Mostrando postagens com marcador Macunaíma. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Macunaíma. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Amálgama


Algumas observações sobre cultura.

Muito tenho pensado sobre o tema da dominação do pensamento europeu sobre nossa cultura brasileira nestes dias. Há bastante gente também pensando em como isso se deu. Como isso se dá. Porque é justo resgatar do mais fundo de nossas almas o que lá pode estar ainda oculto: o que nos fará mais ricos quando vier à tona em toda a sua potência, talvez uma brasilidade nova que, como uma estrela, iluminará algo dos passos de um mundo que se globaliza...

Somos um país cuja história oficial se iniciou em 1500. Verdade é que povos indígenas já estavam por aqui, mantendo sua vida, sua economia e política, e sua cultura, de modo independente dos povos que já habitavam a Europa e que chegaram até aqui. Portugueses, franceses e holandeses, principalmente, se lançaram sobre o território recém-descoberto com sede de riqueza e lucros para seus reis, imperadores, governantes, e até sacerdotes.

Ocorre que trouxeram consigo além de armas de conquista, sua visão de mundo, sua cultura que, sendo imposta, foi mesclando-se com a cultura indígena, local, assim gestando parte do que somos hoje enquanto povo.

Os conquistadores europeus também arrancaram de suas casas e trouxeram para cá milhões de africanos ao longo de séculos de escravidão. 

Assim como os europeus, os africanos - em posição inferior, obviamente - também trouxeram sua visão de mundo e sua cultura.

Os brancos europeus - “donos” do território conquistado - impuseram sua religião, seus costumes, sua alimentação, suas vestimentas. Indígenas e africanos foram obrigados a aprender sua fala, suas rezas, seus modos à mesa, seus costumes. Foram obrigados a adorar seu Deus, o único; coisa bizarra para duas culturas que eram mais generosas em termos de panteão: possuíam muitos deuses, e não só um.

Mas no meio de tudo, indígenas e africanos mostraram jeitos, comidas, cantos, rezas. Nas caladas das noites, foram-se imiscuindo entre as gentes de pele clara, gerando filhos já não tão claros, verdadeiros nascidos das três raças.

"Lavrador de café",
Portinari
Com o passar dos séculos, tudo se misturou e a mandioca entrou na cozinha: três culturas formam a nossa, mas é claro que com a absoluta primazia dos dominadores brancos europeus. A cultura dominante em nosso país é a cultura das classes dominantes desde 1500. Com toques, na história mais recente, de imposição cultural com fortes traços imperialistas.

Hoje, há gente se esforçando para restaurar a importância - extrema - da cultura africana sobre a brasileira, e da cultura indígena sobre a brasileira. Desde Mário e Oswald de Andrade, tenta-se destacar o papel fundamental de negros e índios em nossa formação. E isso é absolutamente inegável.

O que é inegável também que nos formamos como povo, em termos de educação, de pensamento, de filosofia, de ciência - com todas as narrativas dessas visões de mundo - com o viés dos colonizadores europeus. São Tomás de Aquino, Agostinho de Hipona, John Locke, Montesquieu, Voltaire, Adam Smith; Rousseau, Diderot, Descartes, Immanuel Kant, Karl Marx; Nietzsche, Schopenhauer; Johannes Kepler, Isaac Newton, Galileu Galilei, Albert Einstein, Stephen Hawking; Johann Sebastian Bach, Mozart, Beethoven, Schubert; Leonardo da Vinci, Rembrandt, Velázquez, Ingres, Van Gogh…

Poderíamos fazer uma lista imensa de europeus que formam a nossa visão de mundo, desde filósofos a artistas. Lembrando que a própria Europa é resultado do amálgama biológico de muitos povos, e filosófico de culturas mais antigas, como a grega. Europeus se impuseram sobre as Américas, sobre terras descobertas nos confins da Austrália e Nova Zelândia… Sobre partes da África e da Ásia.

Sua visão de mundo e sua forma de estar no mundo se impôs, e isso é fato. Muito mais recentemente na história, a humanidade branca europeia teve acesso ao conhecimento da filosofia oriental, chinesa, indiana, japonesa. Não levaram a sério (porque eram rudes os conquistadores, além de sedentos por riqueza) as culturas de povos indígenas ou aborígenes que foram encontrando pelo caminho. Não respeitaram o modo de pensar e de ser dos africanos que sequestraram como escravos para o Mundo Novo. Havia que passar por cima de tudo como um trator, porque o interesse maior era o de seus governantes e sua sede de riqueza e lucro. E para dominar, domina-se impondo religião, valores e costumes. Sobre todos os que não são brancos de pele, com suas esquisitices e idiossincrasias.

Assim foi e assim ainda é. O real é que todos somos resultado desse amálgama. Com predomínio óbvio da cultura ocidental que, em maior dosagem, permanece fazendo parte de nossas vidas, nossas formas de pensar, nossa ciência, nossa arte.

Mas há os entremeios...  

Há as burlas, as entrelinhas, os buracos na receita desse bolo… Há o não-dito, mas pensado. O sugerido sem ser detalhado. Há as vias tortas, os descaminhos, as sinuosidades. O torto. O imprevisto. O inexplicado. O imponderável. 

E há um Macunaíma dentro de cada um de nós, que ainda vai engrupir e engolir todos "eles"!

Grande Otelo, ator brasileiro representando o personagem no filme "Macunaíma"

terça-feira, 9 de novembro de 2010

São Paulo sem Macunaíma?

Uma herança maldita deixada pela campanha eleitoral pessedebista: as forças obscuras que antes pareciam desmanteladas, ressurgiram de uma forma assustadora durante a campanha para a presidência da República, espalhando ódio e preconceito. Passada a eleição, eleita a Presidenta Dilma Rousseff, a velha elite paulista, retrógrada e conservadora, agora mostra os dentes tintos da mais repugnante xenofobia. Para isso usa, como emissários, seus filhotes internautas.

Grande Otelo interpretando o personagem Macunaíma
Macunaíma, romance do paulista Mário de Andrade, nasceu junto com o movimento modernista brasileiro, na esteira da famosa Semana de Arte Moderna de 1922 e do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade. Eram tempos de descoberta de novos paradigmas trazidos pela modernidade e, como conseqüência, eram tempos de descobrir o Brasil, de conhecer o povo, a cultura e a língua brasileira. Do estrangeiro, propunha Oswald, abocanhemos o que trouxerem de bom, como bons antropófagos que somos.

Mas o Macunaima de Mário de Andrade, publicado em 1928, é a síntese do povo brasileiro. Nessa história, Mário revoluciona a escrita literária, trazendo palavras e expressões tiradas diretamente da fala do povo que ele pesquisou de norte a sul. Em Macunaíma, Mário reúne as várias regiões do Brasil, e também une, num só personagem, as três raças brasileiras: negro, índio e branco. Macunaíma nasceu no meio da floresta amazônica, “preto retinto, filho do medo da noite”.

O herói sem nenhum caráter, como diz o subtítulo do livro, vem para São Paulo atrás de sua pedra (um talismã conhecido da cultura indígena), sua Muiraquitã, que foi roubada pelo gigante comedor de gente Venceslau Pietro Pietra que morava aonde? “No fim da Rua Maranhão olhando para a Noruega do Pacaembu”, ou melhor, em Higienópolis, mesma rua, mesmo bairro de um certo FHC pessedebista. Coincidência?

Como o gigante-ladrão morava em São Paulo, “cidade macota do igarapé Tietê”, Macunaíma e seus irmãos descem o rio Araguaia e vão para a metrópole na tentativa de recuperar sua Muiraquitã. A maior parte do romance se passa em São Paulo, onde acontecem diversos embates entre Macunaíma e Venceslau Pietro Pietra. O autor, nessas refregas entre os dois, satiriza alguns aspectos da vida paulistana provinciana. Ao final, Macunaíma mata o gigante e recupera seu amuleto, partindo de volta para o Uraricoera, seu lugar de origem. O defunto Venceslau é um dos únicos do romance que não se transforma numa estrela cadente no céu...

Macunaíma é a síntese do que é ser brasileiro, essa mistura de raças, essa heterogeneidade cultural que é nossa riqueza. É o negro, o índio e o branco convivendo em paz e gerando essa linda gente bronzeada e plena de valor, lembrando o samba de Assis Valente.

Pois bem. Macunaíma – o povo brasileiro – também mora em São Paulo. Mas há uma certa categoria de gente que também mora em São Paulo que não suporta o diferente, que prefere a monotonia da monocromia cultural e racial. Essa gente não suporta sentar-se ao lado de Macunaíma em seus restaurantes e em suas viagens aéreas. Eles querem que Macunaíma volte definitivamente para o Uraricoera, lá no fim do mundo, onde vivem outros macunaímas pobres, mulatos, injustiçados pelo sistema durante séculos, que não lhes tem dado direitos básicos fundamentais.

Só que a elite de Venceslau Pietro Pietra, o gigante comedor de gente e ladrão do que há de mais essencial na cultura brasileira, essa gente que mora nos Jardins e em Higienópolis não consegue admitir que um Macunaíma-Lula-Operário tenha sido por oito anos Presidente de todos os Macunaímas do Brasil! E até da elite! Elite essa muito mal-agradecida que ganhou ainda mais dinheiro nesses últimos oito anos! Esse gigante-anão, que é essa minoria de paulistas com um olho sempre voltado para 1932, também não admite que uma cunhã (mulher, na língua de Macunaíma) tenha sido eleita para ser a Presidenta de todas as cunhãs brasileiras, pobres e ricas, e de todos os Macunaímas e Venceslau Pietros Pietras do Brasil! Sim, porque Dilma Rousseff disse que vai governar para TODOS os brasileiros!

E querem – eles, essa minoria de retrógrados – expulsar Macunaíma de São Paulo!

Esta semana, pós-eleição de Dilma, os filhotes dessa elite vomitaram em seus twits e posts seu ódio de classe e sua repugnante xenofobia: querem que os nordestinos saiam de São Paulo, querem São Paulo higienizada (né, Higienópolis?) de todos os “forasteiros”. Só que forasteiros são exatamente eles! Essa gente que odeia nordestinos, é ela que está fora de lugar, porque aqui em São Paulo, a imensa maioria dos paulistas são, como todos, brasileiros acolhedores, solidários, fraternos. São pessoas de todas as origens, cores, sotaques, culturas. São Macunaíma, a síntese da nossa cultura, a nossa heterogeneidade, a nossa riqueza!

Mas a mente mesquinha dessa gente medíocre que quer São Paulo para si, não faz ideia do que seria esta imensa cidade sem a mistura encantadora dos mil sotaques que se ouvem nas avenidas. São Paulo, a imensa realidade que cai sobre cada migrante que aqui chega, parece amedrontar quando se mostra do “avesso do avesso do avesso do avesso”.

Mas é aqui que se esconde a Muiraquitã de todos os Macunaímas, brasileiros ou estrangeiros. Nesta Babel de línguas e culturas, São Paulo é mais luz, é mais cor, é mais vida. Sem os nordestinos, as tonalidades de cinza dos céus deste lugar pesariam ainda mais sobre a alma dos que aqui habitam. Tudo seria mais triste sem o canto, a dança, a poesia, o trejeito, o molejo, a fala mansa, o coração quente, o trabalho e o abraço imenso do povo do nordeste que por aqui se aventura e que só deixou seu “cariri no último pau de arara”!

Para as gralhas xenófobas que estrilam seus gritos de morte, faço um convite nordestino:

“Batucada, reuni vossos valores
Pastorinhas e cantores
Expressão que não tem par, ó meu Brasil!
Esquentai vossos pandeiros,
Iluminai os terreiros que nós queremos sambar!”

Xilogravura de J. Borges