em seu projeto iniciado em Munique, inspirado no romance “Germinal” de Émile Zola, o qual retrata a vida dos mineiros franceses. Ela vai fazer suas pesquisas de figuras humanas nos bares à beira-mar. Nesse período, aprende com o gravador Rudolf Mauer a técnica da litogravura (gravura em pedra).

Casou-se com Karl Kollwitz, que havia se formado em medicina, e foram morar em Berlim, no bairro Prenzlauer, onde ele abriu seu consultório. Estudando os  escritos teóricos de seu professor de gravura Max Klinger, Käthe se convence de que era necessário recorrer ao desenho para ser capaz de fornecer uma representação gráfica dos difíceis tempos em que ela vivia. 

Em 1892 nasce seu primeiro filho, Hans. No ano seguinte, após assistir a uma peça de teatro que descrevia a revolta dos tecelões da Silésia contra a fome em 1844, Käthe Kollwitz iniciou seu primeiro ciclo de gravuras "A Revolta dos Tecelões", trabalho que ela completou em 1897.

Em 1896 nasce seu segundo filho, Peter.

Ela expõe pela primeira vez em 1898, na Grande Exposição de Arte de Berlim, onde apresenta as gravuras com o tema da revolta dos tecelões. Foi muito elogiada e reconhecida como artista. O júri dessa exposição queria lhe conferir uma medalha, mas o imperador da época, Guilherme II, se opôs à ideia, pois o tema não lhe agradava, assim como não era usual prestar homenagens a uma mulher...   

Entre 1898-1903, Käthe deu aulas de desenho e litografia na Escola de Artistas de Berlim. Em 1899 participa da primeira exposição do grupo que ficou conhecido como "Secessão de Berlim", do qual foi membro de 1901 a 1913. Na exposição sobre arte alemã na cidade de Dresden, finalmente ela pode receber uma Medalha de Ouro por seu conjunto de gravuras sobre os tecelões.

Mais uma vez se inspirando em um livro (de Wilhelm Zimmermann, "História Geral da Grande Guerra dos Camponeses"), ela começa a preparar suas gravuras com o tema "Guerra Camponesa".

Durante uma viagem de dois meses a Paris, Käthe fez aulas na Academia Juliana para se familiarizar com os conhecimentos básicos de escultura, forma de arte pela qual seu interesse era crescente. Participou, então, de oficinas de escultura no ateliê de Auguste Rodin.

Em 1906, Käthe desenhou o cartaz para a exposição "Trabalho doméstico na Alemanha" em Berlim, e mais uma vez desagradou aos poderosos de seu país: a Imperatriz se recusou a ir visitar a exposição enquanto o cartaz de Käthe não fosse recolhido da rua.

Em 1907, participando de uma exposição dirigida por Max Klinger na Itália, ela pode conhecer Florença, onde ficou por vários meses, e Roma, onde passou três semanas.

Entre 1908 e 1910, a artista colaborou com o jornal satírico “Simplicissimus” com 14 desenhos onde ela expunha os problemas atuais do proletariado. Sua arte gradualmente passa a mostrar como ela se comprometia, social e politicamente, com os rumos de seu país.

A partir de 1909 ela passa também a se dedicar ao trabalho com escultura. Em 1912, é escolhida como a chefe do grupo de artistas "Secessão de Berlim".

Seu cartaz, desenhado para o Sindicato das Comunas da Grande Berlim, que denunciava a grande escassez de moradias na cidade, foi censurado e proibido de ser exibido.

Em 1913, por disputas internas, a "Secessão de Berlim" se divide, e Käthe adere ao grupo "Secessão Livre", que presidirá de 1914 a 1916. Ela será co-fundadora e primeira presidente da Associação de Arte da Mulher, até 1923.

O ano de 1914 foi terrível para ela. Seu segundo filho, Peter, que havia se voluntariado na frente de guerra na Bélgica, morre em combate. Tinha 18 anos.

Imediatamente sua mãe resolve entrar no movimento pacifista, contra a Guerra. Ela começa a pensar em como transformar essa dor da perda do filho em um monumento, que somente ficará pronto em 1932 e se denomina "Mãe em luto".

Em uma carta datada de 30 de outubro de 1918, publicada em um jornal de Berlim, ela se opõe ao movimento “Apelo em favor da guerra”, que estava sendo organizado na cidade. Ela termina a carta citando uma frase do livro de Goethe “Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister”: “as sementes não podem ser moídas”. E passa a trabalhar em uma série de xilogravuras intitulada “Guerra”. 

Em 1919, Käthe Kollwitz torna-se a primeira mulher a ser aceita como membro da Academia de Belas Artes da Prússia, para onde foi nomeada professora, função que não chegou a exercer porque mulheres não podiam ocupar cargos públicos...

Sua dor pessoal - a morte do filho -, refletia-se cada vez mais em seu trabalho, tornando-o ainda mais dramático, onde ela expunha suas próprias feridas e as de todos os que sofrem com a guerra.

Neste sentido, faço um destaque sobre o conjunto da obra de Käthe Kollwitz: ela dá um grande papel - tanto em suas gravuras, quanto em seus desenhos e esculturas - à imagem da mulher, especialmente a da mãe. A mãe como detentora potencial da vida, aquela que supre e nutre, a que cura e protege. Em várias de suas gravuras há uma mãe, ou grupos de mães unidas protegendo os corpos de seus filhos com seus próprios corpos. Com toda sua energia. Parece querer mostrar, através da imagem simbólica da mãe, que a sociedade deveria ser a mãe que dá a vida, e não a morte; que agrega, e não divide; que envolve, ao invés de desprezar; que protege, ao invés de abandonar. 

Também como uma mulher que vive em uma época tão dura, Käthe Kollwitz fez vários autorretratos, como se tentasse acompanhar nos traços do seu rosto que ia envelhecendo, toda a sua própria experiência, seu sofrimento, seu choque diante de um mundo onde os direitos eram tão vilipendiados que deixavam marcas em sua própria face.

Em 2010, visitei o Museu Käthe Kollwitz, em Berlim, na mesma casa onde ela viveu com sua família. Sua obra já me impressionava desde meus 20 anos. Pude ver de perto como ela escancara as zonas sombrias da vida, com uma força intensa nos traços, uma força pulsante e latente de uma artista e mulher que não se rende, não se acomoda. Artista inquieta, forte, determinada, consciente de seu papel no mundo. Tudo isso representado em sua arte.

Mas um trabalho seu me impressionou ainda mais: o monumento que foi inaugurado em 1932, intitulado “Mãe em luto”, localizado num prédio quadrado, com  fachada em estilo clássico, localizado na avenida principal da cidade, a Unter den Linden. Um imenso monumento fechado, como uma caixa, escuro. No centro, a escultura mostrando uma mãe com o corpo do filho morto. No alto, acima dela, a única entrada de luz é através de uma claraboia que se derrama furtivamente sobre a escultura. Em volta do imenso salão, ladeando as paredes, um balcão de concreto onde os visitantes podem se sentar e observar. Eu fiquei sozinha por um bom tempo, contemplando esse conjunto inquietante, o lugar em penumbra, a escultura solitária de uma verdadeira “mater dolorosa”, uma espécie de releitura da “Pietá” de Michelangelo. A Mãe é maior que o Filho, um homem adulto: que precisava ser maior, para poder representar a vida que ela gostaria de dar de volta a seu filho, localizado entre suas pernas abertas, como se ela o empurrasse de volta para seu ventre, para fazê-lo renascer. Mas ele está morto, e a mãe também o vela, o abraça, o aconchega. Parece cantar para ele alguma canção longínqua de ninar... Esta escultura é a dor de todas as mães do mundo, as mães que perderam seus filhos. É o retrato também da mãe negra, brasileira, carregando seu filho morto pela violência policial, cena que se repete a cada 23 minutos em nosso país!

Käthe Kollwitz produziu muito em toda sua vida, sempre com foco nos oprimidos, nos famintos, nos injustiçados. Lutou pela paz, desenhando cartazes e fazendo ilustrações. Sofreu censura do governo nazista também, como havia sofrido dos imperadores. Se impôs como artista e foi ativa na luta por mais direitos para as mulheres. 

Chegada a II Guerra, Käthe se refugiou, já viúva, no povoado de Moritzburg, próximo a Dresden. Morre a mulher, no dia 22 de abril de 1945, com 77 anos de idade, mas a obra dessa artista gigante permanecerá viva por muito tempo, pois sua obra defende aquele direito fundamental do ser humano, a Vida.

Xilogravura de Käthe Kollwitz
Litogravura de Käthe Kollwitz

Técnica: água-tinta e ponta-seca de Käthe Kollwitz

Técnica: Água-tinta de Käthe Kollwitz

Litogravura de Käthe Kollwitz

Xilogravura de Käthe Kollwitz

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

É preciso festejar toda a Noite

"Primavera", Sandro Botticelli, 1478
Faltam poucos dias para o final deste ano difícil para o Brasil. Foi eleito um novo governo que ameaça todas as nossas vidas, de alguma forma. Um novo tempo sombrio parece se anunciar, como se atravessássemos uma bruma densa que nos leva à escuridão de uma longa noite.

Ameaças à liberdade, à democracia, aos direitos adquiridos, aos costumes. Métodos conservadores, moralistas e castradores parecem se erguer. Mas o Brasil - e o povo brasileiro - já se mostrou grande e atravessará essa escuridão, resistente. 

Nestes dias me caiu em mãos este poema, cujos primeiros versos publico abaixo. O poeta - Florus - escreveu essas linhas por volta do século II, em Roma. Era cristã. O mundo era outro. Outro mesmo! Ele usa a imagem da Primavera, como a deusa Vênus que, acompanhada de Cupido e das Ninfas, traz alegria - e prazer - para a terra. O poema é uma Ode ao Amor e ao Erotismo. Não há palavras meias para descrever a beleza dos acasalamentos na natureza, há Poesia!

Trouxe-o aqui porque o poema também é um hino à Esperança!

Precisamos cantar bem alto a Esperança de que esta Noite irá passar e o Sol logo estará lançando seus primeiros raios de luz e cor sobre as nossas vidas, porque o atraso civilizatório não tem mais vez. O mundo gira e nos leva para à frente, na História.

O Sol há de brilhar mais uma vez, como diz o samba.

Acima, uma pintura de Sandro Botticelli, pintor italiano do século XV. É a mais pura ilustração do lindo poema de Florus.

A tradução foi feita por mim a partir de uma tradução em francês dos versos originais em Latim.

Boa leitura!

------------------------------

A Vigília de Vênus
Florus, poeta romano do século II


Ame amanhã aquele que jamais amou;
e quem amou, ame ainda mais amanhã.

A primavera se abre, a primavera canta. Na primavera nasceu o mundo.
Na primavera conciliam-se os amores; na primavera os pássaros se acasalam 
e a floresta deposita sua cabeleira sob chuvas fecundantes.
Amanhã, sob a sombra das árvores, aquela que cria laços de amor
tecerá cabanas verdejantes com ramos de murta.
Amanhã, sentada em sublime trono, Dione proclamará suas leis.

Ame amanhã aquele que jamais amou;
e quem amou, ame ainda mais amanhã.

Um dia, como esse, com o céu tingindo tudo de vermelho, a massa
espumante do alto mar,
em meio a rebanhos azuis e cavalos marinhos,
surge Dione, como uma onda entre as ondas do mar.

Ame amanhã aquele que jamais amou;
e quem amou, ame ainda mais amanhã.

É Vênus que colore os anos com as gemas púrpuras das flores
quando os botões de rosas se abrem sob o sopro de Zéfiro,
ela que aquece os cálices para que se abram as flores. Da rosa luminosa
que sai da brisa noturna, ela espalha suas gotas úmidas
que, levadas por seu peso, brilham como lágrimas trêmulas.
Prestes a cair, aqui as redondas gotas se juntam para frear a queda.
Violetas, aqui estão as flores em seu pudor revelado:
o rosado que na plenitude das noites estreladas
abriu na aurora úmida seu manto de rosas virginais em botão.
A deusa ofereceu à aurora suas rosas virginais.
Nascida do sangue de Chipre e dos beijos de Amor
e de botões e de labaredas e do brilho violáceo do sol,
amanhã, esse véu flamígero que a cobre e a ruboriza
cairá, e sem pudor a rosa se abrirá.

Ame amanhã aquele que jamais amou;
e quem amou, ame ainda mais amanhã.

Ela, a Divina, enviou as ninfeias ao bosque de murtas.
O jovem se juntou às moças. Mas quem irá então acreditar
que Cupido dará trégua, se ele carrega suas flechas?
“Vamos, Ninfas, o Amor depôs suas armas, ele dará uma trégua.
É uma ordem, ele deverá vir desarmado! Ele recebeu ordem de chegar nu!
Para que não fira ninguém com seu arco e flecha e sua tocha.
Mas mesmo assim, Ninfas, tomai cuidado porque Cupido é belo!
E mesmo sem armas, ele é perigoso!"

Ame amanhã aquele que jamais amou;
e quem amou, ame ainda mais amanhã.

Vênus te envia essas inocentes moças.
Não te pedimos mais que isto: vai, virgem Delia,
sem ensanguentar os bosques com tuas caçadas selvagens,
deixa as sombras verdejantes se estender sobre as flores que te vestem.
Vênus, ela mesma, gostaria de te pedir para… mas pode ela ferir teu pudor?
Ela, ela gostaria muito que tu viesses, se isso for do teu agrado, Virgem.
Tu ouvirás os Coros durante três noites de festa,
entre as multidões, atravessando os bosques
sob coroas de flores, entre as cabanas de murtas.
Nem Céres, nem Baco, nem o deus dos Poetas faltarão.
É preciso festejar e velar com cantos toda a noite.
Que Dione reine sobre as florestas! E tu, Délia, venha!

Ame amanhã aquele que jamais amou;
e quem amou, ame ainda mais amanhã.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Mês da Consciência Negra no Sesc

O ator Preto Amparo encenando o espetáculo "Violento"
O dia 20 de novembro foi feriado na cidade de São Paulo: dia da Consciência Negra. Para comemorar esta data, os espaços do Sesc dedicam todo o mês de novembro a espetáculos musicais, artes cênicas, rodas de capoeira, brincadeiras e danças de origem africanas, com o objetivo de mostrar um pouco da imensa influência da cultura negra em nosso país, tantas vezes minimizada pelo preconceito da Casa Grande.

Dentro da programação consta o curso “Identidades Negras e Narrativas Corporais”, que é dirigido pelo ator e bailarino Edson Raphael. É uma Oficina de Dança Contemporânea, que tem como objetivo estimular a investigação das narrativas corporais com base em vivências pessoais e coletivas de autorreconhecimento negro. São quatro encontros acompanhados de danças afro-brasileiras tradicionais e contemporâneas.

Nas artes cênicas, se destaca o espetáculo “Violento”, de Minas Gerais, que apresenta um jovem frente aos desafios de ser negro na sociedade atual. Esta performance, dirigida por Alexandre de Sena e encenada pelo ator Preto Amparo, ficará em cartaz até 18 de dezembro. Nela, se narra a trajetória de um jovem negro, que é abordado por policiais e vê seus iguais sendo encarcerados em massa e assassinados em massa. Outros espetáculos serão “Gbé ou Quando o Corpo Renasce” e “Leite derramado”, que chama a memória das mães pretas forçadas a abandonar seus filhos para cuidar dos filhos brancos das patroas das famílias dos senhores de engenho.

As Rodas de Capoeira também farão parte da programação do Sesc, convidando o público a praticar essa modalidade, conduzida de forma lúdica e prazerosa. Também terão dias dedicados às histórias de origem africana, como “Os Gêmeos que fizeram a morte dançar”, uma narrativa inspirada na obra do escritor Reginaldo Prandi, especialista em tradição yorubá; “Passando de raspão”, uma história em que um velho mestre de capoeira ajuda uma menina de 11 anos a enfrentar as tempestades da vida com sabedoria e malemolência, falando sobre o instrumento musical reco-reco. “O Agogô de Ogum” é outra narrativa que traz o instrumento musical Agogô, o qual conta os mitos do Orixá Ogum, ensinando a importância do ritmo e da sabedoria do tempo.

Na programação consta também momentos de convivência, com jogos e brincadeiras originárias da cultura africana, assim como danças folclóricas, como o Maculelê. No cinema, também há uma seleção de filmes de cineastas negros ou sobre temática negra, para todas as idades. Entre eles “Yemoja, a Criação das ondas”, de Célia Harumi Seki (animação), “Fábula da vó Ita”, de Thallita Oshiro Meireles e Joyce Prado e “Dara - a primeira vez que fui ao céu”, direção de Renato Candido.

Outras informações podem ser obtidas no Portal Sesc.

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Nenhum passo a menos na Cultura!


Nestes primeiros dias pós eleição presidencial em que as notícias nos apontam para dias muito nebulosos para o Brasil sob o governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro, ainda não há definição sobre que rumos esse governo dará à área da Cultura em nosso país. Bolsonaro pouco falou no assunto em sua campanha. Mas seus arautos mais barulhentos vêm apontando dedos para a lei de incentivo à cultura, a Lei nº 8.313/91.

Mais conhecida como Lei Rouanet, ela instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura, o Pronac (o nome "Rouanet" é uma homenagem a seu criador, o diplomata Sérgio Rouanet). Esta lei dá as regras através das quais o governo federal disponibiliza recursos para projetos da área cultural e artística. Na verdade, a Lei Rouanet funciona como uma espécie de mecenato…

Mas mesmo esta escassa forma de incentivar artistas e produtores culturais - alvo de ataques da extrema-direita -  vem cumprindo um papel muito importante para nossa vida cultural e artística. Inúmeros projetos e entidades, como museus brasileiros (veja o Masp) recebem - através da Lei Rouanet - recursos, a título de doações ou patrocínios de pessoas físicas ou jurídicas que fazem esta opção, pegando uma parte do dinheiro que iria para o Imposto de Renda para apoiar projetos na área cultural. Ou seja: optam por aplicar parte de seu dinheiro dos impostos incentivando projetos culturais. Simples assim. 

Com isso artistas, produtores e agentes culturais podem se beneficiar, candidatando seus projetos, que incluem setores como o das artes cênicas; livros de valor artístico, literário ou humanístico; música erudita e instrumental; exposições de artes visuais; doações de acervos a bibliotecas públicas, museus, arquivos públicos e cinematecas, bem como treinamento de pessoal e aquisição de equipamentos de manutenção dos acervos; produção de obras cinematográficas e videofonográficas de curta e média metragem e preservação e difusão do acervo audiovisual; preservação do patrimônio cultural material e imaterial; construção e manutenção de salas de cinema e teatro, que também podem abrigar centros culturais em municípios com menos de 100 mil habitantes.

Pelo que se pode ver, o alcance das benfeitorias que leis como a Rouanet podem atingir, num país como o nosso, é imenso. 

No Brasil, o incentivo à Cultura e às Artes por parte do poder público é historicamente muito restrito, sendo um dos graves problemas estruturais que temos a resolver em nossa sociedade, junto com o problema do acesso à Educação de qualidade. A Lei Rouanet, mesmo com todas as falhas, é um importantíssimo aporte de recursos para que não se apague de uma vez a nossa produção artística. O fim dessa lei também seria o desemprego em massa de milhares de pessoas, que hoje fazem parte da estrutura da economia cultural.

Os riscos da eleição deste grupo liderado por Jair Bolsonaro são muitos. Incluindo o de passar a tratar arte e cultura como temas de ínfima importância e reduzir ainda mais os parcos recursos e incentivos para o setor. Corremos - nestes dias caóticos - até mesmo o perigo de intervenção ideológica de cunho conservador sobre a produção artística brasileira. 

Leis, como a Rouanet, no lugar de extinção deveriam ser aperfeiçoadas para, por exemplo, ter uma distribuição mais equitativa em todo o território nacional. Deveria-se fortalecer o Fundo Nacional de Cultura, assim como o Fundo de Investimento Cultural e Artístico (Ficart). Deveria-se democratizar mais os recursos para mais projetos. Deveria-se criar mais organismos de fomento, como o Procultura. Deveria-se incentivar ainda mais a cultura brasileira e seus artistas… Mas isso seria em um outro Brasil...

É bom lembrar, faz bem para o coração: no período em que Gilberto Gil se tornou Ministro da Cultura (2003-2008) e criou o Plano Nacional de Cultura (que incluía o excelente programa “Pontos de Cultura”), uma luz - ou muitas - se acenderam em nossa constelação. Havia um projeto de política cultural para o Brasil: o programa Mais Cultura (lançado em 2007) reconhecia a cultura como necessidade básica e como direito de todos os brasileiros. Reconhecia-a como “vetor importante para o desenvolvimento do país”, dando-lhe status de política estratégica para redução das desigualdades sociais.

Mas críticos do tipo do ator-pornô Alexandre Frota e de Eduardo Bolsonaro (eleitos deputados federais por São Paulo) que acusam artistas de “mamar” nas verbas do governo, não têm alcance intelectual para conseguir compreender isso.

No mínimo deveriam - mas não o fazem, por má vontade mesmo - estudar o caso um pouco mais a fundo e veriam que 70% dos projetos realizados com apoio da Lei Rouanet são projetos de pequeno porte, de até 500 mil reais (informação dada à imprensa por Henilton Menezes, ex-secretário de Fomento e Incentivo à Cultura do MinC). Mas preferem induzir a erro seus eleitores, apontando para artistas do porte de Chico Buarque, que nunca fez uso dessa lei, lançando sobre ele (e sobre eles e sobre elas, diversos outros artistas brasileiros) suas arengas pró-fascistas.

O receio agora - com a eleição de Jair Bolsonaro - é que esses parcos programas de incentivo à cultura simplesmente desapareçam. Há o perigo, inclusive, de que o novo presidente extinga o Ministério da Cultura, juntando-o à outra pasta, como uma que reuniria Cultura e Esporte. Mas o perigo não pára por aí, mudando estruturas ou leis. Seremos censurados novamente, como no período da ditadura militar? A mão pesada da ideologia de Bolsonaro pesará sobre a criação brasileira? Até que ponto ele pretende ir? Retomaremos a luta contra a censura, pedindo novamente liberdade de expressão, num país que parece rodar em volta do próprio rabo? Há pouco tempo, movimentos como o MBL e personagens da extrema-direita atacaram exposições como a “Queermuseum”, em Porto Alegre, abrindo um nefasto precedente...

Artistas e produtores culturais brasileiros, precisamos mais do que nunca estar atentos aos próximos passos desse novo governo e nos preparar para resistir e reagir, caso necessário. Em defesa da arte e das manifestações culturais que expandem o conhecimento humano, aprofundam nossa identidade, incentivam a solidariedade e a partilha, recuperam nossa dimensão humana, valorizam nossa história, falam mais sobre nós mesmos, nos tornam pessoas melhores em uma sociedade melhor.

Já tivemos Gilberto Gil como Ministro da Cultura. Naqueles tempos bons, ele assim resumiu um sonho em um discurso na Universidade de Columbia, em Nova York: 

“Não falo de dar o peixe, nem de ensinar a pescar. Falo de potencializar a pesca que se faz há muito tempo, em especial nas áreas de risco social, nos territórios da invisibilidade, nos grotões e nos guetos das grandes cidades brasileiras, onde pulsa uma cultura e uma arte tão fortes, mas tão fortes, que não há miséria, não há indigência, não há descaso ou violência que as façam calar”.

Nem Bolsonaro!