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domingo, 4 de novembro de 2012

Mário de Andrade - Cartas do Modernismo

Mário de Andrade

Mário de Andrade, por Portinari
Uma exposição no Rio de Janeiro estará encerrando as comemorações dos 90 anos da Semana de Arte Moderna, completados neste ano de 2012, com diversas cartas de Mário de Andrade, um dos principais teóricos e idealizadores da semana que marcou as artes e a cultura brasileira no século XX. De 13 de novembro a 6 de janeiro de 2013, o público carioca poderá apreciar esta exposição que terá como local o Centro Cultural dos Correios, no centro da cidade.
Mário de Andrade manteve uma correspondência bastante grande com os mais importantes intelectuais e artistas, entre poetas, músicos, escritores e pintores. Através dessas cartas ele vai delineando seu pensamento sobre o modernismo brasileiro, o tema central das cartas dessa exposição no Rio.

São correspondências trocadas entre Mário e Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Candido Portinari, Di Cavalcanti, Enrico Bianco, Cícero Dias e Victor Brecheret. 

Mário de Andrade,
por Lasar Segall
Mas o outro tema da exposição de cartas são as Artes Plásticas, mostrando como Mário trocou ideias sobre o assunto com Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Henriqueta Lisboa. Mário de Andrade viveu um pouco de tempo no Rio de Janeiro e aprofundou sua amizade com Candido Portinari, como pode ser também observado através das cartas trocadas entre os dois amigos, que hoje pertencem ao acervo do Projeto Portinari.

Mário de Andrade possuiu uma boa coleção de obras de arte, seja porque ele comprou, seja porque tenha ganhado de presente muitas delas. O Instituto de Estudos Brasileiros da USP é que mantém a guarda de parte desse acervo e cedeu algumas dessas obras para a exposição. 

Entre elas estão "As Margaridas de Mário" de Anita Malfatti , "Mulher" de Di Cavalcanti, desenhos e aquarelas de Cícero Dias, Ismael Nery, Portinari, Segall, Zina Aita e Augusto Rodrigues. Também lá estão os três retratos do escritor feitos por Portinari, Lasar Segall e Enrico Bianco. De outras coleções, estão: "Chinesa" de Anita Malfatti e "Menina do Circo" de Di Cavalcanti.


Por causa da fragilidade dos papeis, a maioria das cartas serão apresentadas em fac-símile, e uma parte delas, para melhor compreensão, foi transcrita e impressa.

Carta-desenho de Anita Malfatti a Mário de Andrade
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Biografia suscinta:
Mário,
por Tarsila do Amaral
Mário Raul de Morais Andrade nasceu em São Paulo no dia 9 de outubro de 1893 e aqui faleceu no dia 25 de fevereiro de 1945. Foi poeta, romancista, historiador, crítico de arte, musicólogo e um dos principais teóricos do movimento modernista brasileiro do século XX.
Em 1922 lançou aquele que seria o ato inicial da poesia moderna brasileira: seu livro Pauliceia Desvairada. Estudou a cultura brasileira a fundo, desde a musicalidade dos nossos índios até o nosso folclore, trazendo à tona os valores culturais do nosso povo, num momento em que a burguesia brasileira conservadora e colonialista, se voltava para a cultura europeia.
Mário foi uma das figuras centrais dos movimentos de vanguarda em São Paulo, que influenciou todo o Brasil. Um dos líderes principais da Semana de Arte Moderna de 1922, ele continuou sua pesquisa sobre o modernismo e a cultura brasileira durante toda a sua vida. Foi poeta, escritor e ensaísta, mas também professor de música e colunista de jornal. Em 1928, resumiu sua pesquisa na cultura do povo brasileiro mais profunda no livro Macunaíma. Nos últimos anos de sua vida foi diretor do Departamento Municipal de Cultura da cidade de São Paulo.
Em homenagem a este grande intelectual, poeta e escritor brasileiro, reproduzimos abaixo um dos seus grandes poemas do livro Pauliceia Desvairada, Ode ao Burguês, que foi lido em um dos dias da Semana de 1922:
Ode ao burguês

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! O homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos,
e gemem sangue de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os "Printemps" com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! Ao burguês-tiburi!
Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano!
"— Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
— Um colar... — Conto e quinhentos!!!
Más nós morremos de fome!"
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!


Fora! Fu! Fora o bom burguês!...
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Serviço: 
Exposição: "Mário de Andrade - Cartas do Modernismo"
Abertura: 13 de novembro, às 19h
Visitação: 14 de novembro a 6 de janeiro de 2013
Local: Centro Cultural Correios
Rua Visconde de Itaboraí, 20 - Centro
Rio de Janeiro

sábado, 3 de abril de 2010

Nós, os antropófagos, e a Semana de 22

Cartaz da Semana de Arte Moderna de 1922
Em junho de 1556, os índios caetés – que habitavam uma parte do litoral alagoano – fizeram um verdadeiro banquete antropofágico: devoraram o primeiro bispo do Brasil (que era português), dom Pedro Fernandes de Sardinha. Por causa disso, os índios foram dizimados em cinco anos de guerra. “Tupi, or not tupi, that is the question”, diria Oswald de Andrade, 370 anos depois, em seu Manifesto Antropófago.

Em 1913, a Pinacoteca de São Paulo realizou uma Exposição de Arte Francesa, trazendo da Europa exemplares de mobiliário e decoração franceses, além de pinturas, com o intuito de inspirar, na sociedade paulistana, a estética do bom gosto europeu. A elite brasileira fazia questão, desde o século 19, de se manter em conformidade com a cultura europeia, importando os valores estrangeiros. Isso gerava também, é claro, alguns aspectos de distinção de classe, uma vez que não desejava ser confundida com negros, índios, mulatos, mestiços. Mais uma vez Oswald: “Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental”...

Mas o que esses dois fatos têm em comum? Exatamente a Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922, que se realizou há exatos 88 anos completados no próximo dia 13 de fevereiro.

A nata da sociedade paulistana que, naquelas três noites, subiu as escadas do Teatro Municipal de São Paulo – vestida rigorosamente à caráter para assistir a apresentações musicais de Heitor Villa-Lobos e Guiomar Novais, conforme dizia um pequeno reclame escondido num canto dos jornais da época – jamais poderia imaginar de que seria, muito à contragosto, testemunha histórica de um momento de virada na vida artística e cultural brasileira. Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Graça Aranha, Menotti Del Picchia, Di Cavalcanti, Anita Malfatti e outros jovens artistas brasileiros convencidos de que um salto havia que ser dado – um salto para DENTRO do Brasil, pois os ventos da modernidade forçavam esse salto – chocaram a platéia do teatro lotado, enquanto Ronald de Carvalho declamava em alto e bom som o poema “Os Sapos”, de Manuel Bandeira, que criticava o gosto da refinada poesia parnasiana:

“Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!"
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.”

As linhas neoclássicas dos detalhes arquitetônicos do Teatro Municipal pareciam vir abaixo! Vendo-se pega numa espécie de flagrante, a elite paulistana desabou em uivos, gritos e vaias, e o caos tomou conta da Semana de Arte Moderna de 1922. Nos dias que se seguiram, os jornais registravam aquele evento como uma “verdadeira falta de respeito” à gente tão refinada, à nata da sociedade paulistana! Um bando de rapazes e moças enlouquecidos, recitando poemas sem rima, sem metro, e mostrando pinturas e esculturas que eram um acinte ao gosto neoclássico e parnasiano da época! Um horror! As damas e os cavalheiros de Higienópolis e dos Campos Elíseos tinham sido acintosamente agredidos por aquele bando de loucos futuristas (denominação que se dava aos modernistas na época).

Mas além dos gritos histéricos e dos apupos, as senhoras e os senhores deixaram bilhetes malcriados atrás das pinturas expostas no hall do teatro, incapazes de achar beleza num homem que parecia sofrer do fígado de tão verde, numa tela de Anita Malfatti. Os modernistas haviam conseguido sacudir a modorrenta e provinciana elite de São Paulo, como o desejara Di Cavalcanti, que havia sugerido a Paulo Prado (escritor) a realização de "uma semana de escândalos literários e artísticos de meter estribos na burguesiazinha paulistana".

Eram os índios caetés de volta ao palco, sobre os ombros de Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Mário de Andrade, Di Cavalcanti e dos outros! A elite brasileira concentrada no Rio de Janeiro e em São Paulo, vivia sob os eflúvios da vida europeia, sua referência para todos os seus valores. A Europa estava lá para ser imitada e idolatrada! Nada da cultura da gentalha nacional, “peste dos chamados povos cultos e cristianizados”, diria Oswald de Andrade.

A Semana de Arte Moderna amplificou-se ao longo das décadas, e suas influências se seguiram além das três noitadas caóticas e ruidosas. Teriam feito ruído, os índios, enquanto comiam o bispo? Sua antropofagia alcançou os tempos novos que começavam com o modernismo brasileiro: já que “o de fora” é inevitável e deve ser assimilado, que ele seja primeiro deglutido! Deglutição pós deglutição, nas artes plásticas, Anita Malfatti e Di Cavalcanti, e depois Portinari, Tarsila do Amaral, Clovis Graciano, Carlos Scliar, Quirino e Hilda Campofiorito, Lívio Abramo – e tantos outros – expressaram em suas obras o efeito colateral da refeição cujo prato era (sempre) o modelo europeu: já que a nova estética exigia novos pincéis e novas formas de pintar, que se pintasse o Brasil. Que se modernizasse o Brasil.

Alguns dos modernistas de 22:
Mário de Andrade e outros
Essa onda modernista alcançava também o outro lado da cidade, a região do Brás e do Cambuci, aonde viviam os operários e os imigrantes pobres, como o pintor Alfredo Volpi. Esses artistas que estavam desse lado da cidade, criaram o chamado Grupo Santa Helena, que era uma comunidade de artistas que se encontravam para trabalhar e aprender juntos num mesmo prédio do centro de São Paulo. Desses modernistas de outro calibre – uma vez que não eram intelectuais como os outros – surgiram pintores como Rebolo, Aldo Bonadei, Clovis Graciano, Mário Zanini, etc, que foram reconhecidos a partir da década de 30.

Hoje, ano 454 da Deglutição do Bispo Sardinha, os efeitos da Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922 ainda continuam lançando suas questões: como defender a cultura brasileira em meio a um mundo “globalizado”? Como defender as artes plásticas dessa “arte” vazia de sentido e conteúdo, minimalista e cansativa (e já agonizante)? Como argumentar contra o idealismo conceitual que antecede a obra? Como permitir que possibilidades infinitas não sejam subjugadas pela mesmice estética imposta pelo sistema de arte atual? Como vencer o velho problema da falta de espaço para os reclames (e obras de arte) que não sejam os preferidos da mídia? Como continuar engolindo os novos Sardinha e não sofrer de indigestão? Como voltar a meter estribos na burguesiazinha metropolitana?

Oitenta e oito anos depois da eclosão modernista no Brasil, ainda vemos, felizmente, que os componentes e as facetas da realidade são riquíssimos e inumeráveis! À contragosto do atual establishment...

Como bons antropófagos, comamos-lhe!