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sexta-feira, 29 de julho de 2016

A percepção da "coisa"

"Vênus ao espelho", Velázquez
“Esta coisa é a mais difícil de uma pessoa entender. Insista. Não desanime. Parecerá óbvio. Mas é extremamente difícil de se saber dela. Pois envolve o tempo. Nós dividimos o tempo, quando na realidade não é divisível. Ele é sempre e imutável. Mas nós precisamos dividi-lo. E para isso criou-se uma coisa monstruosa: o relógio.

(...) O relógio de que falo é eletrônico e tem despertador. A marca é Sveglia, o que quer dizer “acorda”. Acorda para o quê, meu Deus? Para o tempo, para a hora. Para o instante. Esse relógio não é meu. Mas apossei-me de sua infernal alma tranquila.

(...) Estou escrevendo sobre ele mas ainda não o vi. Vai ser o Encontro. Sveglia: acorda, mulher, acorda para ver o que tem que ser visto. É importante estar acordada para ver."

Clarice Lispector, em “O Relatório da Coisa”

Começo este texto sobre a percepção humana citando Clarice Lispector, a grande escritora brasileira que tem a capacidade de nos fazer enxergar - muitas vezes com certa angústia - o que há para ser visto do mundo...

Sim, porque não enxergamos direito.

"Autorretrato", Chardin, 1771
A visão humana ainda não se desenvolveu de forma plena ao longo de nossa evolução, segundo afirmou Harold Speed em 1924, no livro “Oil paintings techniques and materials”. Na arte - diz ele - muito mais é transportado à mente pelo olho do que imagens e sensações de cor. Mas pouca gente consegue ter consciência disso. Em geral, as pessoas veem menos do que há para ser visto. Diz ele que percebemos o mundo mais pelo toque do que pela visão e usamos o olhar apenas para conferir rapidamente a forma das coisas, muito mais do que as cores. Ao invés de enxergarmos as massas de cor, notamos mais a aparência sólida das coisas. A cor local de algum objeto qualquer sempre vai ser a forma como as pessoas descrevem os objetos, dizendo, por exemplo: “este vestido é verde”, ”esta mesa é vermelha”, “o céu é azul”, “as nuvens são brancas”... Só que a cor local varia enormemente ao longo do dia; mas ninguém descreve as diversas tonalidades de azul, amarelo, vermelho, ou seja, os valores de iluminação.

Muito lentamente temos desenvolvido a faculdade da visão, ao longo da evolução humana, enfatiza Harold Speed. “Abrimos os olhos gradualmente”.

Primeiro, desenhamos linhas que preenchemos com cor local. Muito tempo depois na história começamos a fazer os sombreamentos para indicar a forma e o volume das coisas de forma simples. Isso só aconteceu com o aparecimento do pintor italiano Botticelli, que viveu entre 1445 e 1510! Conseguir indicar a Luz e a Sombra dos objetos e figuras foi a grande descoberta técnica do século XV! Em seguida, incluímos as leis da perspectiva com os estudos de Masaccio e Leonardo da Vinci, que criou a técnica do sfumato, ou seja, a transição de valor entre a sombra e a luz em degradée, para dar mais volume às figuras.

Depois, ao longo dos últimos séculos, evoluímos para uma técnica que leva mais em conta o movimento das massas de cor e sua relação com a luz, do que os delineamentos alisados da arte acadêmica, da qual um dos maiores mestres foi o francês Jean Auguste Dominique Ingres. Ticiano introduziu esta forma de pintar, assim como Velázquez na Espanha, com pinceladas que se tornam livres das formas das coisas. Os pintores impressionistas do final do século XIX romperam com a forma delineada “onde erigimos nosso edifício técnico“ (Speed) e passaram a ver o mundo como padrões de cor. Na evolução da visão dos artistas seus olhos não enxergam mais objetos separados no espaço, como entes individuais e sem relação alguma com o seu entorno.

Mas… QUEM enxerga isso?

Muitos poucos!

Detalhe de pintura de Botticelli
A imensa maioria das pessoas ainda se liga na forma dos objetos e não importa se uma pintura segue a receita do delineamento acadêmico ou se ela tem seu foco nas massas de cor e valor. As observações vão ser sempre na mesma linha: céu azul, nuvem branca, mesa quadrada, mar verde, sol amarelo...

É preciso aprender a VER o mundo, pois a maioria não o vê:

“O espírito rítmico que pulsa através do universo e sustenta toda a vida mexe no fundo  do nosso ser e nos impele a buscar relação com a realidade invisível que espreita por trás do véu das aparências”, diz ainda Harold Speed. É este o estímulo básico do pintor. É, como diz James Abbot McNeill Whistler, artista norte-americano do século XIX:

“A Natureza é o teclado no qual o pintor interpreta”.

O que Clarice Lispector nos propõe, assim como Leon Tolstoi, o escritor russo, é o exercício da experiência do despertar. Despertar das banalidades do nosso cotidiano que está absolutamente impregnado de sentidos que não mais percebemos. Resgatar o olhar que se espanta com as coisas, recusando - mesmo que seja apenas como um exercício episódico - recusando as certezas. As banalidades, as trivialidades do dia a dia não podem obscurecer nossa percepção. É preciso pressentir o mistério aonde o óbvio parece dominar. É preciso desfazer os sentidos pré-determinados, tornados automáticos, e dirigir-se a horizontes inesperados; recusar os nomes impingidos às coisas pois as coisas não se resumem a seus nomes! 

“Acorda, mulher, acorda para ver o que tem que ser visto”, clama Sveglia a Clarice.

Pintura de Nicolai Fechin
Ir além do sentido já dado. Prestar atenção. Atenção. Parar e ver. Ver. Enquanto vemos somos vistos, pois a percepção é uma via de mão dupla, como nos mostram as observações científicas do mundo subatômico, onde as cadeias de relações entre tudo torna impossível um experimento que não sofra interferência do observador: “a realidade invisível que espreita por trás do véu das aparências” (Harold Speed).

Exatamente no ano de 1917 o escritor russo Victor Borissovitch Chklovski (1893-1984) publicou um texto intitulado “A Arte como procedimento” onde ele começa citando a frase “a arte é pensamento por imagens”. Neste texto, desenvolve a ideia que o tradutor brasileiro chamou de “Singularidade” e numa tradução francesa se dá o nome de “Estranhamento”. Esse conceito de Chklovski inspirou a estética teatral de Bertolt Brecht, por exemplo. Chklovski era amigo do poeta Maiakovsky e do escritor Maximo Gorki.

Segundo sua teoria, “o procedimento da arte consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção” o que tem o efeito de causar um sentimento de estranhamento, como a visão de um estrangeiro. As imagens, segundo ele, agrupam objetos e suas funções heterogêneas e explicam o desconhecido pelo conhecido. Para ele, há que se fazer um resgate da Singularidade das coisas.

Mostra Chklovski que ao longo dos séculos as imagens pouco se alteram. Uma montanha ainda está lá (pelo menos as grandes), cadeiras e mesas servem do mesmo jeito, assim como camas, mares, pores de sol, planetas, céu, fogo… o ser humano… Todo o trabalho do artista é acumulação e revelação de novos modos de mostrar as mesmas coisas. Mas a cada vez que olhar, ver como se fosse novo!

“Se examinarmos as leis gerais da percepção - diz Chklovski - vemos que uma vez tornadas habituais, as ações tornam-se também automáticas. Assim todos os nossos hábitos fogem para um meio inconsciente e automático; os que podem recordar a sensação que tiveram quando seguraram pela primeira vez uma caneta na mão ou quando falaram pela primeira vez uma língua estrangeira e que podem comparar esta sensação com a que sentem fazendo a mesma coisa pela milésima vez, concordarão conosco”.

"Cristo e a tempestade", Rembrandt
Pois a Arte libera os objetos do nosso automatismo perceptivo:

- “Para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra, existe o que se chama Arte”.

- “O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como VISÃO e não como reconhecimento” (grifo meu)

- “O ato de percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto; o que já é “passado” não importa para a arte”.

Chklovski diz que o escritor Leon Tolstoi é um exemplo de artista que vê e mostra os objetos fora de seu contexto e de seu automatismo. Ele viola o ritmo automático, leva à não previsibilidade. Ele jamais se contenta em usar uma palavra que mantenha o leitor em sua posição mais cômoda. Não, ele arranca o leitor do movimento automático dos olhos sobre o livro. Se o leitor está distraído, não acompanha o texto de Tolstoi.

Um leitor distraído e acomodado não lerá com tranquilidade Clarice Lispector. Ela leva às entranhas... Um leitor ansioso jamais lerá "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa. Há que se penetrar no mundo profundo do linguajar do sertão.

Um dos papeis do artista é, então, arrancar os cômodos de seu comodismo, obrigar as pessoas a tropeçar nas quebras de ritmo. Vivemos em um mundo que nos leva aos condicionamentos, ao automatismo cotidiano onde criamos nossa rotina robótica: acordamos, tomamos banho, café, pegamos o transporte, vamos ao trabalho (muitas vezes automático por si), almoçamos, conversamos trivialidades, vagamos pelas ruas com smartphones nas mãos e na atenção principal, retornamos a casa, vemos (ou não) tv, nos relacionamos com a família, dormimos… Fazemos enriquecer uma minoria, porque este automatismo todo interessa, e muito, ao sistema capitalista vigente...

O artista, então, é o que cria obstáculos, é o que surpreende, o que arranca do automatismo, mesmo que seja mostrando que “uma pedra é uma pedra”. E mostra que as as coisas estão diante de nós. Basta ver!

Paisagem com pedras de Gustavo Courbet
"Pescador no mar", William Turner
Natureza-morta de David Leffel
Pintura de Anders Zorn
"O Saltimbanco", de Antonio Mancini
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"Outra Margarida", Joaquin Sorolla
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"Lavabo", Antonio Lopez
"Sinfonia em branco", James McNill Whistler

quinta-feira, 30 de junho de 2016

Como se faz um artista?

"A criação de Adão", Michelangelo, 280 x 570 cm, 1508-12, teto da Capela Sixtina, Roma, Itália
Nossa civilização ocidental foi enriquecida com obras de arte maravilhosas, que nos inspiram e elevam. Ticiano, Caravaggio, Velázquez, Sorolla, Vermeer, Rembrandt, Anders Zorn, Ilya Repin, Sargent e tantos outros mestres, nos brindam com os  mais altos padrões de excelência alcançado em sua arte. Podemos dizer que alcançaram, através de seu esforço pessoal, a mais alta qualidade possível! Os pintores que se seguiam estudavam os anteriores, e a qualidade se mantinha, muitas vezes ultrapassando a geração anterior.

Estudo sobre desenho de Silverman, Mazé Leite
Mas o que faz de um mestre um mestre? Pode ter certeza que a receita principal são horas diárias de estudo, de pesquisa, de treino, de exercício. É estudar os grandes pintores e suas grandes pinturas. É conhecer o tempo em que se vive. É fazer da sua arte o seu ofício, é se tornar artesão, pensador, interpretador da realidade, criador. Para isso, não há atalho algum que nos permita dar um salto direto para alta qualidade a não ser dispensando muito tempo de nossas vidas a conhecer o mais profundamente possível os instrumentos de que precisamos para nos expressar.

Por isso, eu, meu ateliê e muitos outros artistas contemporâneos, insistimos em seguir este caminho. Em nosso caso significa desenhar, pintar, desenhar… e pintar. Estudar os instrumentos, saber das potencialidades de cada material, estudar a cor, a luz, os valores, as massas, as tintas, a combinação de temperaturas de cor, os pincéis, os mediuns, os carvões, os grafites, os papeis, as telas.

Na música, esta é uma prática absolutamente indispensável. Não se pode dominar um instrumento sem diariamente abraçá-lo algumas horas, estudando-o. Isto é questão incontestável entre os músicos. E por que não entre os artistas plásticos? Porque desde que se inventou que a expressão pessoal é “natural” e que não requer domínio técnico nenhum, rebaixou-se o valor do treinamento! Numa sociedade altamente individualizada como a nossa, é quase uma apostasia se dizer que não existe expressão pessoal sem domínio técnico. Quando é exatamente o contrário: o grau da minha expressão pessoal está diretamente vinculado ao conhecimento técnico que me permitiu adquirir repertórios de criação.

Estudo para pintura "O clown", Mazé Leite
O conhecimento técnico vem do exercício e da familiaridade que se vai adquirindo aos poucos com os instrumentos de trabalho. Para isso, se requer esforço, físico e mental.

Físico, porque há o gasto de energia do corpo. Esforço mental porque a mente tem que estar absolutamente focada. Conta-se que o violinista Nathan Milstein perguntou uma vez ao seu professor Leopold Auer quantas horas por dia ele deveria praticar. Auer respondeu dizendo: “Pratique com seus dedos e você precisará do dia inteiro. Pratique com sua mente e terá feito o mesmo tanto em uma hora e meia”.

A atitude de quem caminha os caminhos da arte é de se submeter a uma prática deliberada de estudo, o que significa estar focado no momento em que se estuda, em que se exercita. Focado nos conceitos, nos materiais, no ato de desenhar/pintar. Em nosso caso, no conceito das massas, do movimento da luz, no ritmo, na composição… A prática deliberada do desenho é uma atividade sistemática e altamente estruturada. Ao invés da tentativa e erro desatenta, é um processo ativo e profundo de experimentação com foco nos conceitos. Ela é um processo lento, que envolve esforço, que é cansativa, pois exige de nós uma quantidade grande de energia para manter a atenção completa na tarefa.

Estudo, Mazé Leite
Mas os ganhos são imensos! Na minha experiência pessoal, que venho mantendo há 8 anos o foco numa linha de pensamento pictórica, meus avanços neste tempo são impressionantes, mesmo que eu saiba o quanto ainda tenho a me aperfeiçoar! Muitas vezes acontece de terminar um desenho e ver que ele não está saindo do jeito que quero, mas isso só significa que preciso praticar mais. Sempre desenhei, desde criança, com alguns longos intervalos em que tive que parar. Mas meus avanços verdadeiros vieram desde que iniciei meus estudos com um professor (Maurício Takiguthi) que ensina a desenhar dentro de um conceito e não de forma aleatória. É desenho, mas desenho que não segue a forma, não se prende no detalhe, mas no movimento das linhas e massas. Desta forma eu também ensino a meus alunos no Ateliê Contraponto.

Há um mito que se espalhou pela sociedade: somente são possíveis de aprender a desenhar aquelas pessoas que nasceram com o “dom”, como algo vindo de Deus, o doador de dons… Mas desfazendo esse mito, na prática acontece que qualquer pessoa com um mínimo de inteligência é capaz de aprender a desenhar! Qualquer pessoa, repito. Se a pessoa consegue aprender a escrever, também consegue aprender a desenhar. Simples assim…

Os dois lados do cérebro

Há décadas, neurologistas pesquisam as diferenças entre os dois hemisférios do nosso cérebro, o esquerdo e o direito. Vou forçar aqui uma simplificação sobre a imensa complexidade do nosso cérebro (até porque precisaria de muito espaço aqui para aprofundar este assunto, o que não é o caso), mas a ideia básica é que a pesquisa neurológica diz que os hemisférios esquerdo e direito funcionam de forma independente um do outro: o lado esquerdo do cérebro é associado à lógica, à racionalidade, ao pensamento linear, à análise, à crítica, às regras, aos detalhes, ao planejamento e ao julgamento. Por seu turno, o lado direito do cérebro está associado à intuição, a sons, a imagens, a padrões de entrada cinestésica ou sensorial, às emoções, à "grande figura" (o todo), à associação livre e à criatividade.

Com base nesta informação, o modo de “pensar” (hemisfério esquerdo) parece mais propício para desenhar e pintar?

Criolo, Mazé Leite
Experimente desenhar inundado pela racionalidade do seu lado esquerdo do cérebro com toda sua capacidade analítica... Você pode até conseguir seu desenho, mas ele irá mostrar de que ponto de vista você partiu. Se você está desenhando um olho, sua mente crítica vai dizendo o tempo inteiro em que direção tem que ir pra ser um olho. Agora tente desenhar a partir do lado direito de seu cérebro: não importa se é um olho, uma casa, um animal, uma pedra: você verá as relações espaciais, os movimentos e direção de linhas e massas, os efeitos da luz. O resultado final será um olho, uma casa, uma pedra. Mas não importa muito o ponto de chegada, o processo é que é altamente importante! E, como resultado, compare os dois desenhos e responda: qual deles parece mais elegante, mais vivo, mais solto, com mais movimento?

O lado direito do cérebro nos faz funcionar em “fluxo”, percebendo o todo, mergulhando nas infinitas questões que vão surgindo ao longo do aperfeiçoamento como um campo de conhecimento novo que vai se abrindo na medida em que avançamos. “Aprender a desenhar é aprender a ver”, diz Beth Edwards, autora do livro “Desenhando com o lado direito do cérebro”, livro que nos inspira neste caminho.

Menino imigrante, Mazé Leite
Enquanto pratica, tente manter-se centrado no lado direito, evitando pensamentos que distraiam, mantendo o foco. Dá trabalho? Dá! Mas é assim que se consegue avançar. Não se preocupe com o resultado final: ele virá ao final do processo. O que importa é o caminho e não o objetivo final. Em geral, pessoas muito ansiosas precisam fazer um esforço imenso para se focar no processo e esquecer o resultado. Querem chegar lá de qualquer jeito e com isso atrapalham/atropelam o processo. Mas não existe atalho algum para se chegar lá! Há que se caminhar, um passo de cada vez, para alcançar o que se pretende. Mas o estudante que se mantém focado no processo é exatamente aquele que dará saltos de qualidade que podem parecer “mágicos”, que pode parecer que o cara tem o “dom”, que é mais “talentoso” e essas coisas que costumamos ouvir das pessoas leigas. Não há mágica! Se o artista é bom, ele sabe o quanto caminhou para chegar até ali! Ele sabe todo o empenho envolvido para alcançar um bom resultado!

É muito melhor curtir o processo, o caminho que se percorre em um desenho. Porque o trabalho final mostrará exatamente se a pessoa estava com seu foco no fluxo e não no ponto final. Uma pessoa focada no fluxo mostrará um desenho com movimento, com leveza, com elegância. Outra focada no objetivo final, em geral ansiosa, mostrará um desenho mais “duro”, mais travado, com interrupções de leitura...

"Atirou por que?", Mazé Leite
Uma dica boa para começar (em especial para os mais afobados): respire profundamente algumas vezes. Isto inverte a resposta do corpo ao estresse. Quando sob estresse, respiramos mais rápido, mais superficialmente. Quando respiramos (uma meia dúzia de vezes apenas) de forma profunda, enchendo completamente o corpo com o ar, expirando-o calmamente também, ativamos o que é chamado de sistema nervoso parassimpático, que estimula o organismo a responder às situações com calma, com a desaceleração dos batimentos cardíacos, a diminuição da pressão arterial, da adrenalina. O corpo e a mente se acalmam. A tensão muscular diminui, a pessoa se sente mais centrada, o que por si só já traz mais conforto e menos ansiedade. Quando estamos em estado de muito nervosismo, estresse, cansaço, ansiedade, é quando nos prendemos ainda mais às minúcias e aos detalhes. Nada mais descartável para um bom desenho! O bom desenho é resultado da visão do todo, da relação entre as diversas partes, externas e internas.

No momento em que nos permitimos esse estado de percepção mais total das coisas, nosso estado mental está propício para realizar o seu melhor, canalizando nossa energia para um desempenho dinâmico e inspirado. Esta é a forma como usamos nossa energia mental e física a nosso favor, e não contra nós.

A chave para o desenvolvimento pessoal como artista é: disciplina, persistência no treino, foco no processo. É como estar na praia: você não pode parar o movimento das ondas, mas você pode aprender a nadar, a surfar. Isto é FLUXO, isto é processo, isto é caminhar. Como diz um velho ditado: “O caminho se constrói caminhando”...





terça-feira, 24 de novembro de 2015

O pintor russo Valentin Serov

Cavalos na praia, Valentin Serov
Autorretrato, Valentin Serov, 1885
O Museu Estatal Tretyakov de Moscou, Rússia, está apresentando uma importante exposição da obra do pintor russo Valentin Serov, marcando os 150 anos de seu nascimento. A mostra foi inaugurada no último 7 de outubro e se encerrará em 17 de janeiro de 2016. Serov é considerado um pintor realista, formado na escola clássica da pintura europeia, e no final de sua vida se aproximou das linguagens contemporâneas. Sem abandonar o figurativismo.

Esta retrospectiva das melhores pinturas e desenhos de Serov ocupam três andares da galeria. A exposição ajuda a mostrar a grande variedade do patrimônio criativo do mestre, não só através de seus retratos famosos, mas também com suas pinturas de paisagens e arte monumental, que foram gradualmente negligenciadas pelos pesquisadores das artes.

Valentin Aleksandrovich Serov nasceu em São Petersburgo em 19 de janeiro de 1865. Filho do compositor russo Aleksandr Serov e de Valentina Bergman, também compositora, que vinha de famílias de origem alemã e inglesa. 

A infância de Serov se passou dentro do meio artístico em que viviam seus pais, ambos músicos. Seu pai, Aleksandr Serov, era também conhecido na época, além de compositor, como crítico musical. Tinha 43 anos quando se casou com sua aluna de 17 anos de idade, Valentina Bergman, com quem teve seu único filho Valentin Serov. Sua casa sempre estava cheia de convidados, entre músicos e estudantes de música. Lá se discutiam as ideias de liberdade e igualdade, defendidas pelo teórico Tchernichévski. O pai músico tinha amigos intelectuais como Turgeniev, além de artistas da música e da pintura. Discutia-se muito a política da época e as ideias que se iam fermentando e que depois confluiram para a revolução russa do começo do século XX.
Retrato de S.M. Dragomirovoy, Serov,1889

Após a morte de seu pai (Valentin tinha seis anos de idade), a vida de Serov mudou. Sua mãe tinha paixão pela música e pelas atividades sociais ligadas a ela. Em 1872 sua mãe resolve mudar-se para Munique, na Alemanha, onde Valentin teve suas primeiras lições de desenho com Carl Kepping, conhecido gravador e ceramista. Vendo que o filho possuía grande talento para o desenho, mudou-se com ele para Paris, onde já vivia então Ilya Repin, o artista de quem ela já conhecia a fama, por causa de seu quadro “Os barqueiros do Volga” (leia aqui). Era 1874 e Valentin foi estudar com Ilya Repin. Seu único entretentimento eram as aulas com o mestre e os desenhos que fazia de forma independente.

Em 1875 mãe e filho retornaram à Rússia. Em 1876 mudaram-se para Kiev. Valentina Bergman não conseguia ficar parada e a vida nômade para Serov continuou. Em 1878, ele retomou suas aulas sistemáticas com Ilya Repin, que havia voltado também para Moscou. Para Serov, Repin era quase um membro da família e acompanha seu desenvolvimento em todos os aspectos. 

Retrato do escritor Maxim Gorky, Serov 
Se inscreveu na Academia de Belas Artes em 1880, que deixou em 1885, pedindo licença "para tratar a saúde”. Em suas memórias Valentin se dizia cansado da Academia. O que o incomodava? Tudo! “As paredes aqui, os corredores ..." Ele tinha desejado entrar para a Academia com a intenção de estudar com Pavel Chistyakov. Mas o seu método de ensino era bruto: zombava dos alunos, lhes chamava de impotentes, de infantis, fazendo críticas impiedosas todo o tempo. Mas Serov se submeteu ao tratamento dado por Chistyakov, pois sua opinião valia mais para ele ainda que a de Repin. Por seu lado, Chistyakov gostava de Serov e tinha orgulho dele. Foi este professor quem primeiro lhe abriu os tesouros do museu Hermitage e que lhe falou sobre a necessidade de estudar os antigos mestres. 

Em 1885 faz uma viagem a Munique e Holanda. Em Munique, Serov estuda a coleção da Alte Pinakothek, e faz cópias de Velázquez. 

Desde cedo, Serov se destacou como grande retratista. Ele seguia as características principais do que se denomina como “impressionismo russo”, ou seja, a preocupação com o movimento da luz e das massas de cor, a harmonia dos reflexos de luz.

Depois de 1890, se assumiu ainda mais como retratista. Seus modelos preferidos eram atores, artistas e escritores, e chegou a fazer retratos de Konstantin Korovin, Isaac Levitan, Nicolai Leskov e Nicolai Rimski-Korsakov. Ele havia optado em pintar com uma paleta mais restrita, sem muita variação de cores, ao contrário de seus colegas que optaram por um estilo colorido em especial na década de 1880. Serov preferia os tons mais cinzas e marrons. Ele havia feito a escolha de seus contemporâneos Anders Zorn e John Singer Sargent, preferindo dirigir seus estudos para as obras de pintores como Diego velázquez, por exemplo. Ele era um apaixonado pela obra do pintor espanhol Velázquez.


Mika Morozov, Valentin Serov
A partir de 1894 Serov começou a participar do movimento “Os Itinerantes”, e com esses companheiros executou várias pinturas de encomenda, como o retrato do grão-duque Pável Aleksandrovich, entre outros. Suas pinturas e desenhos se destacam bastante, pela execução hábil e composições grandiosas. Simultaneamente pintava retratos mais intimistas, em sua maioria de crianças e de mulheres. Com as crianças que pintou, desejava capturar-lhes o gesto e a pose para enfatizar a espontaneidade dos movimentos.

Valentin Serov usava com frequência várias técnicas para se expressar, desde a aquarela, aos pasteis, e as litogravuras. Foi se tornando cada vez mais gráfico e sucinto, especialmente na última fase de sua vida. Entre 1890 e 1900 pintou paisagens do campo, para si mesmo, geralmente em férias em sua dacha na Finlândia ou em Domotkanovo, a propriedade de seu amigo Derviz. 

A fase final de sua vida como pintor tem início por volta de 1900. Rompeu sua relação com o grupo “Os Itinerantes” e passou a fazer parte de outra associação de artistas que tinha também uma revista. Era o grupo do “O mundo da Arte”, que mantinha uma série de atividades como organizar exposições, propagandear as realizações da arte moderna russa e europeia. Nas reuniões de pauta para a revista “O mundo da Arte” em geral ele ficava calado, mas quando falava era sempre cáustico em suas críticas. Estava sempre com um lápis na mão desenhando.


Yuri e Sasha, desenho de Serov
Serov começava a mudar seu estilo de pintura, abandonando as características ditas “impressionistas” de sua pintura anterior, e foi se aproximando mais dos modernistas. Mas a compreensão realista da natureza de seus retratos continuou constante. 

Valentin Serov defendia os valores democráticos das revoluções russas de 1905. Membro de a Academia Imperial das Artes de São Petersburgo desde 1903, abandonou-a em protesto contra a execução de trabalhadores em greve e suas famílias, no dia 9 de janeiro de 1905, episódio que ficou conhecido como “domingo sangrento”. 

Serov também usou sua criatividade para executar pinturas históricas, dando aos fatos da história a importância que lhes devia. Também criou peças gráficas, fez ilustrações para livros, de caráter históricos ou científicos. Em seus últimos anos de vida, Serov pintou temas tirados da mitologia grega clássica, dando-lhes sua interpretação pessoal. 

Valentin Serov morreu em Moscou no dia 5 de dezembro de 1911. Deixou uma vasta obra, considerada das melhores do realismo russo e ele mesmo é considerado um dos maiores mestres da pintura europeia do século XIX. Em 1914 foi realizada uma exposição póstuma com sua obras em Moscou e São Petersburgo.

"Ele era mais do que um artista, era um buscador da verdade", disse o pintor Konstantin Korovin sobre o amigo Valentin Serov.


O rapto de Europa, Valentin Serov, 1910
Nikolai Rimski-Kosarkov, Serov, 1898
"Os dois meninos Serov", Valentin Serov, 1899
"Retrato de Isaac Levitan", Serov
"Outubro em Domotkanovo", Serov, 1895
"Alexandr Serov", Valentin Serov, 1897 - inacabado
"Banhando o cavalo", Serov
"Jovem com peras - retrato de V.S. Mamontova", Serov, 1887

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

O grande Giovanni Boldini

Autorretrato, Giovani Boldin, óleo sobre tela, 1892
Assim como seu contemporâneo John Singer Sargent, (leia aqui), Giovanni Boldini é um pintor retratista de renome internacional, trabalhando principalmente em Paris e Londres. No início do século XX, é um dos retratistas mais proeminentes em Paris. Ele tem sido uma de minhas referências na pintura e por isso apresento aqui uma breve biografia deste grande pintor.

Giovanni Boldini nasceu em Ferrara, Itália, em 31 de dezembro de 1842. Foi o oitavo dos 13 filhos de Antonio Boldini e Benvenuta Caleffi. Seu pai era pintor acadêmico e restaurador. Diz-se que possuía grande domínio técnico e fez boas cópias de pinturas de Rafael e de outros pintores venezianos. Desde muito cedo, Giovanni recebeu de seu pai suas primeiras lições de desenho.

A partir de 1858, em sua cidade natal, tornou-se aluno do curso de pintura de Girolamo Domenichini (1813-1891) que, junto com Antonio Boldini foi o autor dos afrescos do Teatro Academico local. Boldini também teve a oportunidade de conhecer de perto a obra dos grandes pintores ferrarenses do período da arte italiana chamado de Quattrocento, como Dosso Dossi e Parmigianino.


Canal de Veneza com gôndola,
óleo sobre tela, 1899
Sua primeira obra importante foi “O quintal da casa paterna”, um óleo terminado em 1855. No final da década de 1850, Boldini já havia concluído um “Autorretrato com 16 anos” e retratos, como o de seu irmão “Francesco”, e de “Maria Angelini” e “Vittore Carletti”.

Em 1862, Giovanni Boldini se inscreveu na Academia de Belas Artes de Florença, tendo estudado com Stefano Ussi (1822 - 1901) e Enrico Pollastrini (1817 - 1876). Nesse período, junto com outros artistas florentinos, começou a frequentar o Café Michelangelo (onde também se reuniram os pintores do movimento Il Macchiaioli - leia mais aqui). Destes, conheceu Giovanni Fattori, Odoardo Borrani, Telemaco Signorini, Cristiano Banti, Montemurlo e Michele Gordigiani. Nesse período em Florença, Boldini será hóspede na casa da família Falconer. Numa casa de campo pertencente a esta família, ele pinta com têmpera a seco, entre 1867 e 1870, as paredes de uma pequena sala. A viúva de Boldini comprará esta casa em 1938; hoje ela abriga uma boa quantidade das obras do pintor.

Junto com Cristiano Bonti, Boldini vai a Nápoles em 1866. Fará vários retratos de seu amigo. No ano seguinte, junto com a família Falconer faz uma viagem à França e em Montercalo ele pinta o quadro intitulado “General espanhol”, que ele considera uma das melhores obras de sua juventude. Em Paris, acontecia a Exposição Universal e nosso pintor italiano conhece os franceses Edgard Degas (leia aqui), Alfredo Sisley e Édouard Manet.


Retrato de Marthe Bibesco,
Boldini, óleo sobre tela, 1911
 
Em 1870, convidado por William Cornwallis-West, que havia conhecido em Florença, passa uma temporada em Londres. O amigo lhe põe a disposição um estúdio no centro da cidade, frequentado pela alta sociedade. No final do ano, volta para Florença e, no ano seguinte, se muda para Paris. La conhece a modelo Berthe, com quem passa a morar. Um dos maiores marchands de Paris, Goupil, o contrata como pintor. Para ele já trabalhavam Mariano Fortuny (leia aqui) e Ernest Meissonier, além de dois outros italianos, Giuseppe Palizzi e Giuseppe De Nittis. Boldini pinta uma série de quadros.

Em 1874, expõe com muito êxito no Salão de Paris seu quadro “As lavadeiras”. Termina seu caso com Berthe e começa a se relacionar com a condessa Gabrielle de Rasty, de quem expõe um retrato no Salão de 1875. Em 1874 ainda, sua mãe morre e ele volta brevemente à Ferrara. Em 1876, faz uma viagem à Alemanha aonde conhece e faz um retrato do grande pintor alemão Adolph von Menzel (leia mais sobre ele aqui). Passando pela Holanda, viu de perto as obras de Frans Hals (mais aqui).


Nessa fase de sua vida, Boldini já era muito solicitado como pintor de retratos. Em 1886, faz um retrato do compositor italiano Giuseppe Verdi, em óleo sobre tela. Dará esse retrato pessoalmente a Verdi sete anos depois em Milão. Mas, ainda insatisfeito com o resultado, faz um segundo retrato de Verdi em pastel, em apenas 5 horas. Este segundo, guardou-o consigo e o apresentou na Exposição Universal de Paris em 1889 e em 1897 participou com ele da I Bienal de Veneza. Em 1918, doou este trabalho à Galeria de Arte Moderna de Roma.


Retrato de Giuseppe Verdi,
Boldini, pastel sobre papel, 1886
Resolveu aumentar o tamanho de suas telas, por sugestão do pintor sueco Anders Zorn, a quem tinha conhecido em 1890 (leia sobre Zorn aqui).

Na primavera de 1900 ficou hospedado na casa da família Florio, em Palermo, Itália, para pintar o retrato da senhora Donna Franca. Esta pintura não agradou a seu marido, por causa do amplo decote e das pernas descobertas um pouco abaixo dos joelhos. Boldini adaptou-o ao gosto do marido. Esse quadro foi vendido em 1928 pela enorme soma de um milhão de liras. Anos depois foi roubado pelos ocupantes nazistas em Paris e levado para a Alemanha, onde sofreu sérios danos. Restauradores foram obrigados a cortar a parte inferior do quadro, porque estava totalmente destruída.

Quando começou a I Guerra Mundial, ele se muda para Nice - na Riviera francesa - junto com sua modelo Lina. Permanece lá até 1918, retornando a Paris. Já enfermo e com a visão debilitada, casa-se com Emilia Cardona em 29 de outubro de 1929, mas morreu dois anos depois, no dia 11 de janeiro de 1931. Tinha 89 anos de idade. Seus restos mortais foram trasladados à Itália, onde descansam junto com os de sua família, no cemitério de Ferrara.


Retrato de Adolph von Menzel, Boldini, óleo sobre tela
Após o banho, Boldini, óleo sobre tela
Rosa no vaso, Boldini, óleo sobre tela
Portrait of the Countess de Martel de Janville, Boldini, óleo sobre tela, 1894
Madame Rejane e seu cão, Boldini, óleo sobre tela, 1885

Homem na igreja, Boldini, aquarela, 1900
Retrato de um jovem, Boldini, óleo sobre tela
Retrato do artista Ernest Ange Duez, Boldini, óleo sobre tela
Ilha de San Giorgio em Veneza, Boldini, óleo sobre tela, 1872
John Lewis Brown com esposa e filha, Boldini, óleo sobre tela, 1890
Atravessando a rua, Boldini, óleo sobre tela, 1873-75