Mostrando postagens com marcador Carlos Cavalcanti. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Carlos Cavalcanti. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 17 de maio de 2011

O Realismo atravessa os tempos

Acabei de ler o livro de Carlos Cavalcanti, edição de 1967, "Conheça os estilos de Pintura". É um livro esgotado nas livrarias, há muito tempo. Encontrei-o em minha viagem ao Rio de Janeiro, mês passado, em plena Cinelândia, na Feira de Livros. Paguei dez reais por um livro que dá um panorama histórico da pintura, desde a Idade da Pedra Lascada até o século XIX.


Narciso, de Caravaggio, óleo sobre tela, 110x92cm,
Galleria Nazzionale d'Art Antica, Roma, Italia
Quem lê livros, sabe o que acontece quando acabamos de ler a última linha de um livro que tanto nos prendeu e interessou! Cria-se um vácuo, um "não sei o que fazer agora", o que ler em seguida, como viver a partir deste momento... Um bom livro mexe profundamente, move e remove ideias, cria novas, faz recuar em preconceitos, avançar em conceitos, em conhecimento. Dá vida!


Pois bem! Um bom lastro de conhecimento sobre a história da pintura aumentou mais ainda meu interesse sobre o tema do Realismo nas artes. Isso vai dar muito pano pra manga, pois alguns dados colhidos são realmente interessantes. A realidade - esse contato direto do homem com o mundo à sua volta - tem gerado interesse, curiosidade, investigação, conhecimento, ciência e arte. Ao longo de milhares de anos, o Real tem intrigado o homem, tem movido o homem, tem inspirado o homem.

Pintura palelolítica, caverna de Montinac-Lascaux, França
Artistas realistas não são uma novidade do século XIX, pois como diz Carlos Cavalcanti - além de outros - os primeiros realistas apareceram na Idade da Pedra Lascada "com os desenhistas e pintores madalenianos, decoradores de cavernas, armas e utensílios" que estudavam e desenhavam com muita eloquência os movimentos e o caráter dos animais.

Os egípcios antigos eram ao mesmo tempo figurativos e abstratos como pintores, influenciados diretamente pela religião e suas crenças, onde sacerdotes orientavam artistas dentro de regras rígidas. Mas mesmo assim, os escultores egípcios eram realistas. Também na Roma dos velhos tempos, os pintores - os primeiros muralistas - eram também realistas, pintavam em enormes afrescos murais públicos, cenas da vida, da história.

Estudos de Michelângelo Buonarrotti (1475-1564)
A última fase da pintura Gótica e a primeira fase dos Renascentistas trouxeram excelentes pintores realistas, como Tommaso Masaccio (1400-1428) que para representar cenas bíblicas - moda na época - ia buscar nos bairros pobres de Florença, na Itália, os modelos para seus quadros. Ele é considerado o segundo grande mestre do começo da pintura ocidental, depois de Giotto (1266-1337), exatamente porque ele abriu caminhos para a interpretação realista do mundo, sem a mística da Idade Média. Foi nele que se inspiraram, séculos depois, Michelângelo, Leonardo Da Vinci, Rafael e outros.

Um outro pré-renascentista, Filippino Lippi (1457-1504) - que era filho de um padre (também pintor) com uma freira - também trazia elementos que o diferenciavam dos pintores de seu tempo, influenciados pela mística bizantina: pintava anjos com as unhas sujas, nossas senhoras com a cara das mulheres que se viam nas ruas.
Lição de Anatomia, de Rembrandt, 1632, Museu de Haia, Holanda
Também na Holanda, ainda no século XV, os irmãos Van Eick pintavam o que viam com uma verdade "às vezes quase cruel, dos seres e das coisas", diz Cavalcanti.


No Renascimento que cultuava as formas idealizadas dos gregos antigos, os pintores realistas são em número muito grande! O Barroco, que trazia intensidades dramáticas expressas nas artes, era sobretudo um movimento realista, e de inspiração popular. Não precisamos fazer uma lista de nomes, porque um só deles já basta para atestar esta constatação: O Mestre Caravaggio! Ele era odiado pelos seguidores dos maneirismos aristocráticos de seu tempo, que o chamavam de anticristo da pintura, o pintor maldito, o pintor que vivia com os pés sujos. Caravaggio não ligava, pintava com intensidade a realidade crua que via diante dos olhos.


Nos séculos XVII e XVIII, pintores flamengos e holandeses criaram obras onde interpretavam os interesses da já "opulenta e laboriosa" burguesia mercantil e manufatureira. Nesse período, primorosos pintores realistas pintaram desde retratos até a paisagem de suas terras, além do cotidiano doméstico, encontrando beleza e graça nas cozinhas e nos dormitórios modestos do povo dos Países Baixos.


Mesmo na França do período do Rococó mundano e superficial de uma "aristocracia em decomposição", diversos pintores, ao invés de se inspirarem nos temas em voga, preferiam buscar inspiração na vida laboriosa dos trabalhadores rurais e mesmo na vidinha besta da pequena burguesia provinciana.

Velha fritando ovos, de Vélazquez, 1618, 100x120cm,
National Gallery of Scotland, Edimburgo.
 
Então, diz bem Carlos Cavalcanti, entendida como representação objetiva da realidade, o Realismo na pintura não é uma novidade trazida pelo século XIX, porque, diz, a "Realidade em si mesma, limpa das deformações do sentimento ou dos atavios estéticos, mais de uma vez tem parecido bela aos olhos humanos" desde a remota antiguidade.


Mas foi no século XIX, com Gustave Courbet, que se funda oficialmente o movimento conhecido como Realista, primeiros passos para todos os movimentos modernistas que vieram a seguir. O Realismo do século XIX veio junto com ideias revolucionárias contra a burguesia já no poder, que já de revolucionária não tinha mais nada. Se mostrava conservadora, anti-reformista e autoritária. Citando Arnold Hauser, um dos teóricos do período, Cavalcanti lembra que as intensas discussões daquela época em torno da "arte pura", distante da realidade e da história, eram incentivadas pela burguesia no poder que queria afastar o artista das ideias políticas.


O atelier do pintor, Gustave Courbet, 1855, óleo sobre tela,
361x598 cm, Museu D'Orsay, Paris, França
Hoje, nesta salada contemporânea, assuntos como este voltam de vez em quando. O eterno debate sobre o papel da arte nunca saiu de cena, o que é compreensível, uma vez que o homem como artista é um homem com sentidos diferentes de percepção do mundo, mas um homem que somente se satisfaz quando transmite sua percepção pessoal do mundo aos semelhantes. Há os que criam um diálogo com suas obras, fazem pensar, dão prazer estético. Mas há os que vão simplesmente na onda da moda e, se se preocupam em criar um diálogo com seus semelhantes, esses semelhantes são bem semelhantes mesmo, porque pertencem a uma casta que fala uma língua que a imensa maioria não é capaz de compreender...

Le déjeuner sur l'herbe, de Édouard Manet, 1863,
Museu do Louvre, Paris, França
Do meu lado, sou parte daqueles que gostam de conversar com todo mundo: Masaccio, Van Eyck, Michelangelo, Caravaggio, Rembrandt, Vermeer, Velazquez, Murillo, Ribera, Zurbarán, Dürer, Goya, Rubens, Rafael, Van Dyck, El Greco, David, Ingres, Sargent, Courbet, Delacroix, Manet, Toulouse-Lautrec, Monet, Millet, Rousseau, Géricault, Corot, Fantin-Latour, Doré, Daumier, Turner, Constable, Rossetti, Degas, Almeida Junior, Visconti, Anita Malfatti, Portinari, Di Cavalcanti... a lista é imensa! Nem todos realistas, claro, mas todos gênios em seus cavaletes onde geraram as grandes obras que inspiram nossa humanidade, e que espelham os rostos de todos nós.


Os músicos, de Caravaggio, óleo sobre tela,
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, EUA