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segunda-feira, 13 de novembro de 2017

A arte russa do século XX - PARTE II

"Jardinagem", pintura de Natalia Goncharova, 1908
Na virada do novo século, em meio aos fervilhantes processos revolucionários, começaram a pipocar movimentos ligados às artes plásticas, à música, ao teatro, à literatura e à poesia, à arquitetura e ao cinema. 


"Sem título", Vassily Kandinsky, 1910
Até os primórdios dos anos 1930, a Rússia assistiu a explosões de movimentos artísticos de diversos matizes plenamente integrados às transformações que a sociedade russa ia tomando.  Experimentos artísticos de diversas nuances apareciam por todo lado: Vassili Kandinsky fez a primeira pintura abstrata do século; Mikhail Lariónov, Natalia Gontchárova, Vladimir Tatlin, Kuzma Petrov-Vodkin, Pavel Filónov, Kasimir Malevitch, Alexandr Rodtchenko, Vladimir Maiakovsky, entre outros, trouxeram inovações imensas não só à pintura, como à fotografia e à criação de cartazes e objetos utilitários. Sergei Eisenstein começava a produzir filmes que se tornaram referência para a indústria cinematográfica mundial.

Era uma época de experimentações, de busca de novos conteúdos, de novas formas, de novas cores e de um novo mundo. O espírito da época – o zeitgeist, como se diz em alemão – atravessava o clima social, político, intelectual e cultural desse período: espírito de rebeldia, de contestação, de revolução. Grupos se formavam, movimentos novos nasciam a cada dia.

Cartaz de agitação e propaganda
desenhado por Maiakovsky
Como os pintores realistas do século XIX, notava-se entre estes um profundo envolvimento entre vida e arte. 
- “A Revolução deu um senso de realidade às suas atividades e uma direção, longamente aguardada (...) – uma vez que não havia, em suas mentes, nenhuma dúvida que os impedisse de identificar suas descobertas revolucionárias no campo artístico com essa revolução econômica e política” diz a pesquisadora inglesa Camilla Grey, no começo dos anos 1960. 
O próprio Maliévitch afirmava: 
- “o cubismo e o futurismo foram as formas revolucionárias da arte que prenunciaram a revolução na vida política e econômica de 1917”.
A Revolução de 1917 acendeu verdadeiras fogueiras no coração dos artistas. Muitos deles tomaram em suas próprias mãos a reorganização da vida artística russa. Nos quatro primeiros anos pós-revolucionários conseguiram montar museus e escolas de arte por todo o país, assim como salas de teatro e de concerto. Enquanto criavam suas obras e redigiam seus manifestos, além de discutir suas teorias em longas e calorosas reuniões, os artistas da chamada Vanguarda Russa iam montando o arcabouço teórico que defendia - como Vladimir Maiakovski, Tatlin e mesmo Kandinsky e Malevitch - que, para o novo tempo que surgia naquele país, havia que se criar a nova arte, formalmente também revolucionária.

(Faço uma observação aqui: do começo do século XX e até por volta de 1925, o movimento que depois se tornou conhecido como Vanguarda Russa emergiu e se manteve em atividade artística, acompanhando todo o processo revolucionário de 1905 até à Revolução Socialista de 1917. Não me deterei, aqui neste texto, a falar sobre a Vanguarda, uma vez que já escrevi vários artigos sobre o tema que você pode ler, acessando os links abaixo).

Sendo assim, vamos diretamente a um movimento cultural que também foi muito importante naquele período:

O PROLETKULT

Anatole Lunacharsky
Em 1917, no processo revolucionário, oficializou-se o movimento pela cultura proletária, o Proletkult. Anatole Lunacharsky, teórico revolucionário e crítico de arte, havia sido nomeado Comissário do Povo para a Educação, cargo que exerceu até 1929. Juntamente com Alexandr Bogdanov e Mikhail Gerasimov havia participado da criação do Proletkult, movimento que vinha sendo gestado desde a Revolução de 1905. Eles defendiam a ideia da criação de uma nova cultura soviética, incluindo a defesa de uma estética marxista para as artes, uma estética de classe. Desejavam fundar uma arte verdadeiramente proletária, livre de todos os vestígios da cultura burguesa. Eles defendiam que a Revolução deveria ir além da criação de uma nova ordem político-social: ela deveria criar também uma nova ordem cultural. Discutia-se o significado da cultura e o poder da revolução em modificá-la, assim como as consequências que essa mudança teria para a nova ordem social.

O Proletkult foi o centro desses debates. Esta organização juntava clubes de trabalhadores, comitês de fábricas e sociedades educativas. No seu auge, em 1920, o Proletkult chegou a reunir 400 mil membros organizados em cerca de 300 grupos distribuídos em todo o território soviético.

Capa de um periódico do
Proletkult, 1922
Envolvidos em atividades culturais, os membros ligados ao Proletkult patrocinavam o surgimento de clubes de artistas proletários, promoviam séries de palestra, aulas artísticas e até encenavam pequenas peças de teatro. Também abriram bibliotecas abastecidas com os clássicos russos, fundaram jornais e revistas onde os aspirantes a escritores publicavam seus primeiros poemas cheios de imagens sobre a vida na fábrica. Além disso, davam cursos de alfabetização e palestras sobre ciências e artes nas fábricas. 

Anatole Lunacharsky, escolhido como Comissário do Povo para a Educação, ofereceu ao Proletkult orçamento estatal para realizar seu trabalho, inicialmente utilizado para a criação de uma estrutura para a entidade: uma sede própria na avenida principal de Moscou, a criação de um periódico intitulado “Cultura Proletária”, assim como a manutenção de sub-sedes nas províncias, onde os círculos locais ocuparam edifícios públicos e antigas casas senhoriais para suas operações.

Os defensores do Proletkult acreditavam que a transformação cultural rápida e radical era crucial para a sobrevivência da revolução. Eles insistiam com o novo Estado que apoiasse programas independentes de artistas e cientistas, assim como programas sociais que expressassem os valores e princípios da classe trabalhadora vitoriosa. Um dos valores fundamentais defendidos pela organização era o da criação autônoma: as ideias sobre arte, ciência e vida diária deveriam emergir dos próprios operários. Outro princípio defendido por eles era a autonomia do Proletkult em relação ao Partido Comunista. Mas Lenin não era favorável à criação nem dessa “nova cultura” e nem da autonomia dessa entidade. 

Cartaz de propaganda para o filme
"O Encouraçado Potenkim",
de Sergei Eisenstein
Entre 1918 e 1920 ocorreu a Guerra Civil, onde anti-revolucionários apoiados por países capitalistas contrários à Revolução, submeteram a Rússia a uma situação extremamente caótica. A fome era generalizada e o poder bolchevique ainda tênue. Ainda assim, o Proletkult não paralisou suas atividades, atuando no combate ao analfabetismo, oferecendo aulas e palestras em escolas, fábricas e universidades; artistas criavam cartazes para apoiar a causa bolchevique na Guerra Civil, enquanto outros se concentraram na teoria da cor; em muitas oficinas de literatura, os participantes aprendiam a escrever poemas e histórias centradas no trabalhador, relatando suas experiências na fábrica; outros aprendiam a recitar os clássicos russos; outros ainda criavam novas letras revolucionárias para melodias familiares do seu próprio folclore, enquanto artistas da área da música, da dança e das artes plásticas faziam experimentos estéticos… Tudo isso acontecia em movimentos heterogêneos - não somente organizados pelo Proletkult - que refletiam o mundo cultural dos primeiros anos soviéticos.

No final da Guerra Civil, com a vitória dos bolcheviques, o governo central precisava avaliar qual seria a melhor forma para gastar seus escassos fundos. O país todo passava fome. Os recursos eram escassos, o dinheiro curto. O Proletkult foi reorganizado, por esses motivos, mas também por causa das ideias de seus líderes de se manter independentes da direção do Partido, em um momento em que a Revolução exigia a mais completa vigilância de todas as atividades. Lenin resolveu assumir pessoalmente a organização, denunciando sua liderança e seus objetivos. Ele escolheu como foco do trabalho da organização aquele que tendia à experimentação e à vanguarda. O rumo que o Proletkult havia tomado anteriormente, Lenin classificou como “absurdo pequeno-burguês”. 

Arquitetura construtivista, 1926.
Arquiteto: Ilya Golosov.
Os operários ainda eram minoria na Rússia e o governo agora precisava alcançar a imensa maioria dos camponeses. Com a implantação, em 1921, da Nova Política Econômica - a NEP - organizações como o Proletkult que visavam (pelo menos teoricamente) servir apenas ao proletariado estavam defasados. O governo cortou o orçamento e todas as atividades que não juntassem grande número de pessoas foram suspensas. Mas alguns grupos de artistas se mantiveram em atividade, tendentes às experimentações de vanguarda, como é o exemplo do diretor de cinema Sergei Eisenstein, que liderava oficinas de teatro em Moscou. Também havia aqueles círculos onde se praticava experiências musicais, onde artistas projetavam cartazes, capas de livros e emblemas sindicais... Os artistas construtivistas, como Tatlin e outros, afirmavam o surgimento de uma nova arte, que estava seguindo em acordo com os ideais revolucionários. Foram muitas as associações artísticas e culturais reafirmando o papel de uma cultura revolucionária que surgiram durante a década de 1920. Alguns, inclusive, aludiam à crítica de Lenin aos antigos líderes do Proletkult.

De forma reduzida, o Proletkult durou até 1932, quando o governo soviético, agora sob a liderança de Joseph Stalin (Lenin morreu em 1924) dissolveu todas as organizações culturais independentes, particularmente aquelas que reivindicavam representar o proletariado. O novo governo planejava grandes associações culturais dirigidas pelo Partido Comunista. Na sequência, nasceria o "Realismo Socialista", uma tentativa de nova estética apresentada como expressão de um estado de desenvolvimento histórico mais avançado, um movimento em direção a uma sociedade sem classes. 

Os novos líderes voltaram a defender uma visão de cultura mais ligada às do Proletkult e à visão estética de Anatole Lunatcharski. O debate sobre o papel da arte estava de volta ao centro do poder soviético.

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CONTINUA..........
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SOBRE A VANGUARDA RUSSA, LEIA AQUI:
- Vanguarda russa, as raízes de um novo tempo
- Arte em construção, o sonho de Tatlin - Parte I e II

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Os demônios que assustavam Vrubel


As pinturas de Mikhail Vrubel foram umas das maiores inspirações para os artistas da vanguarda. Vrubel, artista talentoso e trágico, conseguiu transmitir sua complexa vida interior através de seu trabalho incomum.

"Demônio derrotado", Mikhail Vrubel, 1902, Galeria Tretyakov
Mikhail Aleksandrovich Vrubel nasceu em 17 de março de 1856, em Omsk, província da Sibéria. Seu pai serviu no exército e participou da guerra da Crimeia, se tornando depois advogado militar. Devido ao trabalho paterno, a família teve que mudar de residência várias vezes, vivendo em Omsk, Astrakan, São Petersburgo e Odessa.

Mikhail Vrubel, 1898
Vrubel teve mais três irmãos. Sua mãe, Anna Basargin, morreu de tuberculose quando ele tinha apenas 3 anos de idade. Ele mesmo tinha a saúde frágil e somente começou a andar no mesmo ano da morte da mãe. Já adulto, Mikhail lembrava dela doente deitada na cama, que ele expressou em vários desenhos onde incluía crianças, cavalos e outras figuras da sua imaginação.

Ele começou a frequentar aulas de desenho e pintura com 8 anos de idade, em Saratov, inicialmente. Em Odessa, concluiu sua educação escolar e depois entrou na Universidade de São Petersburgo, como aluno do curso de Direito. Paralelamente, frequentava aulas na Academia de Belas-Artes onde se tornou amigo de Valentin Serov, mais de dez anos mais velho.

Assim como seu pai, após se formar em Direito foi servir ao exército, mas trabalhando na administração da marinha. Mas era insuportável para ele a rotina diária de trabalho na marinha. Largou tudo e entrou para a Academia. Logo seus mestres perceberam seu estilo pessoal e interpretação original de temas clássicos. Assim como Ilya Repin e Vassily Surikov, estudou com o mestre Chistyakov, grande desenhista e admirador do pintor italiano Mariano Fortuni.

O método de ensino de Chistyakov, dentro da Academia e sendo ele mesmo um artista acadêmico, era o de dar liberdade individual para cada aluno. Segundo Camilla Gray, enquanto Repin seguia um caminho mais realista, Mikhail Vrubel mantinha seu estilo próprio, muitas vezes discordando dos pontos de vista dos colegas que consideravam a arte como uma forma de retratar a vida real:

Autorretrato, 1885
O artista não deveria tornar-se escravo do público: ele próprio é o melhor juiz dos seus trabalhos, cujo significado lhe cumpre respeitar e não rebaixar a um truque publicitário… Roubar aquele encantamento que diferencia uma abordagem espiritual de uma obra de arte daquela com que se olha uma página impressa aberta, pode atrofiar a capacidade de encantamento: e isso é privar o homem da melhor parte da sua vida…”

Gray também diz que Vrubel passou a estudar a teoria estética do filósofo alemão Kant, ele que era um leitor ávido dos livros clássicos, que lia em latim, língua que ele dominava, coisa rara na Rússia.

Em 1884, foi para Kiev, a convite do professor Andrian Prakhov, para trabalhar na restauração de ícones e de afrescos antigos e criar novas composições para a igreja de São Cirilo, que havia sido construída no século XII. Por causa desse trabalho, passou um ano e meio na cidade italiana de Veneza estudando a arte dos pintores medievais, onde descobriu a cor dos pintores venezianos e se impressionou muito com elas. Na volta a Kiev, usou estes conhecimentos para criar quatro ícones para a igreja.

Ícone de Nossa Senhora, Mikhail Vrubel,
igreja de São Cirilo, Kiev 
Vrubel sabia que essa “co-autoria” com os mestres do século XII era completamente inédita entre os artistas do século XIX. Foi só depois de 1880 que alguns historiadores começaram uma pesquisa da tradição da pintura de ícones, assim como de traços da cultura antiga da Rússia. Mas essa pesquisa, que começou no campo arqueológico, acabou resgatando, em alguns artistas, a ligação com sua tradição cultural. Vrubel, de acordo com o estudioso N.A. Dmitriev, “se sentia cúmplice desses antigos mestres e seu fervoroso trabalho, e tentou ser digno deles”.

Andrian Prakhov também o convidou para criar pinturas para a catedral de São Vladimir, construída em 1882. Prakhov reuniu uma equipe de pintores, incluindo Vrubel. Este dedicou bastante tempo fazendo esboços e estudos para as pinturas de parede, como “Ressurreição”, “Lamento” e “Anjo com a vela”. Mas seus esboços não foram aprovados pela comissão da igreja, que consideraram suas obras muito incomuns e sem correspondência com os cânones ortodoxos. Dizem alguns especialistas que, se as pinturas de Vrubel tivessem sido aprovadas, a catedral teria um aspecto muito diferente, “mais místico”, “mais cósmico”.

Seus biógrafos contam que ele foi demitido da equipe do professor Prakhov porque tinha se apaixonado pela esposa deste (conta-se que ele usou ela, Emilia, como modelo para pintar o ícone de Nossa Senhora na igreja de Kiev). Foi imediatamente substituído por outro grande pintor, Victor Vasnetsov. Mas entristecido, Vrubel pediu a Prakhov que pelo menos o deixasse fazer os trabalhos mais simples; então apenas alguns ornamentos dessa catedral foram pintados por ele. E seu nome nem mesmo aparece na lista daqueles que trabalharam na pintura da catedral…

"Anjo com a vela", Mikhail Vrubel,
esboço para a catedral de
São Vladimir, 1887
 
Após estas experiências, Vrubel descobriu a diferença da pintura bizantina em relação à arte em três dimensões. Sobre a pintura bizantina, ele observou: “Toda a sua essência reside no arranjo ornamental da forma que enfatiza a platitude da parede”. E isso feito em linhas, de forma bidimensional, observava.

Em 1885 foi para Odessa, mas não encontrava quem lhe encomendasse nada e passava grande necessidade. Seus problemas mentais começaram a se intensificar, o que também interferiu para ser rejeitado na equipe principal de pintores. Esses sintomas se agravavam em diversos períodos e ele, que era profundo admirador da imagem de Jesus Cristo, passou a ter uma espécie de atração e obsessão, que foi crescendo ao longo de sua vida, pela imagem do Demônio. Satanás foi o tema dominante em numerosas de suas obras.

Em seu período de Kiev, também pintou um autorretrato, “O conto oriental” e “Retrato de uma menina contra um tapete persa”, entre outras obras. Nestas pinturas, vê-se como ele era hábil com cores saturadas e com motivos florais. Seu modo de trabalhar era de forma muito concentrada. a Pintura era sua vida, mesmo em tempos de grande carência de recursos.

Em 1889 se mudou para Moscou.

Em 1890, seu amigo Valentin Serov o apresentou a Savva Mamontov, na mansão de Abramtsevo, coisa que significou uma “virada na vida artística de Vrubel”. Criou vários cenários para o teatro de Mamontov, como o pano de fundo “Noite na Itália”. Em 1890 passou a fazer esculturas em cerâmica sobre temas da mitologia russa e eslava. Ele passou a ser o chefe da oficina de cerâmica de Abramtsevo. Mamontov o convidou para acompanhá-lo em uma turnée pela Europa, passando por Roma, Florença, Veneza, Milão e Paris. Nesta viagem, Vrubel pintou algumas aquarelas, técnica que dominava muito bem e que usou para fazer inclusive retratos.

Em 1896, Mikhail Vrubel se casou com a cantora de ópera Nadezhda Zabela. A beleza de sua esposa lhe inspirou uma série de obras, e seu rosto pode ser reconhecido em obras como “Hansel e Gretel” (1896), “Princesa Volkhova” (1898) e “A princesa e o cisne” de 1900.

"Hamlet e Ofélia", Mikhail Vrubel, 1884
Com muito gosto pela leitura, Mikhail Vrubel fez várias interpretações gráficas de obras de Shakespeare, Lermontov e Pushkin. Evidentemente, se sentia atraído pelas imagens dramáticas como Hamlet e Ofélia, e obviamente pelo “Demon”.

Seu estado emocional era sempre instável. Sofria alterações de humor, se irritava facilmente, suas reações emotivas eram dramáticas. Em 1901, sua saúde mental foi piorando e, avaliado pelos médicos, estes concluíram que ele era “incurável”. Mesmo assim não parava de pintar e em 1902 terminou seu quadro “Demônio derrotado”. Conta-se que ele era obcecado com esta pintura e até mesmo quando ela estava exposta num Salão em São Petersburgo, ele ainda fazia alterações na imagem, indo vê-la até “40 vezes num único dia”.

Mais os problemas mentais se intensificavam mais essa pintura assombrava-o. Ele dizia: “é espírito que une em si as aparências masculina e feminina, um espírito quase maligno quando sofre e é magoado, mas também um ser poderoso e nobre”.

Em 1903, Vrubel sofreu um grande golpe, do qual jamais se recuperou: a morte de seu filho. A partir de então passava ainda mais tempo internado em clínicas de saúde mental. Por causa de uma sífilis foi perdendo a visão e seu último trabalho, um retrato de Valery Bryusov, foi pintado quando ele praticamente não enxergava mais nada… Viveu seus últimos quatro anos de vida cego. Imagine-se a tragédia que significa se tornar cego para um pintor!...

"Retrato do meu filho", Mikhail Vrubel
Mikhail Vrubel faleceu em 1910 após ter deliberadamente ficado muitas horas do lado de fora da clínica onde estava internado, exposto ao frio do inverno russo. O resultado foi uma profunda pneumonia que o matou. Seus biógrafos chegam mesmo a falar que foi “praticamente um suicídio”.

As pinturas de Mikhail Vrubel foram umas das maiores inspirações para os artistas da vanguarda “durante os vinte anos seguintes”. Diz Camilla Gray: “Embora não tivesse formulado nenhum vocabulário pictórico novo e não houvesse fundado nenhuma escola, tornou possível as experimentações das ousadas décadas seguintes”. Vrubel, artista talentoso e trágico, conseguiu transmitir sua complexa vida interior através de seu trabalho incomum.

Sua obra mostra também um aspecto do mistério presente na arte russa, desde os primórdios. Tendo uma tradição de pinturas de ícones, voltadas a retratar o mundo espiritual, a Rússia - pode-se dizer - apresenta a maior variedade estilística que qualquer país possa ter tido, passando pela pintura acadêmica, pela realista, pela simbólica, pela pintura abstrata de Vassily Kandinsky e Kasimir Malevich, chegando à Vanguarda russa com seus inumeráveis “ismos” e até ao Realismo Socialista…

Mantendo o meu foco atual de pesquisa na arte russa, quanto mais me aprofundo neste estudo mais me surpreendo com a imensa capacidade criativa desse povo que, em 1917, abriu uma perspectiva tão nova e tão grande para os povos do mundo inteiro, mudando a história ocidental desde então.

A arte russa, dentro da arte mundial - em especial da Ocidental - ainda não recebeu o destaque que merece na História da Arte e seus livros, seus textos, seus estudos. Uma boa parte disso deve-se ao fato da Revolução de Outubro ter feito tremer as bases do establishment capitalista que, temeroso de tão alta influência, preferiu fazer verdadeiras campanhas que embotassem as mentes em relação à cultura russa. Mas este pequeno esforço que tenho feito durante esta minha pesquisa, disponibilizando-a neste Blog, talvez ajude a trazer alguma luz aos que se interessem pelo tema…

Aguardem, pois vem muito mais pela frente.


"Demônio sentado", Mikhail Vrubel, 1890, Galeria Tretyakov
"A manhã", Mikhail Vrubel, 1897, Museu Estatal Russo
"Lamento", Mikhail Vrubel, 1887, esboço em aquarela para a igreja de Kiev
"O vôo do demônio", Mikhail Vrubel, aquarela, 1891
"Lilás", Mikhail Vrubel, 1900, Galeria Tretyakov
"Ezrael, Serafim de 6 asas", Mikhail Vrubel, 1904, Museu Estatal Russo
"A ostra e a pérola", Mikhail Vrubel, 1904, Galeria Tretyakov
Retrato de Mikhail Vrubel, por seu amigo Valentin Serov

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Arte em construção, o sonho de Tatlin - parte I


Como neste ano de 2017 se comemora uma data muito importante da história mundial, a Revolução Soviética de 1917 na Rússia, iremos dedicar este ano a falar da arte e da cultura russa neste blog. Os assuntos são muito vastos e são riquíssimos em conteúdo! 

De artistas antigos como Andrei Rubliev, o pintor de ícones, à nova safra de jovens artistas estudantes da Academia Ilya Repin de São Petesburgo, passaremos por todos os assuntos possíveis de serem alcançados em meu trabalho de pesquisa para este blog, levando-se em conta que o material de que dispomos aqui no Brasil, e em São Paulo, onde moro, são um pouco escassos. Faremos o possível para apresentar uma boa mostra do que significa para o mundo ocidental a imensa riqueza que a cultura russa trouxe ao mundo, em especial no século XX. 

Iniciaremos com um primeiro artigo sobre o Construtivismo, que acabei de escrever e será publicado na revista Princípios, da Fundação Maurício Grabois. Aqui, o artigo será dividido em duas partes, sendo que a próxima será publicada nesta segunda, dia 30 de janeiro.


"O ciclista", Natalia Goncharova, 1913, pintura cubo-futurista
Arte como construção, o sonho de Tatlin

Entre o final do século XIX e 1932 aconteceu na Rússia o aparecimento de muitas escolas e movimentos artísticos e intelectuais. Pela primeira vez na história, um grupo de jovens artistas viu concretizar sua visão de arte em termos práticos e com a grandiosidade patrocinada pela Revolução de 1917. Vladimir Tatlin, uma das figuras centrais da chamada “vanguarda russa”, inspirou o nascimento de um destes movimentos, o Construtivismo.

A história do povo russo vem de muito longe, quando povos eslavos começaram a se aglomerar em torno de  Kiev, cidade que hoje se situa na Ucrânia. Os Rus de Kiev, como eles se chamavam, passaram a ocupar uma região que, em termos atuais, alcança toda a Bielorrússia, uma grande parte da Ucrânia e o centro e noroeste da Rússia.

Desenho representando o que seria a antiga Kiev
Na passagem para o século XX, ainda era um país muito atrasado. A imensa maioria de sua população vivia nos campos; suas cidades eram aglomerados labirínticos onde viviam os pobres em casas mal iluminadas, com comida escassa. O regime de servidão somente tinha sido abolido em 1861 e o analfabetismo era generalizado. Os romances de Dostoievski fazem um bom retrato do que era a vida nessa Rússia.

Mas antes ainda, em 1682, tomou posse como czar, o homem que tinha mais de dois metros de altura, Pedro, o Grande. “O reinado de Pedro, o Grande, representou a maior transformação da Rússia antes da Revolução de 1917”, diz o professor de história da Universidade de Yale, Paul Bushkovitch em seu livro “História Concisa da Rússia”. Acrescenta: “Ele realizou em 36 anos uma mudança na cultura russa que levou séculos na Europa Ocidental”. E grande parte de seus feitos diz respeito a ter trazido para a Rússia muito da cultura europeia.

Ponte sobre o rio Neva, 1860
Uma de suas reformas foi a construção da cidade de São Petersburgo em 1703, nos pântanos do rio Neva, no golfo da Finlândia. A construção de São Petersburgo “foi planejada, projetada e organizada inteiramente por arquitetos e engenheiros estrangeiros, trazidos da Inglaterra, França, Holanda e Itália”, diz Marshall Berman em “Tudo o que é sólido desmancha no ar”. Pedro construiu São Petersburgo nos moldes das cidades europeias, num padrão de planejamento urbano advindo do Renascimento. O desenho geométrico e retilíneo dava “ao panorama urbano uma aparência de amplitude horizontal infinita”.

Com suas linhas retas em meio à sinuosidade caótica das velhas cabanas da aldeia anterior, São Petersburgo era considerada por muitos autores como “produto do pensamento” Iluminista. Criou-se, e acentuou-se nas décadas seguintes, a polaridade Moscou - São Petersburgo. Petersburgo representando as forças estrangeiras e ocidentais, a modernidade, a civilização, o novo; Moscou, por seu lado, a tradição, o sagrado, a nacionalidade, o antigo. Este dualismo também alcançava as mentes da intelligentzia russa, chegando ao final do século XIX com duas grandes correntes antagônicas: os Ocidentalistas, defensores da modernidade e os Eslavófilos, defensores da tradição e da cultura nativa.

Selo em homenagem a
Dostoiévsky, com uma
reprodução de pintura de
Vasily Perov
A Literatura era o “campo de batalha da ideologia política e cultural”, como aponta Paul Bushkovitch. As revistas literárias de Puchkin e Senkovski guerreavam entre si sobre suas opiniões de autores russos ou estrangeiros como Goethe e George Sand. O crítico literário Vissarion Belinski, que fazia parte do movimento Ocidentalista, “passou a ser visto na Rússia como o arquétipo do crítico ‘engajado’, que julgava as obras de arte segundo critérios amplamente utilitaristas e de acordo com sua relevância para a reforma da sociedade russa”.

Ele se inspirava nas ideias de Hegel, que dizia que “a arte era uma das manifestações da Ideia na história, junto com a filosofia ou o desenvolvimento do Estado”. A arte que não tinha esse fim utilitarista era insignificante e ruim. Ele considerava que a sociedade russa deveria se aproximar do padrão civilizado do Ocidente - idealizado, é claro. Com esse ponto de vista, Belinski - que se alinhava com os socialistas utópicos - rejeitava totalmente a antiga cultura russa e inaugurava também uma forma de pensar a arte que mais tarde foi utilizada pelos Construtivistas.

Mas em 1863, treze estudantes da Academia de Arte abandonaram a instituição. Ivan Kramskoi e seus amigos se opunham às condições da premiação anual da academia e formaram a “Associação Livre dos Artistas”. Eles rejeitavam os modelos acadêmicos, as regras e convenções da técnica ensinada naquela escola, importados em grande parte da Academia Francesa. Para esses jovens rebeldes, a pintura que se ensinava lá nada tinha a ver com a realidade russa, “que mudava tão rápido em torno deles nos anos 1860”, diz Bushkovitch. Eles e outros artistas pensavam que se tinham que se inspirar em algum modelo europeu, era no pintor francês Gustave Courbet ou nos realistas alemães. Nessa década a pintura russa realista retratava a vida em seu próprio país, como o fizeram Ilya Repin, Vladimir Stasov e Isaak Levitan.

Entre aquelas duas grandes correntes de pensamento (Eslavófilos e Ocidentalistas) foram se gestando miríades de movimentos artísticos, que também acompanhavam o desenrolar da luta política e ideológica que levou à Revolução de Outubro de 1917. Do final do século XIX até à primeira década de 1920 os debates em torno desta questão - a assimilação ou não da cultura europeia - eram muito intensos dentro do mundo artístico russo. Mas uma grande parte dos artistas, em contato com as novidades francesas se deixaram influenciar por elas e levaram as novas estéticas artísticas às suas últimas consequências, inspirados pelo espírito revolucionário que incendiava o país e criava esperança no futuro. “Una de las metas esenciales de todos los artistas de principios del siglo fue incorporar lo experimental - tan característico de los ámbitos científicos - al mundo del arte”, explica Lourdes Cirlot em “Las vanguardias artísticas en el siglo XX”.

"O galo e a galinha", pintura em estilo
raionista, de Larionov, 1912
Matisse, Cézanne, Manet, Gauguin e depois Picasso, com seu Cubismo, tiveram grande influência sobre os artistas russos, que também buscaram formação na França. Também mantiveram uma constante interrelação com correntes estéticas diversas, da França e Alemanha. Os franceses já haviam inaugurado a pintura Impressionista, que depois gerou outros movimentos como o Pontilhismo e o Fauvismo. Na Alemanha, o movimento “Die brücke” (A ponte) já dava os primeiros passos do Expressionismo alemão.

Os italianos, em 1909, inauguraram o Futurismo, movimento que foi liderado por Filippo Marinetti, que depois se rendeu ao Fascismo. Do Futurismo italiano e do Cubismo francês, os russos criaram o movimento conhecido como Raionista, no começo do século XX. Em 1914, Kasimir Malevich cria na Rússia o seu Suprematismo, corrente que abria espaços largos para a Abstração, que já havia sido iniciada por Vassili Kandinsky. Outros artistas russos já haviam passado pelo Raionismo, pelo Simbolismo…

"Tribuna de Lenin", projeto de
El Lissitzky, 1920
Veio a Revolução de 1917. Naqueles tempos de radicalismos, para “os artistas, este era o sinal para a exterminação da odiada velha ordem e a introdução de uma nova, baseada na industrialização”, diz Camilla Gray em seu livro “O grande experimento - Arte russa - 1863-1917” (Camilla Gray foi uma bailarina inglesa que visitou a URSS pela primeira vez em 1955 e deixou como legado uma rica pesquisa sobre a vanguarda russa). “A revolução deu um senso de realidade às suas atividades e uma direção, longamente aguardada, às suas energias - uma vez que não havia, em suas mentes, nenhuma dúvida que os impedisse de identificar suas descobertas revolucionárias no campo artístico com essa revolução econômica e política”.  

A Revolução acendeu verdadeiras fogueiras no coração dos artistas. Malevitch, Rodtchenko, Maiakovski e Tatlin, dentre muitos outros, tomaram em suas próprias mãos a reorganização da vida artística russa enquanto anunciavam que estava terminada a fase da “pintura de cavalete” que eles associavam ao sistema burguês: agora eles tinham as ruas para pintar, as praças e pontes, como arena de suas atividades artísticas.

Nos quatro primeiros anos pós-revolucionários conseguiram montar museus e escolas de arte por todo o país, assim como salas de teatro e de concerto. Foram eles que decoraram as ruas para as celebrações de Primeiro de Maio e do aniversário da Revolução. Artistas, atores, escritores, músicos e compositores se empenharam em organizar espetáculos de arte para festejar essas datas. “Trens decorados com temas revolucionários foram enviados para o front levando notícias da Revolução política e artística para todos os cantos do país”, conta Camilla Gray.

Vladimir Tatlin
Em 1919, o Departamento de Belas Artes encomendou a Vladimir Tatlin o “Monumento à III Internacional”. Era um projeto para ser erguido no centro de Moscou.Tatlin trabalhou neste projeto de 1919 a 1920, construindo um modelo em madeira e metal. Esta obra foi exibida no VIII Congresso dos Sovietes em dezembro de 1920. Foi este o primeiro símbolo do movimento Construtivista, que se tornou modelo para as esculturas de Naum Gabo e os móbiles de Alexander Rodtchenko.

Camilla Gray, que teve acesso aos esboços e projetos, assim descreve o “Monumento à III Internacional”, de Tatlin:

O monumento de Tatlin era para ter duas vezes a altura do Empire State Building. Seria executado em ferro e vidro. Uma armação espiral em ferro apoiaria um corpo formado por um cilindro de vidro, um cone de vidro e um cubo de vidro. Esse corpo seria suspenso sobre um eixo assimétrico dinâmico, como uma Torre Eiffel inclinada, que prolongaria, assim, seu ritmo espiral, espaço adentro. Tal ‘movimento’ não iria limitar-se ao desenho estático. O corpo do próprio Monumento mover-se-ia literalmente. O cilindro deveria girar sobre seu eixo uma vez por ano: a esta parte do edifício seriam destinadas atividades tais como: palestras, conferências e reuniões do congresso. O cone deveria completar uma revolução uma vez por mês e abrigar atividades do executivo. No topo, o cubo deveria completar uma volta completa em seu eixo uma vez por dia, e ser um centro de informações. Iria constantemente transmitir boletins, proclamações e manifestos - por telégrafo, telefone, rádio e alto-falante. Como traço singular, uma tela ao ar livre, iluminada à noite, deveria constantemente retransmitir as últimas notícias; uma projeção especial deveria ser instalada para que, em tempo nublado, pudesse lançar palavras no céu, anunciando o lema do dia.”

O projeto nunca foi executado. Os tempos eram de profunda penúria, pois a Rússia estava passando por um período de muita fome, causada pelos longos anos da guerra civil e dos ataques estrangeiros à recém-inaugurada nação soviética. Mas os artistas construtivistas eram férteis na criação de seus projetos.

Maquete do Monumento à III Internacional, de Vladimir Tatlin,
realizado entre 1919 e 1920
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