“Quem não tem o hábito de desenhar, não pensa a forma”.
Bandeira de Mello
Há poucos meses atrás um amigo me falou de Lydio Bandeira de Mello, um pintor carioca que insiste em não abandonar o caminho da arte figurativa. Fui procurar saber mais sobre ele, encontrei algumas coisas, poucas, além do seu próprio site. Meses se passaram, voltei a me lembrar de que devia um artigo sobre este mestre. Sim, mestre! Bandeira de Mello já tem mais de sete décadas na estrada da pintura figurativa, pintando em várias técnicas, ensinando muita gente em seu ateliê no bairro das Laranjeiras, Rio de Janeiro.
No próximo dia 20 de junho ele completará 87 anos. Nasceu em Leopoldina, interior de Minas Gerais. Mas quem conhece Lydio Bandeira de Mello? Quem já ouviu falar deste grande pintor na TV, no rádio, nos jornais, na mídia, enfim? Quase não se fala dele, se lembra dele, se comemora a carreira deste artista na mídia brasileira, que só tem olhos e ouvidos para “artistas” do mainstream monopolista da chamada “arte contemporânea” conceitual. Como se ele não fosse contemporâneo a nós… Mas, sabemos, não há democracia no mundo das artes plásticas hoje…
Desabafo feito, vamos ao que interessa, sua vida e sua obra.
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"Enterro no sertão" |
Lydio Introcaso Bandeira de Mello começou seu caminho nas artes plásticas com apenas 6 anos de idade, quando uma vizinha lhe emprestou algumas tintas. Logo, logo seu pai lhe deu de presente seu primeiro material de pintura. E passou a ter orientações do professor Funchal Garcia, amigo de seu pai, que Bandeira de Mello define como “alguém que possuía a inventiva e técnica do pintor, mas também a fantasia heroica de Dom Quixote, sempre disposto a levantar sua lança na defesa dos fracos e oprimidos”.
Aos 17 anos de idade, o jovem Lydio resolveu ir para o Rio de Janeiro estudar na Escola Nacional de Belas Artes. Para isso, recebeu imediatamente o apoio dos pais, pessoas cultas e que sabiam o verdadeiro valor de incentivar seu filho no mundo das artes. “Quando eu disse a meu pai que queria ser pintor e estudar na Escola de Belas Artes, minha mãe fez uma festa!”, conta ele. Seu pai, Lydio Machado Bandeira de Mello, era um intelectual: advogado, escritor, filósofo e matemático. Ambos, pai e mãe, deram uma boa formação humanística ao filho. Quando seu pai morreu deixou 69 livros publicados.
Bandeira de Mello chegou na Escola Nacional de Belas Artes em 1947.
A Escola Nacional de Belas Artes foi fundada em 12 de agosto de 1816, através de um decreto assinado por Dom João VI. Neste ano, ela completa 200 anos de existência, e se chama atualmente Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ. Inicialmente se intitulou de Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, tendo sido criada para receber a Missão Artística Francesa, que veio para trazer ao Brasil o ensino oficial de arte, baseada na escola acadêmica da França. Após a independência do Brasil, em 1822, passou a ser chamada de Academia Imperial de Belas Artes. Com o advento da República, mudou para Escola Nacional de Belas Artes.
Quando Lydio chegou lá, a academia era um caldeirão de discussões e disputas entre a tradição e as novas estéticas trazidas pela modernidade. Mas Lydio não se interessou muito pelas discussões trazidas pelos defensores das novas estéticas; estes aboliam a técnica, o domínio sobre o desenho, o respeito aos mestres do passado. Bandeira de Mello só pensava em uma coisa: desenhar e pintar! “Pela arte o homem rompe o estado de clausura da consciência e se religa ao universo”, diz ele. Seguiu o caminho árduo mas apaixonante de buscar o domínio sobre a forma, caminho que ele persegue até hoje aos 87 anos de idade.
Lydio Bandeira de Mello também diz que não pode haver qualquer concessão para aquele que deseja seguir este caminho. Para ele, é fundamental aprender as técnicas da pintura e do desenho, dominar seus instrumentos, “submeter a mão ao domínio da mente, até que ela se torne a própria extensão de seu pensamento criador.” Somente sobre o aprendizado técnico é que o artista poderá construir sua própria linguagem com segurança, ensina ele.
Em seu período na Escola Nacional de Belas Artes, Bandeira de Mello conheceu diversos artistas brasileiros importantes na época, como Quirino Campofiorito, a quem admirava de modo especial. Além dele, teve como mestre o professor de desenho Calmon Barreto que, com suas aulas com modelo-vivo ensinava aos alunos como criar uma sintonia entre a visão e as linhas que moldam o corpo humano. Lydio diz que era obrigatória, naquela época, uma carga horária de 900 horas de estudo de modelo-vivo… “Hoje em dia, lamenta ele, as pessoas que querem aprender a desenhar, são obrigadas a buscar este conhecimento fora das escolas de arte”.
Outro professor que lhe influenciou muito foi Edson Motta, que além de enfatizar a importância do aprendizado das técnicas de pintura, incentivava os alunos a se interessar pelos aspectos técnicos do material de pintura, como sua química, seus diversos comportamentos físico-químicos envolvidos em uma pintura, seja à óleo, seja em têmpera, afresco, etc. “A verdadeira cozinha da pintura”, observa Bandeira.
Sua trajetória inteira tem sido construída dentro do seu fascínio pela pintura figurativa. Ainda hoje, em seu ateliê das Laranjeiras, Bandeira de Mello produz, indiferente àqueles que defendem o modelo preferido pela mídia atual. Sua pintura é sólida, intensa, beirando o Expressionismo, e demonstra que por trás há, sim, muito conhecimento técnico.
Sendo senhor do seu ofício, mesmo assim ele não se deixa ficar em zonas de conforto, pois cair nesta armadilha é mortal para quem quer manter-se na busca do domínio sobre a forma. Este caminho é por vezes árduo, exige disciplina, dedicação, paixão.
O poeta gaúcho Walmir Ayala narra em seu texto que faz parte do livro “Bandeira de Mello - a arte do desenho”, um episódio que ocorreu com o estudante Lydio Bandeira de Mello: “Marca indelével a do contato com Carlos Chambelland, um mestre do claro-escuro, exigente e rigoroso. Conta Bandeira de Mello que certa feita tinha acabado de fazer um nu, em tamanho natural, no qual trabalhou durante duas semanas, especialmente nos valores do claro-escuro. ‘Terminado o trabalho, pelo menos para mim, o velho Chambelland aproximou-se, analisou e perguntou: - Tens um pano aí? Entreguei a ele um pedaço de pano e ele acrescentou: - Não sou eu que vou usar, é você. Bata o pano em cima desse desenho e apague tudo! Não discuti, apesar de um instante de íntima revolta. Feito isto, ele disse que o trabalho não estava ruim, mas que havia me provocado era para que eu compreendesse que era sempre possível fazer melhor, e ter coragem de recomeçar’”. Bandeira sempre diz que seu mestre Chambelland parecia ter um fotômetro no olho, reconhecia os valores cromáticos como ninguém.
Ter coragem de recomeçar. Quem lida com qualquer tipo de treinamento em arte, sabe que essa é a chave para a evolução técnica. Não há atalho algum. Todo dia é um novo recomeço. E o caminho só termina quando a morte dá um fim a tudo… Por isso tem que haver paixão!
“Tecnicamente, Bandeira de Mello conhece seu ofício como raros”, disse o crítico de arte José Roberto Teixeira Leite. “Mas sabe também que a técnica não é um fim em si mesma e que o artista deve assimilá-la a tal ponto que é como se a tivesse esquecido, já.”
Em 1961, Lydio ganhou o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro, recebido no Salão Nacional de Belas Artes. Ao invés de ir para Paris, como fizeram quase todos os outros que receberam o mesmo prêmio, ele optou por ir à Itália, em busca dos mestres renascentistas. Acabou sendo convidado a restaurar o Santuário de Poggio Bustone, num lugarejo a cerca de 100 km de Roma. Este trabalho durou 8 meses, quando então “pintava pela manhã, caminhava à tarde e bebia vinho de noite”. São dois murais pintados na técnica do afresco que representam a confissão de São Francisco de Assis e outro com a aparição de um anjo ao santo.
Quando voltou ao Rio de Janeiro, Bandeira de Mello tornou-se professor de Desenho com Modelo-vivo na Escola de Belas Artes.
Angela Ancora da Luz, professora da atual Escola de Belas Artes da UFRJ, diz em seu artigo publicado no site do pintor: “Impossível não reconhecer um trabalho de Bandeira de Mello. O primeiro destaque é a força da forma. Entre as mais variadas temáticas que encontramos, a figura humana surge vitoriosa. Ela não possui apenas ossos e músculos, pele e fisionomia. Bandeira pinta a alma.”
Em seu ateliê, ainda hoje ele dá aulas aos muitos alunos que o procuram para estudar. A fila de espera sempre está cheia. Aos seus alunos, ele vai ensinando que o desenhista só consegue pensar se desenhar. Ele domina a técnica da Têmpera (pintura feita com pigmentos misturados ao ovo), da Pintura a Óleo, do Afresco. Além disso, suas mãos conhecem bem o toque dos lápis, dos carvões, dos pasteis. Ele mesmo fabrica suas tintas, ou quando as compra prontas é muito cuidadoso na escolha das marcas. Explica sempre aos discípulos o uso e propriedade dos materiais, dando exemplos de sua própria prática, contando causos de sua vida de pintor. Ele usa muito a técnica da têmpera com caseína. A caseína é feita com a proteína do leite, técnica milenar, que ele usa para pintar muitos de seus quadros.
Em 1970 ele ganhou o concurso público para pintar dois murais com 33 metros de comprimento por 4 metros de altura cada um. O trabalho é feito em têmpera sobre madeira e ele usou uma palheta de cores bastante restrita. O tema escolhido por Bandeira de Mello foi o trabalho humano, a relação do homem com a terra, “na pesca, na construção do homem heroico que conquista a vida pelo amor, no lazer do futebol, na simplicidade de tipos que revelam a marca nacionalista e regionalista do homem brasileiro”, diz Angela da Luz. Isso me lembra seu outro grande colega, Candido Portinari, que seguiu esta temática também em seus painéis, em especial o conjunto “Guerra e Paz”, que pertence às Nações Unidas e está no prédio de New York.
Atualmente, os dois painéis de Bandeira de Mello se encontram no prédio da Caixa Cultural, centro do Rio, inaugurado em junho de 2006. Em sua vasta obra, espalhada por vários lugares do Brasil, Bandeira de Mello já participou de dezenas de exposições coletivas e individuais. Seu trabalho também está presente no acervo do Museu Nacional de Belas Artes do Rio.
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Uma miúda amostra da extensa produção deste artista brasileiro: