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quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Ateliê Contraponto faz exposição em Paris

De pé, da esquerda para a direita: Roque, Ana Maria, Luciana, Taïs, Guilherme, Beto, Ana Sá, Virgínia, Sarah. Sentadas: Rubi, Mazé e Nathalia
O Ateliê Contraponto de Arte Figurativa, de São Paulo, sob a orientação de Mazé Leite, estará fazendo uma exposição na Galerie Art et Societé de Paris, de 4 a 24 de outubro próximo. A artista e onze de seus alunos levarão para a capital francesa 33 pinturas executadas em um ano e meio de trabalho. O tema da exposição "Brasil em transe" serviu como guia para a criação das obras, que resumem a visão individual de cada artista sobre nosso país, que vive tempos tão difíceis após a eleição de Jair Bolsonaro.
80 TIROS!
Mazé Leite, óleo sobre tela, 50x70 cm, 2019
A Galeria Art & Societé está localizada em um dos bairros mais culturais da capital francesa, ao lado de inúmeros museus e galerias de artes, e é reconhecida por receber artistas contemporâneos de diversos lugares do mundo, inclusive da América Latina.
A exposição, que terá sua inauguração às 19h (hora local) do dia 4 de outubro, é o resultado da curadoria e do planejamento da proprietária e professora do Ateliê Contraponto de Arte em São Paulo, Mazé Leite. Convidada pela Galeria parisiense Arte & Societé para fazer uma exposição individual, Mazé, que é uma grande entusiasta da arte figurativa no Brasil, divide essa oportunidade com 11 alunos do Ateliê que terão duas de suas obras expostas em Paris, totalizando 22 pinturas que foram executadas em um ano e meio de trabalho intenso. 
“Essas obras expressam nossas visões pessoais sobre o Brasil que vivemos, neste momento crucial de nossa história. Quando iniciamos nosso trabalho para esta exposição, não se tinha ideia dos rumos que o Brasil tomaria com a eleição de Bolsonaro. Isso nos afetou pessoalmente e deu ainda mais elementos para nosso processo de criação”, conta a artista e professora Mazé. 
"Brasil em Transe" apresentará aos visitantes uma riquíssima variedade de abordagens, que vai desde momentos que representam a cultura brasileira até temas de caráter mais político, passando por pinturas que denunciam o drama da população mineira causado pelo rompimento de barragens, o genocídio da juventude negra, os preconceitos sofridos pela população LGBTI, a liberação de agrotóxicos mortais em nossa agricultura, entre outros. A exposição também contará com obras que dão vazão a questões mais pessoais, individuais ou não, de um país cujo povo passa por grandes dificuldades neste período no qual a extrema-direita está em crescimento, gerando temores e ameaçando as conquistas sociais, econômicas e culturais de outrora. Porém, além de retratar essas barreiras e dores, as obras buscam reforçar que neste “Brasil em transe" há artistas que resistem e que ao pintar transformam seus próprios medos em arte, impingem suas próprias cores e mostram a beleza e riqueza que ainda são parte de um país que já inspirou muitos poetas.
Realismo em dança com a luz
Os trabalhos selecionados para a exposição contam com matéria-prima elementar: tinta a óleo, com uma técnica que segue um conceito fundamental, o da luz, e seus efeitos sobre a realidade observada.
Ao usar “a luz, mais abstrata que a matéria, para ir além do superficial”, segundo a curadora, os trabalhos seguem a tendência da arte figurativa, que retoma fôlego no país, mas já muito praticada em diversos países, com destaque para os EUA com artistas como David Leffel, Sherrie McGraw, Burton Silverman, etc. 
“Minha visão sobre a pintura mudou muito, desde que fui apresentada por um dos meus últimos professores, Maurício Takiguthi, a um novo modo de percepção. Desde então, me interesso cada vez mais pela aparência real das coisas e a forma de representá-la. Há 10 anos me dedico a estudar e a me aprofundar neste conceito, que também ensino em meu Ateliê”, reflete Mazé.
Os artistas, cujas obras fazem parte desta exposição, tecnicamente expressam nelas sua evolução pessoal no aprendizado deste tipo de pintura a óleo, além de dar voz a sua própria sensibilidade, ponto de vista e ideias sobre o tema proposto.
Artistas expositores:
Mazé Leite
Ana Maria de Sousa Pereira
Ana Suitsu
Beto Tozzi
Guilherme Martinez
Luciana Fortes Balam
Nathalia Lopes
Roque Magalhães
Rubi Conde Ferreira
Sarah Hounsell
Taïs Isensee
Virgínia de Morais

Serviço
Exposição: Brasil em Transe - Pinturas a óleo
Curadoria: Mazé Leite.
Abertura da exposição: 4 de outubro, às 19h.
Encerramento: 20 de outubro
Local: Galeria Art & Société
Endereço: 19 rue du Pont Louis Philippe 75004 / Paris, França
Entrada gratuita

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quarta-feira, 24 de abril de 2019

David Leffel, o artista da luz

Natureza-morta, David Leffel, óleo sobre tela
Todos os que me conhecem mais de perto, sabem da minha grande admiração pelo artista norte-americano, que hoje tem por volta de 85 anos de idade: David Leffel. Reproduzo abaixo o artigo introdutório ao livro "Oil painting, secrets from a master", de Lynda Cateura, que foi sua aluna. 

Neste artigo, de autoria de outro artista, Gregg Kreutz, podemos saber um pouco mais sobre o pensamento pictórico deste grande mestre.

LEFFEL, O ARTISTA
Autorretrato, David Leffel,
óleo sobre tela

Fui conhecer David Leffel pessoalmente, após ter visto suas pinturas. Para mim, esse momento descrevo como uma espécie de  choque... Suas pinturas parecem a princípio elegantes mas austeras - e uma das características pessoais mais marcantes de David é sua aconchegante simplicidade. Ele adora uma boa história, conta piadas maravilhosas e é essencialmente uma pessoa calorosa. Se houver alguma aparente disparidade entre David e suas pinturas, isso, no entanto, é uma ilusão. Elas são impressionantes, mas, como ele, também são acessíveis e tocantes.

Lembro-me de ir ao estúdio de David pela primeira vez. A sala estava tão pouco iluminada que, seu interior, incluindo meu anfitrião, mal se distinguia. Quando meus olhos se ajustaram, no entanto, vi armações, cavaletes, adereços de natureza-morta e pinturas espalhadas pelo estúdio. No centro de tudo, quase diretamente sob a clarabóia, havia uma velha mesa frágil com algumas cebolas e uma velha panela sobre ela.

Havia uma pintura ao lado da mesa e quando olhei para ela, fiquei chocado! Em vez de retratar a coleção aleatória de objetos que vi, a pintura forçou-os a desempenhar papéis em um drama convincente de luz. As cebolas emergiam de uma sombra escura, ficando mais claras e leves, de certo modo levando a luz ao ponto focal da panela amassada. Com rico impasto e cor quebrada, o pote destacava-se majestosamente contra o fundo escuro, amassado e enferrujado, quase um heróico sobrevivente. A pintura não alterara nada na configuração. Na verdade, parecia mais real. Mas de alguma forma, Leffel transformou o temporário em algo eterno.

Todas as pinturas de Leffel têm essa qualidade. Seja qual for o assunto, ele consegue encontrar algo para tirar a imagem do literal para o reino da poesia. Cada pintura é sobre algo muito diferente de suas simples aparência. Embora um autorretrato, por exemplo, possa ser incrivelmente fiel à aparência de David, também pode evocar uma resposta mais profunda. Estou pensando em uma que mostra David olhando atentamente para fora de uma escuridão sombria, seu rosto apenas parcialmente iluminado, sugerindo uma busca interior. A iluminação sombria descreve a busca interna. A obscuridade e intensidade de seu olhar sugerem a dificuldade de tal busca.


"A cegueira de Sansão", Rembrandt, 1636, Frankfurt, Alemanha
Esse tipo de busca do uso funcional da luz é uma das qualidades mais distintivas da pintura de Leffel. A luz leva o espectador em direção à imagem central. Quando atinge este ponto focal, ela é geralmente mais intensa, e assim o olho pode descansar naturalmente.

A luz, nas mãos de David, torna-se a ferramenta com a qual ele dirige o olho para o que é  significativo. Este conceito (ser conduzido através da pintura pela luz) é um dispositivo que Rembrandt empregou consistentemente. Rembrandt é um exemplo óbvio de um grande artista cujas pinturas sempre usaram a luz para ajudar a contar a história. Em sua pintura sobre a cegueira de Sansão, por exemplo, as lanças, os soldados e a luz estão todos voando em direção aos olhos dele com uma violência vertiginosa. A luz não apenas ilumina a cena - é um participante ativo no drama.

Leffel não faz segredo de sua admiração por Rembrandt, e em muitos aspectos pode ser visto como um herdeiro daquele grande mestre.

Uma pintura realista que combina precisão perspicaz com beleza, preenche uma das nossas mais profundas esperanças - de vivermos em um mundo harmonioso. As pinturas de Leffel consistentemente fazem essa afirmação, pois ele é um artista supremo.

Gregg Kreutz
Artista de Nova York, 1984

Natureza-morta, David Leffel, óleo sobre tela
Natureza-morta, David Leffel, óleo sobre tela
Autorretrato no ateliê, David Leffel, óleo sobre tela
Estudo em óleo sobre tela, David Leffel

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Van Gogh, com amor

O quarto, Vincent Van Gogh, óleo sobre tela, 1888
Eu era muito pequena quando vi, pela primeira vez, a imagem deste quadro acima, "O quarto", de Van Gogh. Ele ilustrava uma revista que meu pai assinava e, assim que pude, recortei-o e colei numa parede do meu quarto. Alguns anos se passaram enquanto eu, todos os dias, enquanto crescia, o contemplava diretamente da minha cama, antes de apagar a luz e dormir. Naquela época não sabia nada sobre pintores, pinturas, mundos longínquos... Mas eu já desenhava, e era imenso o prazer de saber que eu conseguia reproduzir o que via.

Vincent Van Gogh era um pintor muito estudioso, como se pode ver no livro "Cartas a Theo". Observava os raios de luz incidindo sobre o mundo e transferia-os para suas telas, do seu jeito poético de pintar. Era um apaixonado pelas cores e seus efeitos, no mundo e em seus quadros. 

Sua vida não foi uma vida fácil. Quem assistiu ao recente filme "Com amor, Van Gogh", sai do cinema sentindo um pouco da tristeza de sua vida. Eu mesma não sabia o que fazer quando saí do cinema. O filme, esteticamente é lindo, feito por 100 pintores, na Polônia, usando a mesma técnica de Van Gogh. Foram 6 anos de trabalho intenso dessa equipe de pintores.

Quem quiser saber um pouco mais sobre o pintor holandês, CLIQUE AQUI. 

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Os vôos necessários

Franz Kafka no final da vida escreveu alguns pequenos contos, entre os quais "A primeira dor", publicado em 1922, quando a serpente do nazi-fascismo já chocava seu ovo...

"A primeira dor" fala de um artista de circo, um trapezista, aquele que vive com a vida por um fio, sobre o abismo. Mas o trapezista amava tanto seu instrumento de trabalho - o trapézio - que jamais se separava dele, vivia pendurado no alto, ou fazendo acrobacias ou simplesmente quieto enquanto outros apresentavam seus espetáculos. Ele passara a vida inteira como artista de circo; era o que sabia fazer. E amava fazer.

Desde que me entendo por gente, vivo pendurada em meu próprio trapézio: meu amor pela pintura. A vida inteira fui ao encontro dela, me perdi dela, corri atrás, fugi, ela me alcançou, me agarrei a ela como uma náufraga... Do alto do meu sonho, balanço entre um susto e outro, sabendo que é preciso ir além do medo. Pintar me reinventa. Ensinar pintura é um risco ao qual o meu trapézio me balançou para ainda mais alto. O frio na barriga também traz o prazer do risco, o espaço aberto, o chamado do vôo...

Nas vertigens do caminho, o Ateliê Contraponto caiu em minhas mãos e eu precisei enfrentar todos os medos, executando novas acrobacias. Oscilando no meu próprio céu, me movimento dentro do meu sonho, sabendo que os abismos do tempo atual podem me ameaçar. Mas meu vôo é firme, pois criei asas no desejo de permanecer grudada a meu trapézio até o final do espetáculo.

E o Ateliê Contraponto segue como espaço de resistência... mesmo em um momento em que, de novo, aquela velha serpente volte a chocar seu ovo... 

Mas a pintura resiste!

Que venha 2018!

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Abaixo, registros da exposição de final de ano no ateliê, ao final do quarto ano de trabalho:
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Desenhos e pinturas de alunos do Ateliê Contraponto: Sarah Hounsell, Taïs Isensee,
Virgínia Morais, Guilherme Martinez
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Pinturas a óleo de Taïs Isensee
Pinturas a óleo de Virgínia Morais

Desenho de Ananda Campos, à esquerda. Ao centro e direita, desenhos de Fernando Correia

Desenhos com giz-pastel e carvão de Sarah Hounsell
Desenho e pintura de Paulo Marianno
Desenho com lápis-grafite de Rubi Conde

Pinturas com Guache de Maria Fucatu

Pinturas a óleo de Guilherme Martinez

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Pequena história do autorretrato - parte II

Adicionar legenda
No final da Idade Média, especialmente entre os séculos XI e XV, grandes mudanças foram acontecendo em todas as áreas da vida humana. Houve um excepcional desenvolvimento econômico, demográfico, social e cultural em toda a Europa. O período expansionista europeu se intensifica com as Cruzadas e o avanço dos reinos cristãos reduzem o espaço do islamismo na Península Ibérica e pelo interior da Ásia. Se desenvolve o modo de produção feudal e surgem as primeiras cidades e seus primeiros burgueses, que crescem com aumento da demanda de produtos artesanais, e o comércio alcança largas distâncias. Nascem as feiras livres, as rotas comerciais terrestres e marítimas.

A Cruz de Mathilde, feito por Matilda,
abadessa de Essen (973-1011)
A arte românica e as primeiras manifestações da arte gótica são protegidas pelas ordens religiosas. A Europa se enche de mosteiros e nascem as primeiras universidades europeias: Oxford, Sorbone, Cambridge, Bolonha, Salamanca, Coimbra. A Filosofia retoma novo impulso com as traduções dos textos antigos, como os de Aristóteles e Platão, feitas pelos árabes, e com isso surge o filósofo Tomás de Aquino. O Direito Romano é redescoberto a favor dos reis, que se passam a considerar como “imperadores” em seus reinos. Os conflitos também crescem, com as revoltas camponesas contra os altos impostos que deviam pagar aos senhores feudais, e as guerras feudais são constantes.

Eram essas as primeiras manifestações do capitalismo comercial que se desenvolvia, em especial na Itália e nos Países Baixos. O comércio marítimo com o Oriente enriqueceu cidadãos italianos e europeus do norte. Novos ricos, negociantes, banqueiros, transportadores e grandes proprietários de terras criaram uma demanda que incentivou também a criação de ateliês. A arte já não estaria mais ao serviço exclusivo de reis e religiosos. O burguês também passou a encomendar suas pinturas.

As mulheres pintoras

Mas, neste post, nos voltaremos a dar um destaque especial para o papel das mulheres, que já então exerciam atividades variadas, desde a tecelagem, fiação, gastronomia e cuidados com os doentes. Mas o mundo das artes era interditado a elas, porque era considerado domínio dos homens.

Em muitos momentos da minha vida ligada à arte, me questionei sobre os motivos que fazem termos um domínio tão grande do sexo masculino sobre as artes. Muito pouco se conhece e se fala sobre mulheres artistas (já escrevi um artigo sobre isto, que pode ser visto aqui). Claro que isso merecia um estudo aprofundado, mas basicamente este fato não se deve à incapacidade intelectual da mulher em ser artífice de qualquer coisa; pelo contrário, durante muitos séculos era simplesmente proibido às mulheres o ofício de artistas, o que dá para se constatar a profunda cultura machista do mundo em que vivemos. Para o qual a Igreja Católica deu grande contribuição, com sua eterna política de relegar o papel da mulher ao mais subserviente lugar. Lembre-se que até a década de 1960 (!!!) era interdito, em muitos lugares, às artistas brasileiras (apenas para ficar no Brasil) a participação em aulas com modelo vivo nu, matéria altamente importante para a formação de qualquer artista. Vera França, uma senhora de cerca de 75 anos hoje, foi uma das primeiras mulheres a encarar a profissão de modelo vivo como forma de ganhar a vida.

Voltemos ao livro de Yves Calméjane, que abre um capítulo especial para as mulheres artistas.

Na Idade Média, mesmo no auge do período de florescimento cultural e de reforma educacional implementada por Carlos Magno (como vimos no post anterior), era proibido às mulheres também o acesso à Educação. Eram raras, portanto, as que sabiam ler; as que sabiam, aprenderam sozinhas e de forma escondida. Por isso os conventos se revelaram para elas lugares de relativa liberdade, onde elas tinham acesso a alguma formação intelectual e onde sua autoexpressão se manifesta.

As mulheres foram as grandes ausentes dos processos de criação artísticos e dos meios intelectuais em geral, por longos séculos… Mas mesmo assim, houve as que se rebelaram contra este sistema machista e excludente, e a elas vamos dar todo o destaque deste artigo atual.

Iaia de Cysique foi uma artista que trabalhou em Roma no século I a. C. Quem fala dela é o pensador romano Plínio, o Velho (ano 23 a 79 a.C.), que escreveu o texto “Mulheres também pintam”, onde ele cita vários casos de mulheres pintoras, entre elas Iaia de Cysique, célebre por seus retratos de mulheres, cujas obras eram vendidas por preços mais altos do que os de seus contemporâneos homens. Ela também teria feito seu próprio retrato, provavelmente o primeiro autorretrato da história... Plínio fala também de Marsia, “a mais célebre retratista de seu tempo” e de uma “certa Olimpia”, que teria sido professora de pintura. Iaia de Cysique foi redescoberta em 1361 graças a Giovanni Bocaccio, poeta e humanista italiano, em seu livro intitulado “As claras e nobres mulheres”.

Uma iluminura da monja Ende, séc. X
Por volta do século X, na Europa uma freira espanhola chamada Ende surge como autora de uma série de miniaturas que ilustram, em estilo moçárabe, a “Visão do Apocalipse de São João”, no Livro das Revelações. Ela assina em seu trabalho, por volta de 975: “Endre pintora e servidora de Deus”. Outras freiras, Diemud, Guda e Claricia, que viveram um pouco depois de Endre, tinham como referência a Iaia de Cysique, a artista romana.

Diemud ou Diemudis (1057-1130) era freira no Claustro de Wessobrun, na Alemanha, era ilustradora das iluminuras que enfeitavam os textos religiosos e se autorretratou numa letra “S”. Assim como ela, as freiras Guda e Clarícia, foram também luministas. Guda se retrata na letra “D” e escreve “Guda, pecadora, escreveu e pintou este livro”. Já Claricia não hesita em se desenhar em movimento, segurando a letra “Q”.

Hildegard von Bingen (1098-1179), abadessa, foi uma das grandes figuras intelectuais do século XII, dotada de muitos talentos, particularmente para a música e a ciência. Ela escreveu uma História Natural, dirigiu um hospício e diz-se que possuía dons de cura. Ela também era interessada em política e mantinha correspondências com poderosos da época.

Herrad Von Landsberg (1167-1195) era uma abadessa que dirigia o convento de Santa Odila em Hohenbourg, na Alsácia. Ela participou da realização da enciclopédia Jardim das Delícias, sobre conhecimentos bíblicos, morais e teológicos para o uso das freiras e ilustrado com centenas de miniaturas onde se encontra um autorretrato dela rodeada de freiras.

Pintura de Christine de Pisan
Christine de Pisan (1364-1431), que foi uma pioneira e uma das primeiras “intelectuais”, deplorou a situação de inferioridade das mulheres em seu livro “A cidade das mulheres”, escrito em 1405. Ela havia recebido uma efetiva educação, pelo fato de ser a filha do astrólogo de Carlos V. Em sua obra, Christine fala de uma utópica cidade onde as mulheres eram independentes e viviam em pé de igualdade com os homens. Ela fez menção também às pintoras, como Anastácia, uma ilustradora de luminuras parisiense que possuía grande reputação pela qualidade de seus desenhos, mas cujo trabalho não foi conservado.

Em 1528 na Itália, foi publicado o texto “O cortesão” escrito pelo humanista italiano Baldassare Castiglione, grande amigo do pintor Rafael. Este foi um livro que se popularizou bastante e nele o autor dizia - e recomendava - que os homens e mulheres deviam ser educados nas Artes Liberais em pé de igualdade e enfatizava que as mulheres deveriam participar ativamente do mundo das artes plásticas, literárias e musicais. Por causa deste texto, várias mulheres da nobreza puderam estudar. E claro que, por consequência, malgrado os freios sociais, houve uma floração importante de talentos femininos. Como elas não podiam, mesmo assim, participar de seções de estudos com modelos junto com os homens, todas elas passam a pintar seus autorretratos.

Autorretrato de Catarina van Hemessen
Sofonisba Anguissola foi uma das mais brilhantes aristocratas que soube aproveitar bem esta abertura. Junto com ela, Lavinia Fontana e Catarina van Hemessen começaram igualmente a se dedicar às Belas Artes e a se autorretratar. Mas elas não se retratavam sozinhas, mas sim como pintoras, musicistas ou leitoras, mostrando assim sua alta educação.

Mas havia ainda um grande entrave ao desenvolvimento e evolução da carreira feminina na pintura: a vida artística se dava nas Academias ou nos ateliês dirigidos por mestres, onde os aprendizes adquiriam conhecimento nas artes liberais, mas também aprendiam geometria e perspectiva, e sobretudo o estudo do corpo humano, seja com modelos vivos seja com cadáveres que se dissecavam. Mas às mulheres não era permitido participar… Uma ou outra mulher, quando era a filha de um desses mestres, participava dessas aulas, se fosse aceita pelos colegas.

Artemísia Gentileschi foi uma destas (leia post sobre ela aqui).

Ao norte da Europa também as mulheres pintavam, como as artistas Clara Peeters e Judith Leyster.

Então algumas conseguiram ter algum êxito, contornando de alguma forma os obstáculos, deixando para a posteridade retratos de mulheres que testemunharam a difícil participação ativa da mulher na sociedade, mostrando de forma clara que, apesar de tudo, eram mulheres de grande talento artístico.

Clara Peeters (1589-1657), nascida em Anvers, pintava desde seus 17 anos de idade. Se especializou em pintar a natureza e estudos de objetos, frutas e flores exóticas, compostos em naturezas-mortas. Mas também pintava retratos e fez autorretratos.

Judith Leyster (1609-1660), nascida em Harlem (atualmente faz parte da Holanda), era a filha de um cervejeiro local e não resta dúvida de que estudou com o pintor holandês Franz Hals (leia sobre ele aqui). Judith pintava paisagens, cenas do cotidiano e retratos. Ela foi uma das raras mulheres pintoras que participaram de guildas de artistas, em seu caso a Guilda de Harlem. Judith também teve diversos alunos em seu ateliê, prova de seu sucesso. Acabou casando-se com o pintor Jan Miense Molenart e se mudou para Amsterdam. Teve cinco filhos e com isso sua produção caiu bastante. Muito conhecida e prestigiada em seu tempo, ela foi progressivamente esquecida ao longo do tempo e da história da arte dominada por uma visão machista. Foi redescoberta em 1893 num quadro onde sua assinatura estava dissimulada sob uma falsa assinatura de Franz Hals. Mas ela foi uma grande pintora holandesa do século XVII...

Autorretrato de Judith Leyster (1609-1660)
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continua no próximo post
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Referência bibliográfica:
Histoire de moi - histoire des autoportraits, Yves Calméjane, Thalia Editions, Paris, 2006

sexta-feira, 29 de julho de 2016

A percepção da "coisa"

"Vênus ao espelho", Velázquez
“Esta coisa é a mais difícil de uma pessoa entender. Insista. Não desanime. Parecerá óbvio. Mas é extremamente difícil de se saber dela. Pois envolve o tempo. Nós dividimos o tempo, quando na realidade não é divisível. Ele é sempre e imutável. Mas nós precisamos dividi-lo. E para isso criou-se uma coisa monstruosa: o relógio.

(...) O relógio de que falo é eletrônico e tem despertador. A marca é Sveglia, o que quer dizer “acorda”. Acorda para o quê, meu Deus? Para o tempo, para a hora. Para o instante. Esse relógio não é meu. Mas apossei-me de sua infernal alma tranquila.

(...) Estou escrevendo sobre ele mas ainda não o vi. Vai ser o Encontro. Sveglia: acorda, mulher, acorda para ver o que tem que ser visto. É importante estar acordada para ver."

Clarice Lispector, em “O Relatório da Coisa”

Começo este texto sobre a percepção humana citando Clarice Lispector, a grande escritora brasileira que tem a capacidade de nos fazer enxergar - muitas vezes com certa angústia - o que há para ser visto do mundo...

Sim, porque não enxergamos direito.

"Autorretrato", Chardin, 1771
A visão humana ainda não se desenvolveu de forma plena ao longo de nossa evolução, segundo afirmou Harold Speed em 1924, no livro “Oil paintings techniques and materials”. Na arte - diz ele - muito mais é transportado à mente pelo olho do que imagens e sensações de cor. Mas pouca gente consegue ter consciência disso. Em geral, as pessoas veem menos do que há para ser visto. Diz ele que percebemos o mundo mais pelo toque do que pela visão e usamos o olhar apenas para conferir rapidamente a forma das coisas, muito mais do que as cores. Ao invés de enxergarmos as massas de cor, notamos mais a aparência sólida das coisas. A cor local de algum objeto qualquer sempre vai ser a forma como as pessoas descrevem os objetos, dizendo, por exemplo: “este vestido é verde”, ”esta mesa é vermelha”, “o céu é azul”, “as nuvens são brancas”... Só que a cor local varia enormemente ao longo do dia; mas ninguém descreve as diversas tonalidades de azul, amarelo, vermelho, ou seja, os valores de iluminação.

Muito lentamente temos desenvolvido a faculdade da visão, ao longo da evolução humana, enfatiza Harold Speed. “Abrimos os olhos gradualmente”.

Primeiro, desenhamos linhas que preenchemos com cor local. Muito tempo depois na história começamos a fazer os sombreamentos para indicar a forma e o volume das coisas de forma simples. Isso só aconteceu com o aparecimento do pintor italiano Botticelli, que viveu entre 1445 e 1510! Conseguir indicar a Luz e a Sombra dos objetos e figuras foi a grande descoberta técnica do século XV! Em seguida, incluímos as leis da perspectiva com os estudos de Masaccio e Leonardo da Vinci, que criou a técnica do sfumato, ou seja, a transição de valor entre a sombra e a luz em degradée, para dar mais volume às figuras.

Depois, ao longo dos últimos séculos, evoluímos para uma técnica que leva mais em conta o movimento das massas de cor e sua relação com a luz, do que os delineamentos alisados da arte acadêmica, da qual um dos maiores mestres foi o francês Jean Auguste Dominique Ingres. Ticiano introduziu esta forma de pintar, assim como Velázquez na Espanha, com pinceladas que se tornam livres das formas das coisas. Os pintores impressionistas do final do século XIX romperam com a forma delineada “onde erigimos nosso edifício técnico“ (Speed) e passaram a ver o mundo como padrões de cor. Na evolução da visão dos artistas seus olhos não enxergam mais objetos separados no espaço, como entes individuais e sem relação alguma com o seu entorno.

Mas… QUEM enxerga isso?

Muitos poucos!

Detalhe de pintura de Botticelli
A imensa maioria das pessoas ainda se liga na forma dos objetos e não importa se uma pintura segue a receita do delineamento acadêmico ou se ela tem seu foco nas massas de cor e valor. As observações vão ser sempre na mesma linha: céu azul, nuvem branca, mesa quadrada, mar verde, sol amarelo...

É preciso aprender a VER o mundo, pois a maioria não o vê:

“O espírito rítmico que pulsa através do universo e sustenta toda a vida mexe no fundo  do nosso ser e nos impele a buscar relação com a realidade invisível que espreita por trás do véu das aparências”, diz ainda Harold Speed. É este o estímulo básico do pintor. É, como diz James Abbot McNeill Whistler, artista norte-americano do século XIX:

“A Natureza é o teclado no qual o pintor interpreta”.

O que Clarice Lispector nos propõe, assim como Leon Tolstoi, o escritor russo, é o exercício da experiência do despertar. Despertar das banalidades do nosso cotidiano que está absolutamente impregnado de sentidos que não mais percebemos. Resgatar o olhar que se espanta com as coisas, recusando - mesmo que seja apenas como um exercício episódico - recusando as certezas. As banalidades, as trivialidades do dia a dia não podem obscurecer nossa percepção. É preciso pressentir o mistério aonde o óbvio parece dominar. É preciso desfazer os sentidos pré-determinados, tornados automáticos, e dirigir-se a horizontes inesperados; recusar os nomes impingidos às coisas pois as coisas não se resumem a seus nomes! 

“Acorda, mulher, acorda para ver o que tem que ser visto”, clama Sveglia a Clarice.

Pintura de Nicolai Fechin
Ir além do sentido já dado. Prestar atenção. Atenção. Parar e ver. Ver. Enquanto vemos somos vistos, pois a percepção é uma via de mão dupla, como nos mostram as observações científicas do mundo subatômico, onde as cadeias de relações entre tudo torna impossível um experimento que não sofra interferência do observador: “a realidade invisível que espreita por trás do véu das aparências” (Harold Speed).

Exatamente no ano de 1917 o escritor russo Victor Borissovitch Chklovski (1893-1984) publicou um texto intitulado “A Arte como procedimento” onde ele começa citando a frase “a arte é pensamento por imagens”. Neste texto, desenvolve a ideia que o tradutor brasileiro chamou de “Singularidade” e numa tradução francesa se dá o nome de “Estranhamento”. Esse conceito de Chklovski inspirou a estética teatral de Bertolt Brecht, por exemplo. Chklovski era amigo do poeta Maiakovsky e do escritor Maximo Gorki.

Segundo sua teoria, “o procedimento da arte consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção” o que tem o efeito de causar um sentimento de estranhamento, como a visão de um estrangeiro. As imagens, segundo ele, agrupam objetos e suas funções heterogêneas e explicam o desconhecido pelo conhecido. Para ele, há que se fazer um resgate da Singularidade das coisas.

Mostra Chklovski que ao longo dos séculos as imagens pouco se alteram. Uma montanha ainda está lá (pelo menos as grandes), cadeiras e mesas servem do mesmo jeito, assim como camas, mares, pores de sol, planetas, céu, fogo… o ser humano… Todo o trabalho do artista é acumulação e revelação de novos modos de mostrar as mesmas coisas. Mas a cada vez que olhar, ver como se fosse novo!

“Se examinarmos as leis gerais da percepção - diz Chklovski - vemos que uma vez tornadas habituais, as ações tornam-se também automáticas. Assim todos os nossos hábitos fogem para um meio inconsciente e automático; os que podem recordar a sensação que tiveram quando seguraram pela primeira vez uma caneta na mão ou quando falaram pela primeira vez uma língua estrangeira e que podem comparar esta sensação com a que sentem fazendo a mesma coisa pela milésima vez, concordarão conosco”.

"Cristo e a tempestade", Rembrandt
Pois a Arte libera os objetos do nosso automatismo perceptivo:

- “Para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra, existe o que se chama Arte”.

- “O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como VISÃO e não como reconhecimento” (grifo meu)

- “O ato de percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto; o que já é “passado” não importa para a arte”.

Chklovski diz que o escritor Leon Tolstoi é um exemplo de artista que vê e mostra os objetos fora de seu contexto e de seu automatismo. Ele viola o ritmo automático, leva à não previsibilidade. Ele jamais se contenta em usar uma palavra que mantenha o leitor em sua posição mais cômoda. Não, ele arranca o leitor do movimento automático dos olhos sobre o livro. Se o leitor está distraído, não acompanha o texto de Tolstoi.

Um leitor distraído e acomodado não lerá com tranquilidade Clarice Lispector. Ela leva às entranhas... Um leitor ansioso jamais lerá "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa. Há que se penetrar no mundo profundo do linguajar do sertão.

Um dos papeis do artista é, então, arrancar os cômodos de seu comodismo, obrigar as pessoas a tropeçar nas quebras de ritmo. Vivemos em um mundo que nos leva aos condicionamentos, ao automatismo cotidiano onde criamos nossa rotina robótica: acordamos, tomamos banho, café, pegamos o transporte, vamos ao trabalho (muitas vezes automático por si), almoçamos, conversamos trivialidades, vagamos pelas ruas com smartphones nas mãos e na atenção principal, retornamos a casa, vemos (ou não) tv, nos relacionamos com a família, dormimos… Fazemos enriquecer uma minoria, porque este automatismo todo interessa, e muito, ao sistema capitalista vigente...

O artista, então, é o que cria obstáculos, é o que surpreende, o que arranca do automatismo, mesmo que seja mostrando que “uma pedra é uma pedra”. E mostra que as as coisas estão diante de nós. Basta ver!

Paisagem com pedras de Gustavo Courbet
"Pescador no mar", William Turner
Natureza-morta de David Leffel
Pintura de Anders Zorn
"O Saltimbanco", de Antonio Mancini
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"Outra Margarida", Joaquin Sorolla
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"Lavabo", Antonio Lopez
"Sinfonia em branco", James McNill Whistler