quarta-feira, 24 de abril de 2019

David Leffel, o artista da luz

Natureza-morta, David Leffel, óleo sobre tela
Todos os que me conhecem mais de perto, sabem da minha grande admiração pelo artista norte-americano, que hoje tem por volta de 85 anos de idade: David Leffel. Reproduzo abaixo o artigo introdutório ao livro "Oil painting, secrets from a master", de Lynda Cateura, que foi sua aluna. 

Neste artigo, de autoria de outro artista, Gregg Kreutz, podemos saber um pouco mais sobre o pensamento pictórico deste grande mestre.

LEFFEL, O ARTISTA
Autorretrato, David Leffel,
óleo sobre tela

Fui conhecer David Leffel pessoalmente, após ter visto suas pinturas. Para mim, esse momento descrevo como uma espécie de  choque... Suas pinturas parecem a princípio elegantes mas austeras - e uma das características pessoais mais marcantes de David é sua aconchegante simplicidade. Ele adora uma boa história, conta piadas maravilhosas e é essencialmente uma pessoa calorosa. Se houver alguma aparente disparidade entre David e suas pinturas, isso, no entanto, é uma ilusão. Elas são impressionantes, mas, como ele, também são acessíveis e tocantes.

Lembro-me de ir ao estúdio de David pela primeira vez. A sala estava tão pouco iluminada que, seu interior, incluindo meu anfitrião, mal se distinguia. Quando meus olhos se ajustaram, no entanto, vi armações, cavaletes, adereços de natureza-morta e pinturas espalhadas pelo estúdio. No centro de tudo, quase diretamente sob a clarabóia, havia uma velha mesa frágil com algumas cebolas e uma velha panela sobre ela.

Havia uma pintura ao lado da mesa e quando olhei para ela, fiquei chocado! Em vez de retratar a coleção aleatória de objetos que vi, a pintura forçou-os a desempenhar papéis em um drama convincente de luz. As cebolas emergiam de uma sombra escura, ficando mais claras e leves, de certo modo levando a luz ao ponto focal da panela amassada. Com rico impasto e cor quebrada, o pote destacava-se majestosamente contra o fundo escuro, amassado e enferrujado, quase um heróico sobrevivente. A pintura não alterara nada na configuração. Na verdade, parecia mais real. Mas de alguma forma, Leffel transformou o temporário em algo eterno.

Todas as pinturas de Leffel têm essa qualidade. Seja qual for o assunto, ele consegue encontrar algo para tirar a imagem do literal para o reino da poesia. Cada pintura é sobre algo muito diferente de suas simples aparência. Embora um autorretrato, por exemplo, possa ser incrivelmente fiel à aparência de David, também pode evocar uma resposta mais profunda. Estou pensando em uma que mostra David olhando atentamente para fora de uma escuridão sombria, seu rosto apenas parcialmente iluminado, sugerindo uma busca interior. A iluminação sombria descreve a busca interna. A obscuridade e intensidade de seu olhar sugerem a dificuldade de tal busca.


"A cegueira de Sansão", Rembrandt, 1636, Frankfurt, Alemanha
Esse tipo de busca do uso funcional da luz é uma das qualidades mais distintivas da pintura de Leffel. A luz leva o espectador em direção à imagem central. Quando atinge este ponto focal, ela é geralmente mais intensa, e assim o olho pode descansar naturalmente.

A luz, nas mãos de David, torna-se a ferramenta com a qual ele dirige o olho para o que é  significativo. Este conceito (ser conduzido através da pintura pela luz) é um dispositivo que Rembrandt empregou consistentemente. Rembrandt é um exemplo óbvio de um grande artista cujas pinturas sempre usaram a luz para ajudar a contar a história. Em sua pintura sobre a cegueira de Sansão, por exemplo, as lanças, os soldados e a luz estão todos voando em direção aos olhos dele com uma violência vertiginosa. A luz não apenas ilumina a cena - é um participante ativo no drama.

Leffel não faz segredo de sua admiração por Rembrandt, e em muitos aspectos pode ser visto como um herdeiro daquele grande mestre.

Uma pintura realista que combina precisão perspicaz com beleza, preenche uma das nossas mais profundas esperanças - de vivermos em um mundo harmonioso. As pinturas de Leffel consistentemente fazem essa afirmação, pois ele é um artista supremo.

Gregg Kreutz
Artista de Nova York, 1984

Natureza-morta, David Leffel, óleo sobre tela
Natureza-morta, David Leffel, óleo sobre tela
Autorretrato no ateliê, David Leffel, óleo sobre tela
Estudo em óleo sobre tela, David Leffel

quinta-feira, 21 de março de 2019

Distopia

"O jardim das delícias" (detalhe), Bosch
Ó tempora! Ó mores!...

Era para falar de Bosch, Hieronymus Bosch... O pintor holandês do século XV que acabou profetizando estes dias terríveis em que vivemos. Tragédias, violência, fascismo, intolerância. De um lado. Do outro, depressão, solidão, competição.

Então sim, estarei falando de Bosch. Mas através de suas imagens, como verão.

O texto é um desabafo neste começo de outono... 

Tempo de imediatismos, tempo de frustração. Tempo em que se busca as aparências, as meias-verdades, a perigosa "pós-verdade". Tempo de dar opinião egoisticamente desenfreada. Tempo repleto de palavras, imagens, coisas, objetos. Tempo de guerras híbridas...

Tempo de distopia. Tempo fúnebre, tempo cinza. Tempo em que serpentes depositam ovos recheados de mais distopias.

E o Vazio por todo lado…

Contraditoriamente, prega-se - e vende-se - a felicidade em estado de euforia. A euforia leva o indivíduo para fora de si, este mesmo que se entope de antidepressivos (nunca se ingeriu tantos). Também leva outros tantos a frequentar as lojas que o consumismo aponta. Tem valido a pena entupir de gente shopping centers e igrejas neopentecostais. Nos primeiros, vitrines brilhantes buscam iluminar as aparências e tentam levar brilho onde ele não existe. E não ilumina, porque é falso. Nas igrejas, massas de cordeiros manipulados são dirigidos para fora da realidade, para dar à realidade de suas vidas um certo ar de potência. 

E a violência cresce.

Nestes tempos, a solidão reflexiva é abominada; o silêncio contemplativo é visto quase como uma doença. Não se pode sentir tristeza, solidão, cansaço. Não se poder simplesmente ser "humano"...

"A nau dos insensatos
(ou A barca dos loucos)" - Bosch
Os smartphones tornaram-se parte dos corpos e são a companhia principal de muitos. Estar permanentemente conectado é uma obsessão que se generalizou. Informações - verdadeiras ou falsas - inundam as cabeças; as mentes repletas delas, parecem entes obtusos. Os cérebros se tornam opacos.

Mas o importante é não ficar só, momento algum! Pois este sujeito abomina a solidão e estar consigo mesmo.

Nas redes sociais, vive-se relações virtuais, descartando o velho costume de estar sem fazer nada, ou conversando, ou em silêncio ao lado do outro. Mas ao lado, não "sequestrado" pelo aparelho. Todos fugindo de si mesmos e apontando outros. 

Lá, nessas redes, também se mostra a imagem que se quer que os demais vejam; se fala dentro de bolhas que ecoam as palavras ditas, e todos repetem o que todos querem dizer. Ouvir é para poucos. 

As redes sociais são feitas para escamotear o vazio que se sente e impedir o instante reflexivo e solitário. 

Melhor a gritaria do que o silêncio da presença incômoda de si mesmo.

O fato é que, nessas instâncias, cria-se um ser humano fraco e estupidificado, que não suporta qualquer conturbação à sua tentativa de viver em felicidade eufórica. A auto-imagem que se cria torna-se mais real que a real. Mas para manter em suspensão esse estado de euforia, há que se recorrer aos ansiolíticos, aos antidepressivos, aos anestesismos. E ao consumismo.

Os mais fracos, que existem de fato, se escondem para se proteger. Dessa onda.

O consumismo dita cada vez mais regras de "ser feliz". Este sistema vende a ideia de que cada um é dono de si mesmo e sua vida só depende de si mesmo. Meritocracia! Gritam os apaniguados do sistema. O que importa é seguir a regra de viver de um forma tal que se produza a maior quantidade de bem-estar possível. Tudo vira relação de custo-benefício: o que vou GANHAR se for/fizer tal coisa? Ah, porque temos que sempre sair ganhando! Porque "Deus é fiel"...

Desse mundo, tenho pena. 

Vivo nele, aos trancos e barrancos, tentando ser eu, o mais humana que posso, uma pequena célula do todo humano. Buscando ser, mais do que ter. Buscando criar meu próprio estado de estar no mundo. Buscando pintar para estar neste mundo. E buscando sonhar, com outros sonhadores, o sonho de um mundo antípoda disso tudo aí.

Contra todas as distopias, o grande sonho nos salvará!

"O jardim das delícias", Bosch, tríptico, óleo sobre tela, 220 × 389 cm,
Museu Nacional do Prado, Madrid
"Juízo final", Bosch,  óleo sobre tela,
164 × 127 cm, Academia de Belas Artes de Viena, Áustria
 

sexta-feira, 8 de março de 2019

A força de Artemísia Gentileschi

Artemisia Gentileschi, "Autorretrato como Alegoria da Pintura", 1639
Quando se estuda a história da arte, percebe-se que a presença feminina é quase rara. E por que isso acontece? Numa sociedade onde, ao longo de séculos de história, predomina o patriarcado que impõe suas regras, para uma mulher se tornar artista era muitíssimo dificultado. Aquelas que se destacaram, como Artemísia Gentileschi (entre tantas outras), foram verdadeiras heroínas da resistência como mulheres e como artistas. 

Artemisia Gentileschi,
"Autorretrato como mártir", 1615
óleo sobre tela, 31.7×24.8 cm,
coleção privada, New York
Artemísia Lomi Gentileschi é uma dessas pintoras, que viveu no Barroco italiano, uma das únicas mulheres artistas conhecidas desse período. Ela nasceu em Roma no dia 8 de julho de 1593. Ela era a filha mais velha do pintor toscano Orazio Gentileschi. A menina foi se destacando dos irmãos pelo talento para a pintura, e tinha facilidade especialmente em misturar a palheta de cores de uma forma que dava brilho às pinturas. Desde cedo, aprendeu a desenhar sob a orientação paterna, demonstrando um talento precoce que foi bastante estimulado pelo ambiente artístico que girava em torno de sua casa, frequentada por outros artistas, amigos e colegas de seu pai. 

Em Roma havia uma grande concentração de artistas e artesãos, e Artemísia cresceu em um bairro habitado por muitos deles. Roma vivia em plena efervescência cultural e a igreja católica atraía muitos artistas para lá, vindos de todos os lugares. Caravaggio trabalhava na Basílica de Santa Maria do Povo, assim como, em outras igrejas, trabalhavam Guido Reni e Domenichino, além dos irmãos Carracci, que pintavam seus afrescos na Galeria Farnese. Nesse ambiente, foi crescendo a artista Artemísia. 

Seu pai, Orazio, já pintava segundo o estilo de Caravaggio, com quem tinha mantido contato. Por isso a jovem Artemísia também era influenciada pelo mestre do Barroco, que costumava ir à sua casa pedir emprestadas as ferramentas de trabalho de Orazio. 

A discriminação contra as mulheres era imensa e somente foi possível que ela aprendesse a pintar, porque o fez diretamente com seu pai. Naquela época, e por muitos séculos, as mulheres não tinham acesso a muitos ramos da atividade econômica e social. Seu papel era basicamente de procriadoras e trabalhadoras domésticas, trabalho este não reconhecido como tal. Não recebiam reconhecimento nem mesmo quando tinham que sustentar sua própria família. Além disso, às mulheres sempre era impedido o acesso ao estudo, à educação intelectual, ao aprendizado da pintura, mais especificamente. 

Mas Artemísia Gentileschi escreveu uma outra história para si.

Artemisia Gentileschi,
"Susana e os velhos", 1610
A primeira pintura atribuída a ela data de quando ela tinha apenas 17 anos de idade (“Susana e os velhos”, 1610 ). Seu pai, impressionado com a qualidade da pintura da filha e sabendo dos impedimentos que haviam para a educação das mulheres nas artes, resolveu escrever uma carta à Grã-Duquesa da Toscana, Christina de Lorena, no dia 6 de julho de 1612, intercedendo pela filha, pedindo que ela pudesse ser autorizada a aperfeiçoar sua educação artística. Orazio dizia, entre outras coisas, que Artemísia havia atingido a habilidade e maturidade de artistas experientes.

E, mais do que o domínio técnico, ela já demonstrava um potencial expressivo muito rico. Esta tela com temática religiosa (“Susana e os velhos”) já indicava o ponto de vista de uma mulher vivendo em uma sociedade profundamente machista: a história que ela ilustra é a de uma moça nua, tomando banho, sendo observada por dois velhos que a ameaçavam, se ela não se entregasse a eles. Não era um tema original, pois outros artistas do sexo masculino já a tinham pintado. Mas somente na versão de Artemísia é que podemos ver a repulsa com que uma Susana nua ouve as cantadas dos dois velhos. A artista voltou a fazer outra versão dessa pintura, em 1640, mais amadurecida. E mais sofrida.

Artemisia Gentileschi,
"Maria Madalena"
Mas a carta de Orazio Gentileschi intercedendo pelo aprimoramento da educação artística da filha, foi seguida de uma tragédia que se abateu sobre a jovem: um dos amigos de seu pai, a quem ele teria pedido que ajudasse na formação dela, a violentou. Agostino Tassi era um dos mestres do ensino do desenho de perspectiva. Depois de alguns meses abusando sexualmente de Artemísia, prometendo que ia se casar com ela, Agostino revelou que já era casado. Isso enfureceu Orazio, que levou o caso a julgamento. Mas se já não bastasse - além da violência do ato - toda a humilhação que foi descarregada sobre ela tanto pelo réu, quanto pelos julgadores, Artemísia ainda foi torturada para que narrasse a cena do estupro em detalhes, sendo submetida a exames ginecológicos na frente de vários homens… Mesmo com a tortura, ela se manteve firme, e o réu foi condenado a cinco anos de prisão, ou o exílio de Roma.

Após esse fato, era impossível para ela continuar na cidade. Humilhada pelas regras sociais católicas, que tratavam mulheres violentadas como se fossem prostitutas, Artemísia se mudou para Florença. Seu pai foi obrigado a arranjar-lhe um casamento de conveniência, para que ela pudesse ser tratada com algum respeito. A filha casou-se com Pierantonio Stiattesi, um artista modesto de Florença, em cerimônia realizada no dia 29 de novembro de 1612. Desse casamento, Artemísia gerou quatro filhos. Prudenzia, a única filha que sobreviveu, acompanhou a mãe em seu retorno a Roma, nove anos depois. 

Em Florença, cidade onde o ambiente artístico favorecia, Artemísia se dedicou ainda mais à pintura, abordando temas trágicos, em que figuras femininas sempre aparecem como heroínas. O crítico de arte italiano, Roberto Longhi, atribui ao estupro e a esse processo humilhante que ela sofreu, os traços dramáticos que surgem em sua pintura, especialmente no quadro “Judith decapitando Holofernes”. Artemísia pintou diversos quadros em que coloca a mulher em posição de heroína.

Artemisia Gentileschi,
"Susana e os velhos", 1649
O alto nível da pintora foi logo reconhecido. Florença era uma cidade mais aberta do que Roma, e ela foi a primeira mulher a entrar para a Academia de Artes de Florença. Logo se aproximou dos artistas mais respeitados da época, e soube batalhar para ganhar o favor e a proteção das pessoas influentes da época, começando com o grão-duque Cosimo de Médici, e, mais especialmente, com a grã-duquesa Christina de Médici (a família Médici de Florença foi muito importante para o desenvolvimento das artes, tornando-se patronos de muitos grandes artistas italianos). Artemísia teria conhecido inclusive Galileu Galilei, que havia chegado a Florença em setembro de 1610. Ou seja, ela participava ativamente da vida artística e intelectual da cidade.

Mas Artemísia resolveu se separar do marido e voltar para Roma em 1621. Na cidade natal se estabeleceu de forma independente, cuidando sozinha de Prudenzia, sua única filha sobrevivente. Algum tempo depois ficou grávida e teve uma outra filha, provavelmente nascida em 1627. Artemísia tentou ensinar as duas meninas a pintar, mas sem muito êxito.

Artemisia Gentileschi, "Judith e a
serva com a cabeça de Holofernes", 1650
Com sua exemplar determinação, e enfrentando todos os preconceitos da época, ela resolveu se impor e defender seu direito de viver como artista nessa Roma que era o local de atração e de passagem obrigatória para artistas de toda a Europa. Tanto lutou que se  tornou membro da Academia dos Desiosi. Também iniciou relações de amizade com Cassiano dal Pozzo, um importante colecionador de arte, humanista e mecenas.

Mas apesar da sua reputação artística, de sua personalidade forte e de uma rede de boas relações, sua estadia em Roma não lhe rendeu muitas encomendas. Em 1627 partiu para Veneza, com as duas filhas, em busca de trabalho e de maior reconhecimento. Em 1630 viajou em outra direção, indo para Nápoles, pensando que naquela próspera cidade, cheia de estaleiros e de entusiastas das artes plásticas, novas oportunidades de boas encomendas e de emprego se abririam. Com essa mesma intenção também tinham vivido em Nápoles diversos artistas, entre os quais Caravaggio, Annibale Carracci, Simon Vouet, o espanhol José de Ribera, entre outros.

Em Nápoles, suas duas filhas se casaram. Artemísia tinha boas relações com o vice-rei Duque de Alacala, assim como com os principais artistas que lá viviam, especialmente Massimo Stanzione, com quem ela teve uma imensa colaboração artística e desenvolveu uma amizade sólida. Naquela cidade, pela primeira vez, foi convidada a pintar telas em uma catedral.

Enquanto isso, seu pai, Orazio Gentileschi, havia se tornado pintor da corte do rei Carlos I da Inglaterra, que a ele tinha confiado a decoração de um teto na Casa das Delícias, em Greenwich. Em 1638, Artemísia viajou até Londres, para visitar seu pai. Orazio morreu repentinamente, na presença da filha, em 1639.

Essa artista, de vida tão trágica quanto exemplar, voltou para Nápoles, onde viveu até os 60 anos de idade. Artemísia Gentileschi morreu em 1653.

Artemisia Gentileschi, "Jael e Sisera", 1620
Artemisia Gentileschi, "Judith e a serva", 1619,
óleo sobre tela, 114x93,5 cm, Palácio Pitti, Florença

Artemisia Gentileschi, "Anunciação", 1630

sexta-feira, 1 de março de 2019

As Marias, Mahins, Marielles, malês

 

E começa o carnaval, a festa mais longa do Brasil, que foi estendida além dos clássicos três dias. E não, não termina mais na quarta-feira de cinzas… E viva a folia, que ninguém é de ferro! Está aberto o reinado de Momo e que ele traga alegria a este país entristecido por um governo parvo, caótico, perdido! Salve Momo, abaixo Bolsonaro!

O nosso carnaval é algo herdeiro do espírito original das festas pagãs. São aqueles dias em que todo mundo se esquece de tudo o que há de ruim e mergulha nas festas pelas ruas do país.

Mas foi no tempo de um papa, Gregório Magno (590-604), que o velho espírito da Saturnália - um festival que durava dias e onde reinava a mais completa orgia dos cidadãos romanos - migrou de vez para a festa do “dominica ad carnes levandas”, o nosso Carnaval, uma combinação de desfiles, festas, bebidas, comidas, fantasias, que se estende até o primeiro dia da Quaresma. Se estendia, pois nestes tempos tristes melhor empurrar a alegria até o final de semana seguinte. Pois, depois, tudo volta ao cinzento da luta pela sobrevivência… E do nefando projeto de reforma da previdência ameaçando a todos nós.

Carnaval, tempo de se fantasiar de qualquer coisa e sair por aí, vestido de qualquer coisa, no grande teatro da folia. Tempo de usar máscaras, de criar uma persona, de se vestir de outro alguém…

O triunfo da dúvida, Victor Brauner, 1942
Num certo sentido resgatando também o velho teatro grego, assim como os personagens da Commedia Dell’Arte da Idade Média, como Pierrot, Arlequim e Colombina, que aqui se misturam aos bonecos de Olinda, ao Axé da Bahia, aos Fofões do Maranhão, aos mendigos vestidos de rei porque o império é o da alegria que se espalha… Mesmo que não seja só alegria, ou que a alegria seja um tanto só na superfície... Estamos em tempos estranhos...

O carnaval carrega em si algo de tristeza… Assim como o samba, que entoa o grito do mais profundo do peito do nosso povo negro. Pois por trás da máscara, há a realidade da vida no Brasil destes tempos. E por isso os palhaços do carnaval escancaram um sorriso, mas denunciam uma tristeza, como na lágrima que escorre do olho de Pierrot…

E a Estação Primeira da Mangueira neste 2019 leu a alma do povo e resolveu contar tudo o que se passa, pra geral. Salve! Salve! E salve Marielle Franco e todas as grandes mulheres de luta!

História pra ninar gente grande

Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasil que se faz um país de Lecis, jamelões
São verde e rosa as multidões

Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar

Na luta é que a gente se encontra
Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500
Tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato

Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati

Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês...
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E aqui vai minha homenagem, pra não esquecer nem na folia:

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Amálgama


Algumas observações sobre cultura.

Muito tenho pensado sobre o tema da dominação do pensamento europeu sobre nossa cultura brasileira nestes dias. Há bastante gente também pensando em como isso se deu. Como isso se dá. Porque é justo resgatar do mais fundo de nossas almas o que lá pode estar ainda oculto: o que nos fará mais ricos quando vier à tona em toda a sua potência, talvez uma brasilidade nova que, como uma estrela, iluminará algo dos passos de um mundo que se globaliza...

Somos um país cuja história oficial se iniciou em 1500. Verdade é que povos indígenas já estavam por aqui, mantendo sua vida, sua economia e política, e sua cultura, de modo independente dos povos que já habitavam a Europa e que chegaram até aqui. Portugueses, franceses e holandeses, principalmente, se lançaram sobre o território recém-descoberto com sede de riqueza e lucros para seus reis, imperadores, governantes, e até sacerdotes.

Ocorre que trouxeram consigo além de armas de conquista, sua visão de mundo, sua cultura que, sendo imposta, foi mesclando-se com a cultura indígena, local, assim gestando parte do que somos hoje enquanto povo.

Os conquistadores europeus também arrancaram de suas casas e trouxeram para cá milhões de africanos ao longo de séculos de escravidão. 

Assim como os europeus, os africanos - em posição inferior, obviamente - também trouxeram sua visão de mundo e sua cultura.

Os brancos europeus - “donos” do território conquistado - impuseram sua religião, seus costumes, sua alimentação, suas vestimentas. Indígenas e africanos foram obrigados a aprender sua fala, suas rezas, seus modos à mesa, seus costumes. Foram obrigados a adorar seu Deus, o único; coisa bizarra para duas culturas que eram mais generosas em termos de panteão: possuíam muitos deuses, e não só um.

Mas no meio de tudo, indígenas e africanos mostraram jeitos, comidas, cantos, rezas. Nas caladas das noites, foram-se imiscuindo entre as gentes de pele clara, gerando filhos já não tão claros, verdadeiros nascidos das três raças.

"Lavrador de café",
Portinari
Com o passar dos séculos, tudo se misturou e a mandioca entrou na cozinha: três culturas formam a nossa, mas é claro que com a absoluta primazia dos dominadores brancos europeus. A cultura dominante em nosso país é a cultura das classes dominantes desde 1500. Com toques, na história mais recente, de imposição cultural com fortes traços imperialistas.

Hoje, há gente se esforçando para restaurar a importância - extrema - da cultura africana sobre a brasileira, e da cultura indígena sobre a brasileira. Desde Mário e Oswald de Andrade, tenta-se destacar o papel fundamental de negros e índios em nossa formação. E isso é absolutamente inegável.

O que é inegável também que nos formamos como povo, em termos de educação, de pensamento, de filosofia, de ciência - com todas as narrativas dessas visões de mundo - com o viés dos colonizadores europeus. São Tomás de Aquino, Agostinho de Hipona, John Locke, Montesquieu, Voltaire, Adam Smith; Rousseau, Diderot, Descartes, Immanuel Kant, Karl Marx; Nietzsche, Schopenhauer; Johannes Kepler, Isaac Newton, Galileu Galilei, Albert Einstein, Stephen Hawking; Johann Sebastian Bach, Mozart, Beethoven, Schubert; Leonardo da Vinci, Rembrandt, Velázquez, Ingres, Van Gogh…

Poderíamos fazer uma lista imensa de europeus que formam a nossa visão de mundo, desde filósofos a artistas. Lembrando que a própria Europa é resultado do amálgama biológico de muitos povos, e filosófico de culturas mais antigas, como a grega. Europeus se impuseram sobre as Américas, sobre terras descobertas nos confins da Austrália e Nova Zelândia… Sobre partes da África e da Ásia.

Sua visão de mundo e sua forma de estar no mundo se impôs, e isso é fato. Muito mais recentemente na história, a humanidade branca europeia teve acesso ao conhecimento da filosofia oriental, chinesa, indiana, japonesa. Não levaram a sério (porque eram rudes os conquistadores, além de sedentos por riqueza) as culturas de povos indígenas ou aborígenes que foram encontrando pelo caminho. Não respeitaram o modo de pensar e de ser dos africanos que sequestraram como escravos para o Mundo Novo. Havia que passar por cima de tudo como um trator, porque o interesse maior era o de seus governantes e sua sede de riqueza e lucro. E para dominar, domina-se impondo religião, valores e costumes. Sobre todos os que não são brancos de pele, com suas esquisitices e idiossincrasias.

Assim foi e assim ainda é. O real é que todos somos resultado desse amálgama. Com predomínio óbvio da cultura ocidental que, em maior dosagem, permanece fazendo parte de nossas vidas, nossas formas de pensar, nossa ciência, nossa arte.

Mas há os entremeios...  

Há as burlas, as entrelinhas, os buracos na receita desse bolo… Há o não-dito, mas pensado. O sugerido sem ser detalhado. Há as vias tortas, os descaminhos, as sinuosidades. O torto. O imprevisto. O inexplicado. O imponderável. 

E há um Macunaíma dentro de cada um de nós, que ainda vai engrupir e engolir todos "eles"!

Grande Otelo, ator brasileiro representando o personagem no filme "Macunaíma"