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terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Chico, artista brasileiro

Pronto, 2015, se você quiser pode acabar!

Porque um rio de sentimentos invadiu minha alma nesta noite no cinema ao lado de casa… As palavras e as melodias foram sendo derramadas sobre mim, corpo, alma, e coração. Trouxe retrospectivas de vida a cada frase e a cada canção do filme “Chico, artista brasileiro”. As canções de Chico têm o dom de pinçar memórias da minha vida, como se houvesse uma de fundo musical para cada momento desses.

De repente eu era aquelas palavras e aquela voz cantando em som de preto velho explicando que “se a dona se banhou eu não estava lá, por Deus Nosso Senhor, eu não olhei sinhá!” O canto vinha dos recantos e dos mocambos mais escondidos desse meu país, vinha de há séculos, vinha da senzala onde se maltratavam os pretos, vem das favelas onde ainda se esmaga um povo inteiro, onde os atabaques choram grossas lágrimas cujos sons às vezes ninguém ouve: “Pra que me pôr no tronco? Pra que me aleijar? Eu juro a vosmecê que nunca vi Sinhá! Por que me faz tão mal com olhos tão azuis? Me benzo com o sinal da santa cruz!” Ah, meu Preto Velho, que só tinha chegado no açude atrás da sabiá…

Sabiá. Palavra das coisas da minha vida, canto que embalava minha adolescência triste, quando a vida pesava como um fardo e sem nem eu saber por quê… Nem onde ficava esse lugar para onde a minha alma queria ir embora: “Vou voltar, sei que ainda vou voltar para o meu lugar, foi lá e é ainda lá que eu hei de ouvir cantar uma sabiá”... Era a minha Caruaru que tinha ficado pra trás, de quem eu tinha me perdido pra sempre? De onde até hoje me sinto afastada, exilada, enquanto persigo a vida nesta metrópole dura onde ainda faço “tantos planos de me enganar como fiz enganos de me encontrar como fiz estradas de me perder fiz de tudo e nada de te esquecer!”

Nestas vitrines da cidade imensa, por onde caminho meus pés cansados de procurar meus próprios fantasmas, as ilusões que crio, os sonhos que sonho, a vida que era pra ser outra - ou outras -,  atravessando estas ruas augustas, estas calles onde tantas outras pernas passam por mim e onde a voz parece me perseguir dizendo que tinha me avisado “que a cidade era um vão: - Dá tua mão! - Olha pra mim! - Não faz assim! - Não vai lá não!”. Consolação e angélicas ruas dos meus maiores sonhos, os sonhos de uma busca pelo sentido maior de eu existir, fazendo algo de poesia, que floresça não com palavras, mas com pinceis, onde procuro pintar um não sei quê que ainda está dentro de mim e precisa ser arrancado ahhhhhhhhhhhh… Tanta coisa dentro de mim precisa ser arrancada!...

As ondas vêm e a gente pensa que elas se acabaram, mas elas voltam! As ondas do mar brincam na beira da praia de tomar impulso de parecer que deslizam que se espalham que se dissolvem na água para depois ressurgirem ainda mais gigantes, ainda mais tesas, com mais energia sobre os amantes que se banham com “as bocas salgadas pela maresia, as costas lanhadas pela tempestade naquela cidade”. Distante do mar estou. Estou longe das praias onde de noite eu gostava de mergulhar nua, sentir o prazer em meu corpo dos movimentos salgados das ondas, sensação maior de liberdade que eu podia ter! Ávida de mar! Mas as ondas da vida me empurraram para muito longe e tudo isso parece que ficou no sonho, na imaginação profunda da minha história, que ainda gosta de cantar em noite alta aquelas canções onde se contava de alguém que podia ser eu mesma e diz que “hoje é sabido todo mundo conta que uma andava tonta grávida de lua e outra andava nua ávida de mar. E foram virando peixes, virando conchas, virando seixos, virando areia prateada areia com lua cheia e à beira-mar”...

Num tempo em que quase nada eu tinha de meu a vida era passar as noites em longas conversas com meus amigos sobre os sentidos de tudo. “No palco, na praça, no circo, num banco de jardim, correndo no escuro”, pichando alguns muros, gritando em tintas para uma ditadura cair; era eu a que era feliz em possuir só o mar, o sol, a lua, as canções que eu e meus amigos cantávamos em voz alta por aquelas ruas estreitas com seus paralelepípedos que pareciam guardar aquelas casas velhas, adormecidas, cheias de tempo, indo em direção ao mar, à ponte que ligava pedaços de vida. Como saltimbancos, mendigos, malandros, moleques “poeta, palhaço, pirata, corisco, errante judeu, cantando, dormindo na estrada, no nada, no nada e esse mundo é todo meu!”

Mas pelo amor de Deus!....

“Pelo amor de Deus, não vê que isso é pecado desprezar quem lhe quer bem? Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém abandonado, pelo amor de Deus? Ao Nosso Senhor pergunte se Ele produziu nas trevas o esplendor, se tudo foi criado - o macho, a fêmea, o bicho, a flor, criado pra adorar o Criador? E se o Criador inventou a criatura, por favor! Se do barro fez alguém com tanto amor para amar Nosso Senhor? Não, Nosso Senhor não há de ter lançado em movimento terra e céu, estrelas percorrendo o firmamento em carrossel pra circular em torno ao Criador! Ou será que o deus que criou nosso desejo é tão cruel? Mostra os vales onde jorra o leite e o mel, e esses vales são... de Deus? Pelo amor de Deus, não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem? Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém abandonado? Pelo amor de Deus!”

“Consta nos astros, nos signos, nos búzios”, não consta em lugar nenhum! Nem adianta os autos, as bulas, os dogmas, os tratados, as teses, os dados oficiais, o destino, a ciência, os astros, os autos, os signos, os anúncios, as ciganas, os projetos, os profetas, as sinopses, os espelhos, os conselhos, os evangelhos, os orixás, as pautas, as novelas, os muros, os cartazes, os mapas, os lábios, os lápis, os Ovnis, o Pravda, a vodca… O certo é que continuo aqui, eu.

No dia a dia praticando o meu ofício, carregando os fardos que me cabem, arrancando leite das pedras, matando um leão todo dia, fazendo das tripas coração… Tudo isto fez o sentido todo, completo, nesta noite em que ouvi: “Quanto mais eu sei sobre o meu ofício, mais ele vai ficando difícil! Porque eu não posso parar nas coisas que já fiz, que já aprendi. Eu quero aprender o que eu ainda não sei”. EU QUERO APRENDER O QUE AINDA NÃO SEI, eu quero aprender o que ainda não sei, eu quero aprender o que ainda não sei! Eu quero! 

Neste meu rio de vida, de ladeiras, nesta encruzilhada onde “cada ribanceira é uma nação”. Nesta terceira margem, sigo em frente à minha maneira aguardando a “noite da grande Fogueira desvairada”. À minha maneira, os meus argumentos carregam “carradas de razão”! São Sebastião crivado, abri minha visão das coisas antes do trem estacionar naquela derradeira estação!

Mas antes, deixe eu baldear naquelas cidades, e um pouco mais ainda nesta! Me deixe um pouco mais ter voz ativa, em minha palheta de cores mandar, antes que aquela roda-viva-carregue-meu-destino-pra-lá… Onda se formando na beira da praia… Na beira da praia estarei daqui a poucos dias naquela cidade-ilha ouvindo as batidas do meu coração que nasceu em outro canto e por isso seu ritmo é em redondilhas de sete sílabas poéticas dos cordéis de meu Caruaru. Como estas aqui:

“O meu pai era paulista
Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano
Meu maestro soberano
Foi Antonio Brasileiro.

Foi Antonio Brasileiro

Quem soprou esta toada
Que cobri de redondilhas
Pra seguir minha jornada
E com a vista enevoada
Ver o inferno e maravilhas.

Nessas tortuosas trilhas

A viola me redime
Creia, ilustre cavalheiro
Contra fel, moléstia, crime
Use Dorival Caymmi
Vá de Jackson do Pandeiro!

Vi cidades, vi dinheiro

Bandoleiros, vi hospícios
Moças feito passarinho
Avoando de edifícios
Fume Ari, cheire Vinícius
Beba Nelson Cavaquinho!

Para um coração mesquinho

Contra a solidão agreste
Luiz Gonzaga é tiro certo
Pixinguinha é inconteste
Tome Noel, Cartola, Orestes
Caetano e João Gilberto...

Viva Erasmo, Ben, Roberto

Gil e Hermeto, palmas para
Todos os instrumentistas
Salve Edu, Bituca, Nara
Gal, Bethania, Rita, Clara
Evoé, jovens à vista!

O meu pai era paulista

Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano
Vou na estrada há muitos anos
Sou um artista brasileiro!”


Evoé, Chico Buarque de Holanda!

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Vanitas: a vida é passageira e o tempo urge

Vanitas, de Jacob de Gheyn, 1603

“Nesta cova em que estás, com palmos medida
é a conta menor que tiraste em vida.
É de bom tamanho, nem largo e nem fundo
é a parte que te cabe deste latifúndio”.
(Chico Buarque)





O tema da morte, representada por uma caveira, surgiu muito cedo na arte europeia da história mais recente, por volta do século XIII. Conhecida como VANITAS, era uma categoria especial de arte que sugeria que a existência terrestre é vazia, vã, cheia de sofrimento e que a vida humana não era tão importante, no fim das contas.

Este tema foi bastante popular na época da arte barroca, especialmente na Holanda. Diversos artistas, entre eles Holbein, trabalharam com este tema.

Essa denominação tem como origem o livro bíblico do Eclesiastes, do Velho Testamento, que diz em um certo trecho: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”. Traduzido como Vanitas, significa literalmente “sopro rápido, efêmero” e a mensagem que traz é a de que devemos meditar sobre a natureza passageira e vã do mundo e da vida humana, a inutilidade dos prazeres diante da morte que nos espia de perto.

 Vanitas, de Pieter van Steenwyck, séc. XVII
Esse tipo de pintura foi essencial para o surgimento da natureza-morta como gênero. Desde a época clássica de Grécia e Roma, por mais de mil anos o tema da representação pictórica de elementos como frutas, verduras, utensílios variados, etc, tinham sumido da pintura. A arte do período bizantino não utilizava esse tema. Na Idade Média, esses objetos só figuravam na pintura (em um grupo de pessoas, ou alguma outra situação) porque tinham algum sentido. No caso de Vanitas, todos os objetos ali representados são símbolos da fragilidade humana, da brevidade da vida, do tempo que passa e da morte. Em meio a todos os objetos que representavam essas ideias, a caveira era a mais recorrente. Em qualquer situação, ela poderia estar presente: no saber, na ciência, na riqueza, nos prazeres, na beleza...

Vanitas denuncia a relatividade do conhecimento e a vaidade humana diante do tempo que foge, e da morte que se aproxima.

A primeira pintura da história da arte ocidental dentro do tema seria a do pintor Jacob de Gheyn, de 1603. No período do Renascimento, que enfatizava o humanismo, esse tema foi bastante utilizado nas artes em geral. Tinha um papel moralizante e utilizado pelos cristãos sob formas e intenções diversas ao norte e ao sul da Europa, tanto por católicos como por protestantes. 

Pintura de
Charles Allan Gilbert, 1892
Mesmo que ele tenha antecipado a natureza-morta, ela só aparece como gênero independente no século XVII. É bom lembrar que Caravaggio (1571-1610) foi um dos primeiros a trazer o tema da natureza-morta para a pintura de seu tempo, pelo que foi criticado por seus contemporâneos que o acusavam de pintar temas “parados”, segundo Roberto Longhi (leia mais aqui). Também pintou caveiras em alguns de seus quadros, como em "São jerônimo escrevendo".

Em seu livro Arte e Beleza na Estética Medieval, Umberto Eco diz que na Idade Média havia um esforço dos cristãos em deslocar a contemplação da natureza para a contemplação da beleza da alma, citando o exemplo dos monges cistercienses (São Bernardo era um deles) que contrapunham a beleza interior à exterior, uma celeste e a outra terrena. Segundo essa filosofia, a beleza terrena é fugaz, como a flor que dura uma primavera e o corpo humano que envelhece.

Foi o período, conhecido inclusive na literatura, do tema do UBI SUNT, tema maior da Idade Média, que se perguntava: onde estão os grandes do tempo passado, as cidades belas do passado, as riquezas dos orgulhosos, as obras dos poderosos? Tudo acaba.

Ilustração de
Johann Caspar Lavaters,
1775
 
Na França, o poeta-bandido François-Villon escreveu o poema "Balada das damas dos tempos de outrora" ("Ballade des dames du temps jadis"), onde, ao final de cada estrofe, ele perguntava repetidamente: "mais où sont les neiges d'antan?" (onde estão as neves de antanho?) 

Dentro dessa forma de pensar, o caminho era buscar a beleza interior que não morre, porque a alma seria eterna.

Muito se pintou e se escreveu sobre o tema da morte, na arte ocidental, em todos os países. Mas para não ir muito longe, recordemos um poema do brasileiro João Cabral de Melo Neto: "Morte e Vida Severina".

Podemos dizer que este poema é um tema de Vanitas adaptado à situação do nordestino que vive pouco, pois morre de pobreza ou na luta pela terra. Abaixo um trecho do poema, que depois foi adaptado para uma canção por Chico Buarque de Holanda, "Funeral de um Lavrador", citada no início deste post:

Morte e Vida Severina:
Desenho para o filme de animação feito pelo cartunista
Miguel Falcão, que adaptou a obra de João Cabral

“ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO   
UM DEFUNTO NUMA REDE,   
AOS GRITOS DE "Ó IRMÃOS DAS ALMAS!   
IRMÃOS DAS ALMAS! NÃO FUI EU   
QUEM MATEI NÃO!"   

   — A quem estais carregando,   
irmãos das almas,   
embrulhado nessa rede?   
dizei que eu saiba.   
— A um defunto de nada,   
irmão das almas,   
que há muitas horas viaja   
à sua morada.   
— E sabeis quem era ele,   
irmãos das almas,   
sabeis como ele se chama   
ou se chamava?   
— Severino Lavrador,   
irmão das almas,   
Severino Lavrador,   
mas já não lavra.   
— E de onde que o estais trazendo,   
irmãos das almas,   
onde foi que começou   
vossa jornada?   
—  Onde a caatinga é mais seca,   
irmão das almas,   
onde uma terra que não dá   
nem planta brava.   
— E foi morrida essa morte,   
irmãos das almas,   
essa foi morte morrida   
ou foi matada?   
— Até que não foi morrida,   
irmão das almas,   
esta foi morte matada,   
numa emboscada.   
—  E o que guardava a emboscada,   
irmão das almas   
e com que foi que o mataram,   
com faca ou bala?   
— Este foi morto de bala,   
irmão das almas,   
mas garantido é de bala,   
mais longe vara.   
— E quem foi que o emboscou,   
irmãos das almas,   
quem contra ele soltou   
essa ave-bala?   
— Ali é difícil dizer,   
irmão das almas,   
sempre há uma bala voando   
desocupada.   
— E o que havia ele feito   
irmãos das almas,   
e o que havia ele feito   
contra a tal pássara?   
— Ter um hectares de terra,   
irmão das almas,   
de pedra e areia lavada   
que cultivava.   
— Mas que roças que ele tinha,   
irmãos das almas   
que podia ele plantar   
na pedra avara?   
— Nos magros lábios de areia,   
irmão das almas,   
os intervalos das pedras,   
plantava palha.   
— E era grande sua lavoura,   
irmãos das almas,   
lavoura de muitas covas,   
tão cobiçada?   
— Tinha somente dez quadras,   
irmão das almas,   
todas nos ombros da serra,   
nenhuma várzea.

(...)"

E abaixo a pintura de Candido Portinari, Os retirantes, grandiosa expressão do tema da morte:


Os retirantes, de Candido Portinari

domingo, 18 de março de 2012

Carlos, Thaís, Chico, Arte

Estudo com carvão
Hoje aqui se fez 50 mil acessos! 50 mil! Isso é para se comemorar! 50 mil acessos em menos de dois anos! Se comemorar quando esse mundo vasto mundo é mais belo por causa da pintura, por causa da poesia, por causa da música, por causa da arte. Vasto mundo que não é só violência, só crise, só morte, só tristeza: é também arte, também belo, também exaltação mais pura da alma humana. São 50 mil acessos em quase dois anos de um blog que só fala de arte...

O poeta Carlos Drummond
Mundo mundo vasto mundo...


Semana de comemorações. Fui ver o show-sarau em honra dos 100 anos de nascimento do poeta maior dos brasileiros: Carlos Drummond de Andrade. Com Zé Miguel Wisnik, Arrigo Barnabé, Luis Tati, Arnaldo Antunes, Leda Cartum (que conheci criança e recitou o poema "A moça e o padre" de forma tão bela, tão suave, tão Drummond). E o Emicida que passeava pelo palco questionando um José, um eu, um Maria José, um você, um de nós...

          "Com a chave na mão
          quer abrir a porta,
          não existe porta;
          quer morrer no mar,
          mas o mar secou;
          quer ir para Minas,
          Minas não há mais.
          José, e agora?
(...)
          Sozinho no escuro
          qual bicho-do-mato,
          sem teogonia,
          sem parede nua
          para se encostar,
          sem cavalo preto
          que fuja a galope,
          você marcha, José!
          José, para onde?"

E José Miguel Wisnik na coordenação do que ali se lia de poesia e que entoou "A Máquina do Mundo", um dos poemas mais belos da literatura brasileira. E que me fez voltar para casa, lágrimas nos olhos, pensando em como é bom ver grupos enormes, filas imensas, aglomerações gigantes de pessoas em torno da poesia, da música, da pintura. Da vida, enfim. Que Arte é vida.


Enquanto transitava pelas ruas abarrotadas de carro dessa cidade imensa, levando a poesia de Drumond em meu coração, ia lembrando frase a frase de "A flor e a náusea" porque eu também....


"Preso(a) à minha classe e a algumas roupas,
Vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me'?


Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.


Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase."


Sim, que tristes são. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase. Que triste é o mundo sem a poesia. Que tristes as coisas sem arte... Que tristes são os que perderam o rumo das coisas belas e que perderam as cifras e os códigos sob a pele das palavras e que já não desnudam-desvelam o real de debaixo de seus olhos... 

Thais Gulin
Mas na sexta, fui ver Thaís Gulin, poeta-cantora, completando as indagações perenes da minha alma de artista neste mundo vão, mundo quase cão. Caótico mundo complicado entupido das pasteladas de outras influências culturais que castram a nossa e com Thais Gulin eu repito que "prefiro os nossos sambistas" a esses outros que se sentem tanto tão:


"Tão homem tão bruto tão coca-cola nego tão rock n'roll
Tão bomba atômica tão amedrontado tão burro tão desesperado
Tão jeans tão centro tão cabeceira tão Deus
Tão raiva tão guerra tanto comando e adeus


Tão indústria tão nosso tão falso tão Papai Noel
Tão Oscar tão triste tão chato tão homem Nobel
Tão hotdog tão câncer social tão narciso
Tão quadrado tão fundamental


Tão bom tão lindo tão livre tão Nova York
Tão grana tão macho tão western tão Ibope
Racistas paternalistas acionistas...


Prefiro os nossos sambistas!"


Do coração-poeta-cantor-sambista da música que sai da alma dela que parece cantar na beira do cais num fim de tarde onde o mar e o céu já se fundiram numa só massa de luz:


"Vai pensar, em morar perto das mulatas
Vai pensar
Em concordar com as demoras, vai pensar
No tilintar da Lapa, vai pensar
Na confusão das horas cariocas.


Vai saber, de um cabaré nas docas
Vai saber
Se a noite somos todas pardas, vai saber
Que o que mais quero é não ter sardas, vai saber
Por que mulher, por quem me trocas?


Ah... por quem teu sol se põe?
- Eu não sei, eu não sei, eu não sei
Ah... e quem é que vai levar?
- Seja eu, seja eu, seja eu"


Seja eu...

Chico Buarque
Terminei meu périplo cultural de fim de semana indo ver de perto de novo Chico Buarque de Holanda. Eu e... quantos milhares de pessoas já viram e ouviram ou verão e ouvirão essa enxurrada de poesia em forma de música que sai das profundezas da alma de Chico? Quantas milhares de vozes entoaram, como hoje, junto com ele, num gigante coral de vozes de todas as idades, cantando que


"Sem você
É o fim do show
Tudo está claro, é tudo tão real
As suas músicas você levou
Mas não faz mal.
Sem você
Dei para falar a sós
Se me pergunto onde ela está, com quem
Respondo trêmulo, levanto a voz
Mas tudo bem..."


Tudo bem porque a vida vai em frente mesmo quando à deriva de ventos contrários, e o movimento de tudo nos obriga a caminhar, mesmo quando sirenes em estardalhaço nos tiram do sossego e criam medo em nós. Mas tudo bem quando todo esse reboliço vira arte e a gente esquece das mazelas quando canta, quando pinta, quando escreve, quando lê poesia, quando vê de fato o mundo.


E quando a gente é um com Carlos Drummond, Thais Gulin, Chico Buarque... Poesia, Música, Poesia.



Arte. Sem ela a vida não há. Ela "diz o indizível; exprime o inexprimível, traduz o intraduzível"... né, Leonardo da Vinci?



As coisas consideradas sem ênfase são tristes... Mas o poeta garante que uma flor nasceu. E hoje também é meu aniversário.



E viva a Arte!

domingo, 11 de setembro de 2011

Um outro tempo

Estudo de fluxo de luz, pastel em tons de cinza
Viver numa cidade grande como São Paulo, exige que sejamos capazes de superar limites de todos os tipos. O tempo turbilhona enquanto a produtividade alucinante acontece. O capitalismo exige produção, eficiência, aceleração. Sobre o suor de quem trabalha, tempo é dinheiro... Nessa vida doida, onde precisamos dar conta de tudo, nem atinamos para coisas que, em outro ritmo de vida, tocam, inspiram, elevam.


Mas o tempo é outro, outro o ritmo e outra a forma de olhar para o mundo, quando se cria. Uma maneira mais quieta, mais meditativa, mais reflexiva. Para a arte o tempo é outro e é preciso se afinar com esse tempo. É a única forma de perceber a sutileza das coisas do mundo. E a única para criar.




Como diz a música de Chico Buarque, o TEMPO E ARTISTA:


"Imagino o artista num anfiteatro onde o tempo é a grande estrela
Vejo o tempo obrar a sua arte, tendo o mesmo artista como tela
Modelando o artista ao seu feitio, o tempo, com seu lápis impreciso
Põe-lhe rugas ao redor da boca como contrapesos de um sorriso


Já vestindo a pele do artista, o tempo arrebata-lhe a garganta
O velho cantor subindo ao palco apenas abre a voz, e o tempo canta
Dança o tempo sem cessar, montando o dorso do exausto bailarino


Trêmulo, o ator recita um drama que ainda está por ser escrito
No anfiteatro, sob o céu de estrelas um concerto eu imagino
Onde, num relance, o tempo alcance a glória e o artista, o infinito."