27/11/2021
“Caminante, son tus huellas el camino y nada más; caminante, no hay camino, se hace camino al andar.” Há muito tempo atrás li, e não de todo entendi, este trecho do poema “Cantares” de Antonio Machado. É natural, já que há coisas que levam tempo para a gente entender, o tempo da experiência de vida. Mas antes de mais nada, é preciso ressaltar que este poeta espanhol, um quase desconhecido nas bandas de cá do Atlântico, foi vítima do fascismo espanhol, perseguido e exilado pelo governo assassino de Franco, que matou outro poeta, Federico García Lorca… Fascistas não suportam arte e artistas, como sabemos muito bem hoje em dia no Brasil governado por outro fascista, cujo nome é melhor nem dizer…
Mas lembrei desse poema porque eu havia sonhado um sonho que, por um tempo – meses -, estava envolto nas brumas da madrugada. Nem sempre a linguagem do sonho é clara. Quando sonhamos, vamos para os mundos dos símbolos, das imagens soltas na mente, das asas que nos permitem voar, da liberdade em sua maior acepção.
Falo do sonho que estou vendo, desde setembro, se transformar em realidade, e por isso a frase que abre este texto faz todo o sentido. Desde o ano passado fui me movendo na direção de algo que me atraía, mas que ainda não tinha se tornado claro. Os passos já estavam deixando pegadas, indicando algum caminho que traria uma reviravolta em minha vida: os movimentos da terra redonda me levaram para ser parte da Ecomunidade Bem-Viver, um projeto que já estava em andamento, meticulosamente trabalhado e pensado por esse grupo de mulheres que é uma verdadeira riqueza!
O grupo vem amadurecendo desde maio. Muitos chegaram, vários saíram, como na vida e na estação: “tem gente que chega pra ficar, tem gente que vai pra nunca mais, tem gente que vem e quer voltar, tem gente que vai e quer ficar, tem gente que veio só olhar, tem gente a sorrir e a chorar…!” (salve, Milton Nascimento e Fernando Brant!) Hoje somos doze, contando os casais. O sonho individual se tornou o sonho desta tribo que, sim, agora é bem real.
Os passos seguintes têm sido dados para encontrar a terra onde teremos nosso chão, nosso terreiro, onde coisas irão acontecer. Por essas sincronicidades insuspeitadas que a vida em movimento vai trazendo, a ancoragem está se fazendo na região de Cunha, confluência de três grandes cadeias de montanhas: a Serra da Mantiqueira, a Serra do Mar e a Serra da Bocaina, três gigantes deusas cuja formação geológica vem sendo feita em milhões de anos.
Muitos de nós já tinham ido ver outras inúmeras propriedades na região do Vale do Paraíba, desde Cunha, São Luís do Paraitinga, Lagoinha. Foram buscados também possíveis lugares como São Francisco Xavier e Monteiro Lobato, até Redenção e Natividade da Serra, todas cidades razoavelmente próximas a São Paulo, onde a maioria de nós vive atualmente. Essa busca por terra é bastante cansativa e dispendiosa. Diferente de procurar uma casa ou um apartamento, a terra precisa ser sentida, caminhada, verificada bem de perto porque muitos detalhes são importantes. Primeiro, a presença de água, depois a topografia do terreno, que precisa ter algum trecho plano, onde se possa construir casas. Há que se tomar cuidado com terras há muito tempo servindo de pasto para o gado, o que é bem comum nesta parte do interior de São Paulo. Ou terras com erosão. Dar preferência a um terreno que possua algum pedaço de mata, porque nossa ideia é plantar mais árvores, ajudar a terra a recompor sua flora e fauna. E há também que se considerar a dificuldade de acesso por estradas de terra. Ou seja, é necessário alguns critérios de escolha que torna, então, a busca um pouco mais complicada.
Há algumas semanas atrás, um jovem casal – ela bióloga, ele funcionário público – que já vivem na região de Cunha, aderiu ao nosso projeto, trazendo com eles muita experiência de vida no campo. E surpreendente sabedoria. Através deles soubemos de uma propriedade à venda que cumpria muitos daqueles requisitos. Depois de alguns encontros virtuais e presenciais, decidimos que valia a pena focar naquela região, pois Cunha possui, além de uma natureza muito rica, uma vida cultural bastante interessante. Os potenciais de realização de todos os nossos projetos são, então, muito viáveis por lá. Vários de nós somos artistas e também pretendemos incluir atividades desta área no projeto geral.
Viajamos, então, para Cunha para visitar algumas propriedades, em dois grupos, dois finais de semana. Como a região é íngreme, é preciso tomar cuidado para que o terreno seja também habitável. Sob o sol ardente daquela primeira manhã de domingo, descartamos uma, nos encantamos por outra. No final de semana seguinte, os outros que não estiveram presentes nesta primeira visita, foram ver de perto o terreno. Somadas todas as vantagens, descartadas as desvantagens, algum passo mais concreto será dado em breve. De resto, uma vez feita a escolha, é tratar de trabalhar muito para criar nosso pequeno oásis, onde possamos desfrutar do contato com Pacha Mama, abrindo todas as possibilidades para que mais de nós também possam participar da consecução deste sonho coletivo, que inclui o conceito do “Bem Viver”, ou o “Sumak kawsay” da cultura indígena, neste caso a Inca.
Depois de subir uma parte do terreno, onde as montanhas em volta se abriram 360 graus, olhei também para o céu azul do meio-dia. Eu gosto muito de olhar para o céu à noite, desde sempre. Há algum tempo faço um exercício, dentro da minha imaginação, que às vezes me enche de encantamento (e um pouco de pavor) diante da imensidão do cosmos: me vejo aqui plantada em minhas pernas tocando a terra que habita um sistema de planetas que giram em redor do sol, que gira em torno de uma galáxia, que gira em torno de outro grupo de galáxias que boiam no infinito do universo, que mantém em ação forças poderosas que permitem a todos nós estar aqui neste planetinha da periferia da Via Láctea… Às vezes, diante disso tudo, meu coração acelera e eu sou só gratidão: à Força Gravitacional, à Força-Fraca, à Força-Forte, a esses movimentos de forças centrífugas e centrípetas, macro e microscópicas, que nos permitem estar aqui bem vivos.
Voltando pra terra, vejo que este projeto é de uma ousadia que não tem tamanho, é revolucionário! É uma proposta de viver fora dos valores que impregnam a sociedade de consumo. Este modelo está esgotado. É só olhar as estatísticas (quem precisa delas) para ver que o capitalismo está destruindo nosso planeta, que responde com alterações climáticas inesperadas. O aumento da temperatura da terra já é tão real que está matando formas de vida das mais diversas, mundo afora. Mas esse sistema também está matando de fome milhões de seres humanos, enquanto uma pequena elite oportunista (essa gente que gera a “feia fumaça que sobe apagando as estrelas”) entope nuvens virtuais de bancos com suas moedas geradoras da desigualdade. Mais valia que houvesse mais igualdade…
Mas “você, da aristocracia, que tem dinheiro mas não compra alegria” há de encontrar a resistência de muitos, porque felizmente somos multidão. Há muita gente por aí sendo atraída por novos padrões de existência, opostos ao sistema atual que ameaça a vida. Nós, desta Ecomunidade Bem-Viver, nos juntamos aos grupos, aos movimentos novos e ancestrais, que pretendem resgatar na prática os princípios de solidariedade, de reciprocidade, de respeito e cuidado com os seres humanos, mas também com a Natureza, com o planeta Terra, pois somos somente um dos fios que compõem essa gigante teia da vida.
Os próximos passos prometem muito, pois o sonho poderá se tornar real em breve. Já estamos com os pés na estrada…