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quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Pequena história do autorretrato - final

"O desesperado", Gustave Courbet, óleo sobre tela, 1843-45

"O bocejo", Masserchmidt
Finalmente, chegamos ao final da leitura do livro “Histoire de Moi”, de Yves Calméjane.

Na parte final de seu livro, o autor vai passando rapidamente por diversos artistas do século XVIII ao século XX, passando por Jacques-Louis David, Eugène Delacroix, Gustave Courbet, Gauguin, Van Gogh, Lucien Freud...

Mas me pareceu que vale a pena pinçar um artista dentre os diversos, para falar um pouco mais dele... Trata-se de Franz-Xaver Messerchmidt.

Escultor austríaco, Franz-Xaver Messerchmidt (1736-1783) considerava as caretas e outras deformações da face humana como tradutoras de disposições espirituais. Isso se tornou uma obsessão para ele de tal forma que tentou criar uma espécie de sistema científico produzindo uma série muito precisa intitulada “Rostos de personagens”, que acabaram por torná-lo bastante conhecido. Messerchmidt buscou traduzir em escultura os movimentos da alma expressos na face humana. Trabalhou nisso até sua morte. Foi encontrado em seu ateliê de Bratislava sessenta e quatro “extraordinários” autorretratos, em diversos materiais, de alabastro a mármore, chumbo e estanho.

Quarenta e nove destas esculturas foram expostas em 1793. Uma delas se encontra hoje no Museu do Louvre em Paris e tem como título “Homem de mal humor”. Messerchmidt criava suas peças a partir das expressões de seu próprio rosto, diante de um espelho.

"Caretas", Masserchmidt
O homem Franz-Xaver Messerchmidt sofria de alucinações constantes e tinha sentimentos de que estava sendo sempre perseguido. Dizia que era vítima de espíritos maliciosos e que suas esculturas tinham as feições adequadas para repelir as forças perversas que o atacavam. Por isso também ele esculpia as expressões de seu próprio rosto, numa “prática frenética” de se autorretratar.

Yves Calméjane lembra de uma frase do poeta e ator teatral francês Antonin Artaud, que também reproduzimos aqui:

“Nós escrevemos ou pintamos, esculpimos, modelamos e criamos só para sair do inferno!”

Na parte final do livro, o autor francês também faz um destaque inusitado: em termos de auto-imagem ninguém superou Adolf Hitler, que encomendou a seu fotógrafo particular cerca de 5 mil retratos! E lembra que uma das frustrações do ditador nazista era ter sido um pintor mediano...

Saltamos do período sangrento da Guerra para os dias atuais...

Estamos em 2017 e NUNCA, em nenhum tempo da história mundial se fez tantos autorretratos quanto tem sido feito com esta verdadeira febre dos chamados selfies… Um mar de selfies invadem as telas de computadores e smartphones, preenchendo as redes sociais com inumeráveis “egos” que se mostram a quem quiser vê-los, num festival de sorrisos e de angústias…

Estranho mundo povoado de milhões de solitários” - conclui Yves Calméjane - “que fazem retomar a questão de todos os artistas desde os primórdios e que um, entre eles, Paul Gauguin, expressou no título de seu último quadro-testamento”:

De onde viemos?
O que somos?
Para onde vamos?


Autorretrato feito na prisão, Jacques-Louis David
......
Autorretrato de 1837, Eugène Delacroix
Autorretrato de 1893, Paul Gauguin
...
Autorretrato de 1889, Vincent Van Gogh
Autorretrato de 1985, Lucien Freud

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Pequena história do autorretrato - parte VI

"Dança da Música no Tempo", Nicolas Poussin, 1638, óleo sobre tela
UM FRANCÊS


Nicolas Poussin (1594-1665), pintor francês radicado na Itália, é a própria imagem do Classicismo, na opinião de Yves Calméjane. Há dois autorretratos seus, um em Berlim e outro em Paris. Mas há um desenho em sanguínea que se encontra atualmente no British Museum de Londres que é muito mais revelador da “grandeza e nobreza desse pintor contemporâneo de Corneille e Descartes” (ver imagem abaixo).


É uma dor amarga, aquela do estóico prestes a ceder à mais dura pena”. Dá para perceber o desespero em seus olhos e sua boa parece que vai soltar um palavrão. Este homem sofre fisicamente e espiritualmente por estar à beira do desespero no qual vai cair. “Ele luta com Deus”.


Pouco se sabe sobre o começo  da vida de Nicolas Poussin, mas sabe-se que desde cedo ele guardava uma verdadeira paixão pelo desenho.


O pai de Poussin havia se arruinado com as guerras religiosas na França. Sem recursos, ele se estabelece na região da Normandia, onde se casa. Nasce Nicolas Poussin, que pode estudar com um professor de latim. Nesse período chega até Andely, onde viviam Poussin e sua família, um pintor que foi encarregado de alguns trabalhos de pintura na igreja local. Era Quentin Varin. Poussin consegue dos pais autorização para estudar desenho com o pintor e foi com ele que aprendeu também os primeiros ensinamentos sobre arte.


Mas seu desejo de crescer na arte, aquela vontade que move a gente pelo mundo, fez Nicolas Poussin partir para Paris, em algum dia de 1612. Ele vive com muita dificuldade, passando de um ateliê a outro… Conheceu e ficou amigo de Philippe de Champaigne e descobriu a arte do pintor italiano Rafael di Sanzio.


Um certo cavalheiro de Poitou se ofereceu para ajudá-lo, hospedando-o em sua terra. Mas Poussin foi tratado como um criado. Resolveu voltar à Paris, a pé, onde voltou mais uma vez a viver uma miserável existência, pintando aqui e ali… O princípio de carreira de Poussin foi muito duro! Exausto e doente, resolveu voltar à casa de seus pais, para se recuperar. Mas todas essas dificuldades não apagaram a chama da arte em seu coração. Poussin era de fato um apaixonado pela arte e toda a sua vida o demonstra.


Restabelecido, decidiu partir para a Itália. Roma era seu destino. Em Paris ele tinha ouvido falar tanto dos mestres italianos que resolveu ir conferir de perto e ver como aprender com eles.


Em sua primeira viagem à Itália, chegou até Florença e lá viu confirmadas suas expectativas de que seria lá que ele iria se desenvolver. Voltou à França, e trabalhou um pouco em companhia de Philippe de Champaigne em algumas encomendas para o Palácio de Luxemburgo em Paris. Depois partiu novamente em direção à Roma, sua obsessão. Mas foi preso por dívidas na cidade de Lyon. Novo retorno à Paris onde consegue uma encomenda dos Jesuítas, uma série de quadros sobre a vida de São Francisco Xavier, que ele pinta em uma semana. Por volta de 1622 ele conhece Giambattista Marino, um poeta napolitano que a Corte de Maria de Médicis havia acolhido em Paris. Poussin executa alguns desenhos para ele sobre temas retirados de Ovídio. Giambattista dá a Poussin o gosto pelos temas inspirados na cultura latina, que ele irá pintar durante toda sua vida.


Mais uma vez de volta a Roma, Poussin chega lá no começo de 1624.
Autorretrato em sanguínea, Poussin


Seu novo amigo, Giambattista Marino, traduziu bem o estado de espírito de Poussin naquela época: ele era animado por uma “fúria do diabo”. Nicolas Poussin acabou ficando sozinho em Roma, pois seu amigo partiu para Nápoles, sua terra natal, onde morreu no ano seguinte. Como em Paris, Poussin vive em Roma em verdadeira miséria. De vez em quando vendia um quadro, muito mal pago. Mas trabalhador furioso, ávido de progresso, ele frequentava as escolas para bons pintores. Aperfeiçoa seus conhecimentos de perspectiva e faz dissecações de cadáver para aprender anatomia.


Ele procura sua veia artística e recusa totalmente o estilo dos caravaggistas, por exemplo. Ele odiava Caravaggio! Dizia que ele tinha vindo ao mundo para destruir a arte da pintura: “uma pintura tão vulgar não pode ser feita senão por um homem vulgar. A feiúra de suas pinturas irá levá-lo ao inferno”, disse Poussin. “A morte da Virgem” de Caravaggio tinha horrorizado Nicolas Poussin, que acabou seguindo o caminho da pintura clássica, esfumada, linear.


Poussin continuava vivendo na pobreza. Durante muitos anos ele procurou desesperadamente por ajuda e por encomendas. Caiu de novo doente, desta vez com o “mal da França”, a sífilis. Esta doença o fará sofrer muito, alternando períodos de certa tranquilidade com outros onde sentia muitos incômodos físicos. “Extremos”, como ele disse. Foi exatamente neste período que ele pintou seu autorretrato em sanguínea… Por este desenho, dá para perceber seus sofrimento, sua humilhação e sua incapacidade para trabalhar…


Mais uma vez ele encontrou alguém que veio ajudá-lo: o cozinheiro francês Jacques Duguet, que era de Paris. Duguet foi procurar algum médico que pudesse ajudar Poussin, enquanto sua esposa e filha aliviavam bondosamente as suas dores. Em troca da bondade dessa família, Poussin ensinou pintura a um dos filhos, Gaspard. Em seguida, Poussin se casa com a filha mais velha de seu amigo, Anne-Marie. Segundo seus biógrafos, Poussin finalmente conheceu repouso físico e mental após seu casamento e pode enfim se consagrar plenamente à sua paixão, a arte.


O ano deste autorretrato desenhado por Poussin representa uma reviravolta em sua vida. Ele retoma seu caminho, em direção à Arcadia, aos tempos dourados da Roma antiga, ao clássico modo de vida, à filosofia clássica.


UM INGLÊS


Do outro lado do Canal da Mancha, a atmosfera era mais descontraída.


"O pintor e seu cão", William Hogart, 1745
William Hogarth (1697-1764) era inglês e adorava cães. Assim que pintou um autorretrato, não deixou de pintar junto seu cão. Em 1745 ele se pinta vestido com roupas de traballho, repousando sobre obras de Shakespeare, Swift e Milton. Neste quadro pode-se ver sua paixão pelo teatro.

Seus quadros obtiveram muito sucesso na sociedade inglesa em plena expansão, mas que também guardava disparidades sociais terríveis. Hogarth se tornou um sátiro feroz dessa sociedade britânica, através de seus quadros que ele apelidou de “peças morais”.

Ele colocou o teatro na pintura, e também a pintura no teatro. Fazendo isso, ele também mostrava sua crítica social: “Minha pintura é minha cena e meus personagens são atores que representam uma pantomima silenciosa”, disse ele.

Na primeira de suas telas-teatro, a “A carreira de uma prostituta”, de 1731, pintura feita em 6 telas, ele conta a vida edificante de uma prostituta inglesa. Em seguida, pintou “A carreira de um vagabundo”, de 1735, também dividido em 8 telas. onde ele descreve a vida, edificante e desastrosa, de um homem jovem que não sabe resistir ao jogo, ao álcool e às mulheres. O quadro-teatro seguinte é “Casamento da moda”, 1743, em 6 telas, onde ele se inspira numa comédia de John Dryden, um antigo poeta e escritor inglês.


Ele obtém sucesso imediato com esses espetáculos em tela, que ele também divulgava em gravuras sobre papel que se propagaram pelas colônias britânicas e por toda Europa. Ele foi logo copiado e pirateado por toda parte. Sabendo disso, William Hogarth desenvolve uma verdadeira campanha que acaba gerando uma lei, em 1735, que carregava seu nome, consagrada à proteção do direito autoral.

Hogart também passou a pintar retratos, inclusive retratos de grupos, além de cenas cotidianas. Ele recusou pintar cenas religiosas e históricas, pois ele tinha aversão, misturada a um pouco de xenofobia, em relação ao que pintavam os mestres franceses e italianos.

Em 1757 ele pinta um novo autorretrato, em frente a seu cavalete, numa tela sem nenhuma decoração (como seu primeiro autorretrato), onde o centro de tudo é ele e seu ofício de pintor. Seu pequeno cão não está presente aqui. Ele não queria descrever nada mais do que pintou. Na época, já havia recebido um título como pintor da parte do rei George II.

Autorretrato de 1757, William Hogarth

Gravura inspirada na série "A carreira de um vagabundo", de Hogarth

"Casamento da moda", uma das telas-teatro de William Hogarth, óleo sobre tela

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Pequena história do autorretrato - parte I

"Narciso", Caravaggio, óleo sobre tela, 1594-96, 
Ao longo da história da arte, os artistas têm se dedicado - uns mais outros menos - a se autorretratarem. São conhecidos os muitos autorretratos de Rembrandt van Rijn, o grande pintor holandês. Pode ser puro interesse em sua própria imagem, pode ser algum tipo de narcisismo, pode ser simplesmente não ter um modelo ali na frente a não ser o próprio rosto do pintor, o autorretrato tem uma longa história.

Capa do livro
Em 2011, procurando aleatoriamente algum livro na seção de artes de uma livraria em Paris, um título me chamou a atenção: “Histoire de Moi - histoire des autoportraits”, de Yves Calméjane. Comecei a ler alguns meses depois, fiz muitas anotações, guardei. Tão bem guardado, que somente nestes dias encontrei novamente minhas anotações e então vou fazer o que já devia ter feito: transformá-las em textos para este Blog.

Como é um tema bastante vasto, mais uma vez vamos dividir este tema em vários pedaços de texto, para não cansar o leitor, seguindo a ordem do livro de Yves Calméjane, mas procurando retirar dele apenas a essência do que seja importante para este Blog. Se o leitor quiser se aprofundar, pode adquirir o livro pela internet, importando-o (referência bibliográfica segue abaixo).

Tão velha quanto a primeira sombra projetada sobre o chão, tão velho quanto a água da fonte onde homens e animais mataram sua sede e onde se reflete a sua imagem, o autorretrato é o fundador do pensamento – esta afirmação é de um dos primeiros teóricos da arte e pensador do Renascimento Leon Battista Alberti, que escreveu em 1435 em seu tratado “De Pictura”: “O inventor da pintura pode ter sido esse Narciso que foi transformado em flor, porque se é verdade que a pintura é a flor de todas as artes, então a fábula que se conta sobre Narciso é muito conveniente à pintura. O que é realmente pintar, se não a arte de beijar a superfície de uma fonte?”

Cézanne também dizia que “pintar é pensar com um pincel na mão”. 

Um dos diversos autorretratos de
Rembrandt van Rijn
No caso do autorretrato, o que se pergunta o pintor quando se vê diante do espelho: quem sou eu? Como é minha imagem, quando outros me vêem? O que dizem meus olhos sobre mim? Enfim, uma infinidade de respostas são possíveis a outro tanto de infinitas perguntas. No fundo, o que busca o artista quando se pinta a si mesmo: ou a fascinação com seu próprio retrato ou a desnudação de seu próprio ser. Sempre se volta ao jogo de Narciso e se dá vida ao velho mito: Narciso, o ser prisioneiro de sua imagem descoberta no reflexo no lago de águas tranquilas e frias. Sigmund Freud elaborou o conceito ligado a este mito, o de que o Narcisismo, mesmo que faça parte da constituição psicológica de cada um de nós, levado ao extremo gera sujeitos voltados para seu próprio umbigo. Nada que seja alheio à própria imagem pessoal, desperta interesse. 

Mas olhar para a própria face também significa se conhecer a si mesmo. Ver-se de perto, olho no olho. Se desnudar. Neste sentido, podemos nos lembrar de um outro mito, o de Mársias, o músico grego que ousou desafiar o deus Apolo e teve sua pele arrancada, seu corpo exposto literalmente.

“Nós somos convidados em efeito a não mais somente ver um ser que se adora e se perde em si mesmo, mas ao contrário, um buscador de identidade, que quer se conhecer a si mesmo, despreocupado com os ecos do mundo”, observa Calméjane. Na verdade há duas espécies de sujeito narcísico: um apaixonado pela própria imagem; outro fascinado pelo mistério de seu ser. Todos os mortais comuns como nós levamos conosco algum desejo de imortalidade.

Umas das características da pintura do autorretrato é de ser uma prática cultural, diz o escritor francês. Nós não encontramos autorretratos nem no mundo hebraico, nem no mundo árabe, nem no indiano. Na China e no Japão ele apareceu mas muito recentemente. É, pois, uma prática do mundo ocidental, advinda da cultura greco-romana. Concluímos: num mundo globalizado como o nosso atual, estes - e outros - valores da cultura ocidental se espalham por todos os cantos. Nunca se produziu tanto autorretrato como nos dias atuais, com a profusão de selfies e as auto-exposições nas janelas abertas das redes sociais.

Desenho na caverna de Lascaux, França
Os primeiros retratos humanos nasceram no fundo das cavernas, “o útero da arte”. No dia 12 de setembro de 1940, quatro garotos descobriram inscrições que datam de mais de 17 mil anos, na caverna de Lascaux, considerada por um padre (Henri Breuil, grande arqueologista e especialista em Pré-História), a “capela sixtina do paleolítico superior”. Eram desenhos que representavam seres humanos e animais. Também foi encontrado um verdadeiro bouquet de mãos humanas situado a 7 metros de altura, que datam de 12 mil anos, e foi descoberto por Luc-Henri Fage e Michel Chazine nas ilhas Keneeng, em Bornéu, Indonésia.

Há 12 mil anos, no período Neolítico, teve lugar a sedentarização do homem, surgindo novas profissões: os caçadores-coletores se transformam em agricultores e começam a construir suas moradias. Desenvolve-se a religião xamânica ou totêmica, que se manifesta através de esculturas ligadas a práticas rituais funerárias. A arquitetura e o artesanato nascem. Criam-se imagens de ídolos e deuses.

Na Grécia nasce a filosofia e o autorretrato.

A arte grega se desenvolve levando em conta a medida do homem como referência para todas as coisas, conceito que influenciou os artistas do Renascimento. Os gregos não separavam ciência e filosofia: Pitágoras, Thales, Heráclito, Parmênides, Zenon, Protágoras, Górgias, Sócrates e Demócrito foram pensadores que se sucederam entre os séculos VI e IV a.C. Eles sondavam o mundo que os cercava e lançaram as bases do pensamento ocidental. Foi em Atenas que apareceu uma das primeiras experiências de Democracia, onde “cada cidadão tinha a sua cota de poder”.

"Fidias mostrando o friso do Partenón a seus amigos", 1868,
pintura a óleo de Lawrence Alma-Tadema
Também na Grécia, Fídias – um dos maiores escultores conhecidos da antiguidade - realiza o primeiro autorretrato, e pagou um alto preço por isso, pois os gregos, seus contemporâneos, consideravam isso uma superestimação de si mesmo. Fídias, Péricles e Sócrates foram contemporâneos em Atenas, no séc. V a.C. conhecido como a Era de Ouro da Grécia. A Arte, o Poder e a Filosofia encarnados nesses três homens mostram que não surpreende que o verdadeiro nascimento do autorretrato, e então da afirmação do indivíduo, tenha acontecido na pátria da Democracia e da Filosofia. Mas foram todos os três repelidos: Fídias foi preso, Péricles morreu isolado de seus contemporâneos, enquanto Sócrates foi obrigado a tomar o veneno que lhe matou.

Fídias era também geômetra e foi capaz de controlar a perspectiva a tal ponto que ele deformou as colunas do Partenón para que, através de ilusão ótica, elas dessem sempre a aparência de equilíbrio, qualquer que fosse o ponto de vista. Acusado, portanto, de usar recursos destinados aos deuses com a finalidade de honrar a figura humana, Fídias foi levado à prisão, onde morreu.

Célebre mosaico bizantino
da Basílica de Santa Sofia,
em Constantinopla, atual Istambul,
Turquia 
Séculos depois ocorreu o declínio do Império Romano e o nascimento do Império Bizantino. Sucederam-se sociedades iconoclastas (que não permitiam o uso de imagens). No século VIII, o imperador Leão III suprime de seu palácio todas as representações de Cristo. O culto à imagem estava se excedendo, e ele o proíbe. Mas o Santo Sudário - pano onde se diz estar impressa a imagem de Cristo, por Ele mesmo - se mantinha muito bem guardado. Diz a fábula cristã que uma mulher chamada Verônica teria se apiedado do sofrimento de Jesus e teria lhe enxugado o rosto com um pano. Com isso, o rosto de Cristo teria ficado impresso no tecido. Foi o primeiro autorretrato da era cristã… Mas sobre esta mulher que virou santa na igreja, nada se sabe de biografia. Talvez tenha surgido de um certo jogo de palavras meio latino meio grego: “Vera” = verdade; “Icona” = imagem: Juntas, “verdadeira imagem” = "vera icona" = Verônica. Vai saber...

Em 743, após a morte de Leão III, seu filho o imperador Constantino, continua sua política iconoclasta ainda mais agressivamente. Ele convoca um concílio de bispos onde se estuda a dupla natureza de Jesus Cristo e manda condenar à morte quem possua ou venere um ícone. Houve uma verdadeira caçada e destruição de pinturas, mosaicos, relíquias e ícones durante todo aquele império. Mas havia o contraditório também. Outros pensadores cristãos diziam que as imagens podem levar o cristão a ter uma ideia da realidade “invisível”. São Teodoro Studita, um pensador da igreja bizantina, declara: “Através da imagem do Cristo, o invisível se faz ver”. Um argumento de inspiração nas ideias de Platão, que falava da imagem como símbolo de algo. Este monge foi preso e torturado por causa de suas ideias em favor das imagens.

Foi preciso aparecer uma mulher, mais tarde, para que se recuperasse o direito ao uso de pinturas de ícones. Irene, esposa de Leão IV, assume o poder após a morte do marido e, sendo favorável aos que defendiam o uso de imagens, convocou um concílio e inverte o jogo: agora é considerado um herege quem for contra o uso de imagens… Seguindo-se o império de Leão V o Armênio, volta-se a perseguição aos defensores das imagens. Mais uma vez uma mulher assegura o fim da iconoclastia: a imperatriz Theodora. Ela convoca uma missa solene na Catedral de Santa Sofia em 843 e restaura a ortodoxia no império Bizantino. Depois de mais de 100 anos de idas e vindas e de muito sangue derramado por causa da luta contra o uso de imagens, o ícone retoma seu lugar e começa a idade de ouro de Bizâncio…

O imperador Carlos Magno, na sequência, restaura o Império do Ocidente e durante seus 46 anos de reinado se produz o que ficou conhecido como o Renascimento Carolíngeo. Baseado numa enérgica reforma religiosa, o rei que nem sabia escrever, se ancora nas igrejas e conventos, onde o ensino se enraíza e se desenvolve. Houve um verdadeiro renascimento da literatura e das artes liberais, o trivium (gramática, retórica e dialética) e o quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música). Foi aí o berço das primeiras universidades, como a de Oxford no Reino Unido. 

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continua no próximo post
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Referência bibliográfica:
Histoire de moi - histoire des autoportraits, Yves Calméjane, Thalia Editions, Paris, 2006