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sexta-feira, 18 de setembro de 2015

A poeira do Tempo - 1

"Vanitas e autorretrato", David Bailly, óleo sobre tela
Há certo tipo de “natureza-morta” pintada ao longo do tempo por diversos artistas sob o título de “Vanitas”. São pinturas de caráter especial, uma vez que trazem como mensagem filosófica o tema da efemeridade da vida e da certeza da morte. 

É um tema muito antigo, que acompanha a história da arte desde os primórdios da história, mas tomou ainda mais fôlego por volta do século XVII, em especial na Holanda, em Leyden. Aquela região da Europa, por onde passou a Reforma Calvinista, propiciou uma atmosfera religiosa e intelectual onde também se gestou o tema de Vanitas.

Vanitas é uma palavra de origem latina, com fonte no livro do Eclesiastes, e significa "vaidade". O objeto que aparece em todas as pinturas com este tema é a caveira, o crânio humano. Ela traduz, de maneira simbólica e enfática, a nossa relação com a morte.

Mas por que um tema como este merece alguma atenção nos dias de hoje? Merece tanta, que resolvemos nos debruçar sobre este assunto e dividir este texto em três posts, em continuação.


O tema de Vanitas e o tema da Morte são cada vez mais atuais, mais contemporâneos. Chegamos num estágio da humanidade em que - imergidos num mundo onde as lutas pela sobrevivência, a fome e as guerras impelem milhares de pessoas pelos caminhos em busca de vida - pensamos, de fato, que estamos assentados bipolarmente em frente a uma caveira: de frente, encaramos o fato de que todos morreremos; de costas para ela, fazendo de conta que a ignoramos, criamos o caos à nossa volta.

Mas aqui é preciso dizer que este caos contemporâneo é intensificado pelo sistema capitalista e seu mercado financeiro atual que gera muito dinheiro que não existe e que pertence a poucos, enquanto lança a imensa maioria da humanidade nesta situação:

jornadas e cargas humanamente intoleráveis de trabalho
estresse diário com o tráfego nas metrópoles 
quase um bilhão de pessoas que passam fome em pleno 2015 
correntes migratórias que crescem em números astronômicos 
guerras, fabricação e vendas de armamentos pesados de guerra
fanatismos e radicalismos de toda ordem, religiosa e ideológica 
violência nas grandes cidades
existência de redes organizadas de traficantes de entorpecentes ilegais
violência policial
indústria farmacêutica que "cria" novas doenças e entorpecentes legalmente vendidos (nunca se vendeu tanto remédio para depressão como nos dias atuais)
políticos e executivos que se enriquecem a si mesmos com dinheiro público
imensa falta de perspectiva de felicidade num mundo voltado para a geração de lucro

Entre muitas coisas mais.

Falemos de Vanitas.


Mosaico de Pompeia
Fazendo uma passagem pelo livro de Umberto Eco “História da Feiúra”, em busca de saber mais a respeito do assunto, os caminhos da internet me levaram a encontrar um artigo acadêmico do professor português Luís Calheiros, que também é pintor e pesquisador de Teoria da Arte em Viseu, Portugal. Em seu texto, escrito de forma muito eloquente e com bastantes referências de imagens, me inspirei, assim como na leitura de Umberto Eco, que inclui também seu “Arte e Beleza na Estética Medieval”.

O tema de Vanitas, apesar de datado no tempo, o ultrapassa. Como já falamos, nos confrontamos no mundo atual com a atualidade desta questão, que nos acompanha desde que nascemos e que se intensifica na medida em que envelhecemos: a angústia causada pela consciência de que somos mortais. 

As pinturas feitas dentro do tema de Vanitas, mesmo as mais simples trazem dentro de si muita expressividade e significado. Muitas delas faziam alusões filosóficas de forma óbvia, pois traziam legendas que falavam da efemeridade da vida e da morte certa. Essas pinturas traziam em si um convite à reflexão sobre a precariedade dos prazeres mundanos, o vazio das ostentações vaidosas, o engano pelo apego excessivo às riquezas materiais de que se rodeia e “a realidade ameaçadora do triunfo final da morte”, como diz o professor Calheiros. Tudo isso explicitado através de um símbolo mais imediato e certeiro - a caveira.

Este tema chegou a ser moda no século XVI e durante todo o século XVII. No século XVIII ele ainda aparecia nas pinturas em toda a Europa.

Mas seu passado é ainda mais remoto. Desde o século XV, a representação solitária da caveira aparecia em diversos materiais de propaganda religiosa, anteriores e posteriores ao Concílio de Trento e ao surgimento da Reforma Protestante. O imenso afresco “Juízo Final” - cerca de 13 por 12 metros - pintado por Michelangelo no altar da Capela Sixtina entre 1535 e 1541, contribuía também para criar esse ambiente em que a morte estava sempre à espreita. Segundo Luís Calheiros, foi nessa fermentação de ideias que surgiram os primeiros sinais dos futuros estilos “tenebrista” e “maneirista” e, especialmente, do Barroco, que se espalharam por toda a Europa, atingindo outros continentes, como o nosso Brasil, posteriormente.

Mas o século áureo das naturezas-mortas (ou still-life em inglês, bodegón em espanhol e nature-morte em francês) foi mesmo o século XVI. Assim como o de Vanitas.

O significado direto de Vanitas, diz o professor, é sobretudo o de um “verdadeiro aviso”: uma “repreensão lapidar sobre a ignorante leviandade das vaidades mundanas; a inconsciência alheada dos excessos e finitudes várias do Homem - os seus vícios e horrores, as suas paixões desonestas, desvairadas de cegas, funestas; os seus apetites venais insaciáveis; as suas perigosas irracionalidades; as suas pulsões inconfessáveis; e, em geral, uma distância circunspecta por tudo o que se aprecia, sem freio e pudor, com desbragado hedonismo, neste mundo de carnalidades e materialismos primários, doentiamente consumista e fetichista, inundado pelos prazeres mais desatinados” (grifo meu).


"Por trás da máscara de beleza
espreita a morte", vanitas,
de Johann Caspar Lavater (1775-78)
 
E o aviso é: isto tudo tem fim!


Por isso, a presença da caveira nestas naturezas-mortas entra em contraste violento com objetos que a rodeiam: objetos de ostentação, de luxo, de erudição, de estudo, de pompa, de poder. A caveira é a terrível alegoria da morte próxima e justa, que atinge a todos sem distinção. “Um apelo ao instante arrependimento que tarda, pela vacuidade da vida guiada pela mais leviana ilusão, ao aproximar-se, com o triunfo derradeiro da morte, o severo fim para as frivolidades mundanas. São histórias contadas visualmente, narrativas exemplares, com um recorte moral fortíssimo, um registo severo de recriminação ética, com um alcance filosófico que poderemos chamar mesmo de proto-existencialista”, observa Luís Calheiros.

Se pretendia, com estas obras da pintura, “irmã da Poesia” - no dizer do poeta lírico romano Horácio - “traduzir o discurso melancólico-ascético, contemplativo, estóico, puritano, saído das convulsões ideológicas e religiosas do século XVI, um discurso condenador das materialidades mais apelativas do viver mundano, e ainda das atividades predadoras e hieraquizadoras do viver social com todo um rol de evidentes iniquidades, a injustiça revelada na desigualíssima distribuição dos bens e riquezas, a roda da fortuna separando implacavelmente os poderosos, que tudo possuem, dos expoliados que nada têm de seu, morrendo igualmente todos e tudo deixando, muito uns, outros pouco, (justiça final, ironia última do fim dos tempos!), das satisfações cegas dos prazeres mais primários e sórdidos, dum hedonismo fetichista cada vez mais generalizado - sinal dos tempos - a modernidade do capitalismo emergente”.

Essas naturezas-mortas intemporais, que tratam de temas mórbidos, fúnebres, macabros, tétricos - também anunciam todo o tempo a verdade mais radical de todas: a Morte é o fim último e derradeiro de todo ser que respira.

A composição destas pinturas sempre são feitas com estes tipos de objetos:


Vanitas de Pieter Claesz
Os que aludem à vida espiritual e contemplativa: livros, quadros, esculturas, máscaras, instrumentos musicais, máquinas e mecanismos científicos;
Os que representam a vida materialista e sensual, como: espelhos, colares, pérolas, jóias e outros adornos femininos, e ainda flautas e violas, símbolos fálicos e rotundos, moedas de ouro e prata, objetos preciosos, coisas de grande aparato, de ostentação e fausto, ricos panos de armar com as suas borlas de ouro fino, panejamentos drapeados dos mais requintados tecidos, veludos, sedas e brocados, desdobrando os seus bordados de ornato rico, coroas, tiaras, mitras, medalhas e outros adereços de honra, ou ainda armas, armaduras, elmos, escudos, emblemas heráldicos, e toda a panóplia de instrumentos bélicos e sinais de subida hierarquia
Os objetos que evocam a brevidade da vida física: ampulhetas e diversificados relógios, cronômetros, clepsidras, flores perdendo as pétalas e definhando, frutos apodrecendo, folhas secando e murchando, pedras desgastadas e rachadas, gretadas, velas apagando-se, cachimbos pousados, ainda a fumegar, taças de vinho tombadas
E o objeto-mor, sempre presente, a Caveira. Em algumas pinturas também se podem ver outros ossos como as tíbias, ou o esqueleto completo, muitas vezes erguendo um gadanho, a arrepiante foice da morte. 
Além de inscrições de aviso cruel sobre o fim dos fins, quase todas retiradas do livro do Eclesiastes, na Bíblia, observa Calheiros.
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Vanitas, de Pieter Boel

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Vanitas: a vida é passageira e o tempo urge

Vanitas, de Jacob de Gheyn, 1603

“Nesta cova em que estás, com palmos medida
é a conta menor que tiraste em vida.
É de bom tamanho, nem largo e nem fundo
é a parte que te cabe deste latifúndio”.
(Chico Buarque)





O tema da morte, representada por uma caveira, surgiu muito cedo na arte europeia da história mais recente, por volta do século XIII. Conhecida como VANITAS, era uma categoria especial de arte que sugeria que a existência terrestre é vazia, vã, cheia de sofrimento e que a vida humana não era tão importante, no fim das contas.

Este tema foi bastante popular na época da arte barroca, especialmente na Holanda. Diversos artistas, entre eles Holbein, trabalharam com este tema.

Essa denominação tem como origem o livro bíblico do Eclesiastes, do Velho Testamento, que diz em um certo trecho: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”. Traduzido como Vanitas, significa literalmente “sopro rápido, efêmero” e a mensagem que traz é a de que devemos meditar sobre a natureza passageira e vã do mundo e da vida humana, a inutilidade dos prazeres diante da morte que nos espia de perto.

 Vanitas, de Pieter van Steenwyck, séc. XVII
Esse tipo de pintura foi essencial para o surgimento da natureza-morta como gênero. Desde a época clássica de Grécia e Roma, por mais de mil anos o tema da representação pictórica de elementos como frutas, verduras, utensílios variados, etc, tinham sumido da pintura. A arte do período bizantino não utilizava esse tema. Na Idade Média, esses objetos só figuravam na pintura (em um grupo de pessoas, ou alguma outra situação) porque tinham algum sentido. No caso de Vanitas, todos os objetos ali representados são símbolos da fragilidade humana, da brevidade da vida, do tempo que passa e da morte. Em meio a todos os objetos que representavam essas ideias, a caveira era a mais recorrente. Em qualquer situação, ela poderia estar presente: no saber, na ciência, na riqueza, nos prazeres, na beleza...

Vanitas denuncia a relatividade do conhecimento e a vaidade humana diante do tempo que foge, e da morte que se aproxima.

A primeira pintura da história da arte ocidental dentro do tema seria a do pintor Jacob de Gheyn, de 1603. No período do Renascimento, que enfatizava o humanismo, esse tema foi bastante utilizado nas artes em geral. Tinha um papel moralizante e utilizado pelos cristãos sob formas e intenções diversas ao norte e ao sul da Europa, tanto por católicos como por protestantes. 

Pintura de
Charles Allan Gilbert, 1892
Mesmo que ele tenha antecipado a natureza-morta, ela só aparece como gênero independente no século XVII. É bom lembrar que Caravaggio (1571-1610) foi um dos primeiros a trazer o tema da natureza-morta para a pintura de seu tempo, pelo que foi criticado por seus contemporâneos que o acusavam de pintar temas “parados”, segundo Roberto Longhi (leia mais aqui). Também pintou caveiras em alguns de seus quadros, como em "São jerônimo escrevendo".

Em seu livro Arte e Beleza na Estética Medieval, Umberto Eco diz que na Idade Média havia um esforço dos cristãos em deslocar a contemplação da natureza para a contemplação da beleza da alma, citando o exemplo dos monges cistercienses (São Bernardo era um deles) que contrapunham a beleza interior à exterior, uma celeste e a outra terrena. Segundo essa filosofia, a beleza terrena é fugaz, como a flor que dura uma primavera e o corpo humano que envelhece.

Foi o período, conhecido inclusive na literatura, do tema do UBI SUNT, tema maior da Idade Média, que se perguntava: onde estão os grandes do tempo passado, as cidades belas do passado, as riquezas dos orgulhosos, as obras dos poderosos? Tudo acaba.

Ilustração de
Johann Caspar Lavaters,
1775
 
Na França, o poeta-bandido François-Villon escreveu o poema "Balada das damas dos tempos de outrora" ("Ballade des dames du temps jadis"), onde, ao final de cada estrofe, ele perguntava repetidamente: "mais où sont les neiges d'antan?" (onde estão as neves de antanho?) 

Dentro dessa forma de pensar, o caminho era buscar a beleza interior que não morre, porque a alma seria eterna.

Muito se pintou e se escreveu sobre o tema da morte, na arte ocidental, em todos os países. Mas para não ir muito longe, recordemos um poema do brasileiro João Cabral de Melo Neto: "Morte e Vida Severina".

Podemos dizer que este poema é um tema de Vanitas adaptado à situação do nordestino que vive pouco, pois morre de pobreza ou na luta pela terra. Abaixo um trecho do poema, que depois foi adaptado para uma canção por Chico Buarque de Holanda, "Funeral de um Lavrador", citada no início deste post:

Morte e Vida Severina:
Desenho para o filme de animação feito pelo cartunista
Miguel Falcão, que adaptou a obra de João Cabral

“ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO   
UM DEFUNTO NUMA REDE,   
AOS GRITOS DE "Ó IRMÃOS DAS ALMAS!   
IRMÃOS DAS ALMAS! NÃO FUI EU   
QUEM MATEI NÃO!"   

   — A quem estais carregando,   
irmãos das almas,   
embrulhado nessa rede?   
dizei que eu saiba.   
— A um defunto de nada,   
irmão das almas,   
que há muitas horas viaja   
à sua morada.   
— E sabeis quem era ele,   
irmãos das almas,   
sabeis como ele se chama   
ou se chamava?   
— Severino Lavrador,   
irmão das almas,   
Severino Lavrador,   
mas já não lavra.   
— E de onde que o estais trazendo,   
irmãos das almas,   
onde foi que começou   
vossa jornada?   
—  Onde a caatinga é mais seca,   
irmão das almas,   
onde uma terra que não dá   
nem planta brava.   
— E foi morrida essa morte,   
irmãos das almas,   
essa foi morte morrida   
ou foi matada?   
— Até que não foi morrida,   
irmão das almas,   
esta foi morte matada,   
numa emboscada.   
—  E o que guardava a emboscada,   
irmão das almas   
e com que foi que o mataram,   
com faca ou bala?   
— Este foi morto de bala,   
irmão das almas,   
mas garantido é de bala,   
mais longe vara.   
— E quem foi que o emboscou,   
irmãos das almas,   
quem contra ele soltou   
essa ave-bala?   
— Ali é difícil dizer,   
irmão das almas,   
sempre há uma bala voando   
desocupada.   
— E o que havia ele feito   
irmãos das almas,   
e o que havia ele feito   
contra a tal pássara?   
— Ter um hectares de terra,   
irmão das almas,   
de pedra e areia lavada   
que cultivava.   
— Mas que roças que ele tinha,   
irmãos das almas   
que podia ele plantar   
na pedra avara?   
— Nos magros lábios de areia,   
irmão das almas,   
os intervalos das pedras,   
plantava palha.   
— E era grande sua lavoura,   
irmãos das almas,   
lavoura de muitas covas,   
tão cobiçada?   
— Tinha somente dez quadras,   
irmão das almas,   
todas nos ombros da serra,   
nenhuma várzea.

(...)"

E abaixo a pintura de Candido Portinari, Os retirantes, grandiosa expressão do tema da morte:


Os retirantes, de Candido Portinari