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sexta-feira, 29 de julho de 2016

A percepção da "coisa"

"Vênus ao espelho", Velázquez
“Esta coisa é a mais difícil de uma pessoa entender. Insista. Não desanime. Parecerá óbvio. Mas é extremamente difícil de se saber dela. Pois envolve o tempo. Nós dividimos o tempo, quando na realidade não é divisível. Ele é sempre e imutável. Mas nós precisamos dividi-lo. E para isso criou-se uma coisa monstruosa: o relógio.

(...) O relógio de que falo é eletrônico e tem despertador. A marca é Sveglia, o que quer dizer “acorda”. Acorda para o quê, meu Deus? Para o tempo, para a hora. Para o instante. Esse relógio não é meu. Mas apossei-me de sua infernal alma tranquila.

(...) Estou escrevendo sobre ele mas ainda não o vi. Vai ser o Encontro. Sveglia: acorda, mulher, acorda para ver o que tem que ser visto. É importante estar acordada para ver."

Clarice Lispector, em “O Relatório da Coisa”

Começo este texto sobre a percepção humana citando Clarice Lispector, a grande escritora brasileira que tem a capacidade de nos fazer enxergar - muitas vezes com certa angústia - o que há para ser visto do mundo...

Sim, porque não enxergamos direito.

"Autorretrato", Chardin, 1771
A visão humana ainda não se desenvolveu de forma plena ao longo de nossa evolução, segundo afirmou Harold Speed em 1924, no livro “Oil paintings techniques and materials”. Na arte - diz ele - muito mais é transportado à mente pelo olho do que imagens e sensações de cor. Mas pouca gente consegue ter consciência disso. Em geral, as pessoas veem menos do que há para ser visto. Diz ele que percebemos o mundo mais pelo toque do que pela visão e usamos o olhar apenas para conferir rapidamente a forma das coisas, muito mais do que as cores. Ao invés de enxergarmos as massas de cor, notamos mais a aparência sólida das coisas. A cor local de algum objeto qualquer sempre vai ser a forma como as pessoas descrevem os objetos, dizendo, por exemplo: “este vestido é verde”, ”esta mesa é vermelha”, “o céu é azul”, “as nuvens são brancas”... Só que a cor local varia enormemente ao longo do dia; mas ninguém descreve as diversas tonalidades de azul, amarelo, vermelho, ou seja, os valores de iluminação.

Muito lentamente temos desenvolvido a faculdade da visão, ao longo da evolução humana, enfatiza Harold Speed. “Abrimos os olhos gradualmente”.

Primeiro, desenhamos linhas que preenchemos com cor local. Muito tempo depois na história começamos a fazer os sombreamentos para indicar a forma e o volume das coisas de forma simples. Isso só aconteceu com o aparecimento do pintor italiano Botticelli, que viveu entre 1445 e 1510! Conseguir indicar a Luz e a Sombra dos objetos e figuras foi a grande descoberta técnica do século XV! Em seguida, incluímos as leis da perspectiva com os estudos de Masaccio e Leonardo da Vinci, que criou a técnica do sfumato, ou seja, a transição de valor entre a sombra e a luz em degradée, para dar mais volume às figuras.

Depois, ao longo dos últimos séculos, evoluímos para uma técnica que leva mais em conta o movimento das massas de cor e sua relação com a luz, do que os delineamentos alisados da arte acadêmica, da qual um dos maiores mestres foi o francês Jean Auguste Dominique Ingres. Ticiano introduziu esta forma de pintar, assim como Velázquez na Espanha, com pinceladas que se tornam livres das formas das coisas. Os pintores impressionistas do final do século XIX romperam com a forma delineada “onde erigimos nosso edifício técnico“ (Speed) e passaram a ver o mundo como padrões de cor. Na evolução da visão dos artistas seus olhos não enxergam mais objetos separados no espaço, como entes individuais e sem relação alguma com o seu entorno.

Mas… QUEM enxerga isso?

Muitos poucos!

Detalhe de pintura de Botticelli
A imensa maioria das pessoas ainda se liga na forma dos objetos e não importa se uma pintura segue a receita do delineamento acadêmico ou se ela tem seu foco nas massas de cor e valor. As observações vão ser sempre na mesma linha: céu azul, nuvem branca, mesa quadrada, mar verde, sol amarelo...

É preciso aprender a VER o mundo, pois a maioria não o vê:

“O espírito rítmico que pulsa através do universo e sustenta toda a vida mexe no fundo  do nosso ser e nos impele a buscar relação com a realidade invisível que espreita por trás do véu das aparências”, diz ainda Harold Speed. É este o estímulo básico do pintor. É, como diz James Abbot McNeill Whistler, artista norte-americano do século XIX:

“A Natureza é o teclado no qual o pintor interpreta”.

O que Clarice Lispector nos propõe, assim como Leon Tolstoi, o escritor russo, é o exercício da experiência do despertar. Despertar das banalidades do nosso cotidiano que está absolutamente impregnado de sentidos que não mais percebemos. Resgatar o olhar que se espanta com as coisas, recusando - mesmo que seja apenas como um exercício episódico - recusando as certezas. As banalidades, as trivialidades do dia a dia não podem obscurecer nossa percepção. É preciso pressentir o mistério aonde o óbvio parece dominar. É preciso desfazer os sentidos pré-determinados, tornados automáticos, e dirigir-se a horizontes inesperados; recusar os nomes impingidos às coisas pois as coisas não se resumem a seus nomes! 

“Acorda, mulher, acorda para ver o que tem que ser visto”, clama Sveglia a Clarice.

Pintura de Nicolai Fechin
Ir além do sentido já dado. Prestar atenção. Atenção. Parar e ver. Ver. Enquanto vemos somos vistos, pois a percepção é uma via de mão dupla, como nos mostram as observações científicas do mundo subatômico, onde as cadeias de relações entre tudo torna impossível um experimento que não sofra interferência do observador: “a realidade invisível que espreita por trás do véu das aparências” (Harold Speed).

Exatamente no ano de 1917 o escritor russo Victor Borissovitch Chklovski (1893-1984) publicou um texto intitulado “A Arte como procedimento” onde ele começa citando a frase “a arte é pensamento por imagens”. Neste texto, desenvolve a ideia que o tradutor brasileiro chamou de “Singularidade” e numa tradução francesa se dá o nome de “Estranhamento”. Esse conceito de Chklovski inspirou a estética teatral de Bertolt Brecht, por exemplo. Chklovski era amigo do poeta Maiakovsky e do escritor Maximo Gorki.

Segundo sua teoria, “o procedimento da arte consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção” o que tem o efeito de causar um sentimento de estranhamento, como a visão de um estrangeiro. As imagens, segundo ele, agrupam objetos e suas funções heterogêneas e explicam o desconhecido pelo conhecido. Para ele, há que se fazer um resgate da Singularidade das coisas.

Mostra Chklovski que ao longo dos séculos as imagens pouco se alteram. Uma montanha ainda está lá (pelo menos as grandes), cadeiras e mesas servem do mesmo jeito, assim como camas, mares, pores de sol, planetas, céu, fogo… o ser humano… Todo o trabalho do artista é acumulação e revelação de novos modos de mostrar as mesmas coisas. Mas a cada vez que olhar, ver como se fosse novo!

“Se examinarmos as leis gerais da percepção - diz Chklovski - vemos que uma vez tornadas habituais, as ações tornam-se também automáticas. Assim todos os nossos hábitos fogem para um meio inconsciente e automático; os que podem recordar a sensação que tiveram quando seguraram pela primeira vez uma caneta na mão ou quando falaram pela primeira vez uma língua estrangeira e que podem comparar esta sensação com a que sentem fazendo a mesma coisa pela milésima vez, concordarão conosco”.

"Cristo e a tempestade", Rembrandt
Pois a Arte libera os objetos do nosso automatismo perceptivo:

- “Para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra, existe o que se chama Arte”.

- “O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como VISÃO e não como reconhecimento” (grifo meu)

- “O ato de percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto; o que já é “passado” não importa para a arte”.

Chklovski diz que o escritor Leon Tolstoi é um exemplo de artista que vê e mostra os objetos fora de seu contexto e de seu automatismo. Ele viola o ritmo automático, leva à não previsibilidade. Ele jamais se contenta em usar uma palavra que mantenha o leitor em sua posição mais cômoda. Não, ele arranca o leitor do movimento automático dos olhos sobre o livro. Se o leitor está distraído, não acompanha o texto de Tolstoi.

Um leitor distraído e acomodado não lerá com tranquilidade Clarice Lispector. Ela leva às entranhas... Um leitor ansioso jamais lerá "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa. Há que se penetrar no mundo profundo do linguajar do sertão.

Um dos papeis do artista é, então, arrancar os cômodos de seu comodismo, obrigar as pessoas a tropeçar nas quebras de ritmo. Vivemos em um mundo que nos leva aos condicionamentos, ao automatismo cotidiano onde criamos nossa rotina robótica: acordamos, tomamos banho, café, pegamos o transporte, vamos ao trabalho (muitas vezes automático por si), almoçamos, conversamos trivialidades, vagamos pelas ruas com smartphones nas mãos e na atenção principal, retornamos a casa, vemos (ou não) tv, nos relacionamos com a família, dormimos… Fazemos enriquecer uma minoria, porque este automatismo todo interessa, e muito, ao sistema capitalista vigente...

O artista, então, é o que cria obstáculos, é o que surpreende, o que arranca do automatismo, mesmo que seja mostrando que “uma pedra é uma pedra”. E mostra que as as coisas estão diante de nós. Basta ver!

Paisagem com pedras de Gustavo Courbet
"Pescador no mar", William Turner
Natureza-morta de David Leffel
Pintura de Anders Zorn
"O Saltimbanco", de Antonio Mancini
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"Outra Margarida", Joaquin Sorolla
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"Lavabo", Antonio Lopez
"Sinfonia em branco", James McNill Whistler

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Anotações finais

Final da Calle de Alcalá quando encontra com a Gran Vía, Madrid
Aos domingos, por aqui em Madrid, tem a famosa Feria del Rastro, uma feirinha enorme onde se vende de tudo o que se possa imaginar, principalmente de coisas usadas e antigas. E o preço é muito bom! Nada a ver com os altos preços da feira da Praça Benedito Calixto em São Paulo ou a do Bexiga. Aqui dá pra comprar muita coisa legal, e histórica, pagando um preço honesto. E tem de tudo mesmo!

Uma das ruas onde ocorre a
Feria del Rastro
Nestes dois dias em Madrid, depois que voltei da Andaluzia, tenho observado as pessoas. E tenho visto muitos negros de origem africana por aqui vendendo as mesmas bugigangas chinesas que eles vendem no Brasil. Muitos andando pela rua, olhar perdido, como se fossem turistas. Mas os turistas, como eu, voltarão para suas casas, para seu país. Eles não tem para onde voltar. Talvez nem por aqui, a não ser os albergues públicos. Ou las calles...

Hoje cruzei com um deles quando eu ia para o Museu do Prado. Era um homem alto, bonito, pele bem escura, e me disse, como deve ter dito para outros que passaram, arranhando seu espanhol, que precisava de algum dinheiro para comer, que estava desesperado de hambre! Dei-lhe dois euros, o pobre coitado nem conseguia me agradecer em espanhol, respondeu em francês, em seu francês africano...

Lembrei das inúmeras fotos que salvei em meu computador sobre a tragédia da travessia do mar mediterrâneo pelos africanos que fogem das guerras, da fome, das perseguições políticas em seus países do norte da África. Centenas já morreram tentando alcançar a Itália. Os que conseguem chegar ao continente europeu se espalham por aí, tentando buscar um recomeço de vida... Num lugar diferente, com gente tão diferente da sua, com culturas tão distintas. Quero tentar pintar isto.

Músicos de rua na Feria del Rastro
Olho para os que encontro aqui em Madrid e não consigo ver neles nada mais do que sobreviventes. Alguns olham para dentro de lojas, vendo os produtos. Só olhando, porque comprar por enquanto não dá... Os europeus estão reagindo a essas hordas de negros africanos invadindo seu continente. O preconceito aumenta, em especial no norte, mas também dá pra perceber, pelo menos aqui em Madrid, que o povo espanhol convive com esta situação. Compra as bugigangas chinesas, ajuda com esmolas, ajuda de algum jeito. Ou eles não estariam aqui. Ninguém melhor que os espanhóis para saber o que é contar com a ajuda dos estrangeiros, pois eles fugiram daqui, muitos para o Brasil, na época da ditadura franquista assassina.

Por falar em mendigos, só aqui eu vejo um tipo de mendigo que não vi ainda em lugar algum. Em primeiro lugar, toda igreja tem o seu mendigo na porta, esmolando, homem ou mulher. Em segundo lugar, há mendigos aqui que nunca em sua vida você identificaria como tal, não fosse o fato de eles estarem na rua e com um cartaz explicando sua situação. Como uma senhora bem vestida, alta e branca, que portava um cartaz dizendo que precisava de ajuda porque não tinha como sobreviver. Passei por vários jovens também, bonitos até, explicando que não há trabalho e eles precisam de ajuda. Já falei daquele que encontrei no primeiro dia aqui, na rua do hotel onde estou, que pedia dinheiro para wisky, cerveza ou marijuana...

Autorretrato de Anton Raphael Mengs,
uma das pinturas do Museu do Prado que me
chamou muito a atenção desta vez
Mas passei o dia hoje no Museu do Prado. Fui ver e rever as pinturas daquele lugar, que tanto encantam todos que vão lá. Ticianos, Rubens, Tintoretos, Carracis, Riberas, Goyas, Grecos, Mengs, Zurbaráns, Murillos, Fortunys, Sorollas, Velázquez... De encher os olhos!

Para minha sorte, hoje tinham vários artistas lá estudando os mestres, com seus cavaletes, pintando. Um fazia uma cópia de um José Ribera, outro de El Greco, outro de Rubens, outra de Velazquez, outro ainda de Rubens, "As três Graças". Lembrei das Três Graças que Alexandre Greghi está pintando lá em nosso Ateliê Contraponto em São Paulo, junto com um cara do grafite de rua. 

O artista daqui, que está fazendo uma cópia desta pintura de Rubens, se chama José. É jovem. Fiquei um tempão vendo ele pintar, ainda na fase da grisalha, que é uma primeira parte da pintura feita apenas com uma ou duas cores. Ele está fazendo com siena natural, sombra natural e branco. O desenho está perfeito. Quando ele parou um pouco, fui até ele conversar. Me disse que Rubens fez esta grisalha mesmo, e que ele já estava quase começando a colocar as cores. Quantos dias de trabalho até agora? Uns oito, dez dias. Mais quantos para acabar? No lo sé, me respondeu sorrindo.

Ontem dei andamento à uma pintura que comecei a fazer aqui, já dentro da busca pelos valores altos, pela luz. O quadro está ainda inacabado, mas está aqui no meu quarto, me olhando brilhantemente e eu satisfeita com ele. Fase nova... Vamos ver... Não posso dar continuidade aqui, vou acabá-lo em casa, porque a tinta não seca a tempo de eu viajar. Ou talvez nem termine, deixe como está, para registrar uma viagem que foi tão importante para mim, de tantas descobertas!

E a saudade do Brasil só cresce! Mais dois dias e chego. E começa uma nova etapa da minha vida.

Comecei a pintar este quadro em Madrid, para terminar no Brasil.
Com o foco nos valores mais próximos da luz.
 

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Só em Sevilha

Vista de parte da cidade de Sevilha, com o rio Guadalquivir
Minha última noite em Sevilla, após descansar da visita e das emoções do dia, foi passear pelas ruelinhas do casco antiguo, como se fala por aqui. E ver a noite chegar, trazendo aquela meia lua que aparece de lado contrário no meu Brasil, espelhada.

Sevilla nunca mais sairá do meu coração! Foram cinco dias muito intensos aqui e a viagem poderia terminar hoje, 27 de maio, porque já encontrei a resposta que vim procurar nesta viagem. E Sevilla me deu-a! Agora preciso trabalhar! Pintar!

Caminhei até cansar pelo labirinto das ruas estreitas e belas. Passei de novo pela Calle de la Góngora, onde se diz que nasceu e cresceu Velázquez, pra agradecer e me despedir. A noite começava a descer sobre a cidade, e as pessoas jantavam nos restaurantes pequenos em cantos de pequenas praças. De repente, um som me chamou a atenção, uma voz feminina cantando uma música que eu conhecia. Andei naquela direção e vi um casal jovem cantando... samba! Samba! "Tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor, se hoje pra você eu sou espinho, espinho não machuca a flor..." Parei, sorrindo, ouvindo, cantando junto. Quando terminaram, me aproximei e perguntei de onde eles eram, porque não eram brasileiros! Eram italianos, viveram na Bahia, adoram samba e agora cantam samba pelo mundo! Depositei dois euros na caixinha deles e segui meu percurso.

Vista da torre Giralda de dentro do
pátio do Alcazar
Sentei-me um pouco no parque do bairro Santa Cruz, o Jardim de Murillo (em homenagem a Sebastian Murillo, um dos pintores locais). Minha alma não cabia dentro do meu corpo. Uma felicidade imensa tinha tomado conta de mim e o samba foi só um pequeño regalo da vida. As coisas já vinham se delineando quando eu fui ao Museu do Prado, semana passada, me sentindo doente, corpo moído, amigdalite se instalando. Mas tinha parado diante de algumas pinturas que me trouxeram novas informações. Incrível como a cada vez que vamos a estes grandes museus e vemos estas grandes obras, um olhar novo surge! Por isso não posso deixar de viajar! Cada vez a gente se aprofunda mais!

Eu tinha visto lá um certo tratamento para as áreas de sombra com valor intenso, alguns até bem saturados. Nada de terras, opacidades. Apenas tratamento com os valores das cores, variação das temperaturas, etc. Bom, isto eu já sabia, mas as variações possíveis destes conceitos são infinitas! No museu Sorolla de novo me impressionou sua luz, como já falei.

Mas vir para Sevilla, ver esta luz que brilha aqui...! Posso arriscar em dizer que há muita semelhança de luminosidade entre a Andaluzia e o Brasil! O sol brilha! No verão, aqui faz 40 graus! As cores estouram nas fotos! As casas, as ruas, as pessoas, o rio Guadalquivir, os barcos... Tudo em valor alto!

Velázquez! Velázquez!... Sorolla! Sorolla!...

Mas eles são tão diferentes! Mas eles são tão iguais!

Depois que voltar a Madrid, neste sábado, volto ao Museu do Prado para rever o que vi e terminar de entender o que comecei. Ficarei lá o tempo que precisar para registrar o que for possível agora.

Como dormir depois deste dia? Quase não dormi! As idéias estavam dançando dentro do meu cérebro. E ainda tinha que acordar às cinco para pegar o trem às 6:40 na estação, em direção a Granada. Em direção à Alhambra de Granada.

Luciano, um amigo do Brasil, tinha me lembrado que em Sevilla viveu mais de dez anos meu conterrâneo, poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto. João Cabral escreveu dois livros de poesia sobre Sevilla. Um verso de uma delas resume tudo o que passei aqui:

"Só em Sevilha o corpo está
com todos os sentidos em riste,
sentidos que nem se sabia,
antes de andá-la, que existisse."



























terça-feira, 22 de novembro de 2011

O olhar do artista

David Leffel, artista plástico realista norte-americano nascido em 1931, é professor de desenho e pintura há muitos anos. Nascido em Nova Iorque, atualmente ele vive e trabalha no Novo México, região sudoeste dos EUA. Sua maneira de pintar é fortemente influenciada pela pintura do holandês Rembrandt. “Quando vi as pinturas de Rembrandt pela primeira vez – diz ele – no Metropolitan Museum of Art, elas me impressionaram imediatamente. Elas pareciam ter uma lógica qualquer que eu não via em nenhum outro artista”.

Intrigado com isso, ele mergulha no estudo da luz e seus efeitos sobre a realidade observada. Além de pintar, Leffel passou a ensinar e já publicou alguns livros sobre técnica de desenho e pintura. Terminei de ler, esta semana, um desses livros – o “Oil Painting Secrets from a master”. Alguns conceitos presentes nesse livro me chamaram a atenção, e faço um breve resumo deles aqui.

David Leffel segue os artistas que focaram sua pintura, e suas pesquisas, na luz. A luz, que guia o olhar do espectador através de uma pintura, encaminha o olhar até aquele ponto – ou aqueles pontos, no caso de outros artistas – onde o artista deu maior ênfase. Fisiologicamente, o espectador sempre irá olhar para as áreas iluminadas, pois o centro de interesse é dado pela luz. Mas, às vezes, é exatamente uma pincelada mais densa que interrompe o fluxo da luz que também pode segurar o olhar do observador. Leffel insiste em diversos momentos na ideia de que o pintor não pinta “coisas”, pinta a luz nas coisas. Ele não vê seu modelo como um conjunto de detalhes separados, mas o vê em termos de planos, de massa, de dimensão. Não pensa em desenho em termos lineares, mas em termos de movimentos de massa, porque pintar é semelhante a esculpir.

O pintor realista, observando seu modelo, não pensa em características especificas como “boca”, “nariz”, ou “olhos”; mas vê massas movendo-se para dentro e para fora, dando profundidade a uma imagem. É exatamente esse jogo das massas, no movimento entre a luz e a sombra, que vai dando materialidade ao modelo. Observando e avaliando a topografia corporal, o pintor usa os valores e as cores que simulam essa topografia. Mesmo quando pinta a sombra, ele pensa em temos de profundidade e de transparência.

Por isso, o segredo principal para se realizar uma grande pintura, segundo Leffel, está menos no domínio técnico e muito mais no modo como o pintor VÊ o mundo, como ele pensa o mundo. A realidade é a referência permanente do artista. Ele não pinta o que não está lá, ou o que ele não vê. Leffel diz que há uma propensão humana para colorir a realidade e muitos pintores utilizam cores idealizadas, muitas vezes inexistentes nas coisas. Tudo bem, é uma forma de pintar, como fizeram os impressionistas, por exemplo. Mas na pintura Realista, a grande diferença é que o artista pinta apenas aquilo que para ele é significativo da sua observação do mundo. Através do seu olhar, ele mostra como “pensa” o mundo, qual é sua atitude, sua capacidade de ver e de recortar no que vê aquilo que é necessário para que ele realize seu trabalho.

Por isso, “a parte mais fácil” no aprendizado da pintura é a parte técnica. A parte mais difícil é exatamente a formação dessa atitude nova frente ao mundo, um olhar sempre renovado para a realidade, tentando apreender cada momento, renunciando a qualquer tipo de projeção subjetiva sobre o que se vê. Não projetar no mundo o que se deseja, mas apreender do real aquilo que ele está mostrando e que a cada momento é novo.

Pensamento artístico

O que vemos daquilo que olhamos é limitado, pois tocamos apenas uma parte ínfima do Real a cada momento. Leffel observa que quando nosso olhar se foca num determinado ponto, todo o resto se ofusca. Um exemplo dado por ele: podemos ver uma sujeira no pára-brisa do carro, assim como uma pessoa na calçada a cem metros. Mas não conseguimos focalizar ambas as coisas ao mesmo tempo, pois nosso olhar é seletivo. Assim acontece com a pintura. Quando o pintor apenas copia o que vê, detalhe por detalhe, mesmo que isso demonstre um bom desempenho técnico, como é o caso dos pintores hiperrealistas, sua pintura sempre vai estar em desacordo com o Real. Para o pintor realista, é preciso o olhar que vai além do simples modelo, um olhar que compreende o que está lá e que se deve transferir visualmente para a tela. Esse artista vê seletivamente o mundo, vê com entendimento. O modelo é apenas uma referência.

Por isso, há um aspecto absolutamente importante que diferencia um artista talentoso de outros que apenas pintam: ele possui um conceito, ou seja, ele sabe o que está pintando, o que quer transmitir e traduzir daquela realidade específica. Ele pode ver a característica predominante que distingue cada objeto do mundo e que é importante pintar, pois ele guarda todo o tempo esse conceito em sua mente, um conceito que serve como guia tanto para sua observação do mundo, quanto para a forma como vai pintar sua tela. O conceito fornece ao artista os instrumentos para resolver os problemas que surgem: luz, ar, espaço, dimensão, forma, cor, valor, borda. Mas também mostra como a pintura irá ser “lida” pelo espectador, como ela será “vista”.

O conceito, então, é a essência. Isso facilita o processo criativo, pois trabalhando com um conceito, o pintor irá manter a técnica sob controle: saberá o que enfatizar e o que minimizar; terá um plano de ação, um senso do que está fazendo, qual é seu objetivo. Copiar não tem nada a ver com isso.

Dentro disso, Leffel segue orientando aquele que deseja ser um pintor realista, dando inúmeras dicas, do tipo: para ser digno de interesse, o ponto focal precisa ter luz suficiente, cor, textura e substância para capturar a atenção; lembrar sempre que a pintura é um todo e por isso não é bom se envolver muito cedo em resolver detalhes menores; é preciso ser seletivo; não assumir que a observação inicial está correta. É preciso estudar a matéria.

Acrescenta: por ter um conceito sobre o mundo, a pintura Realista, na verdade, é que é a pintura abstrata. O pintor usa configurações na pintura como: pinceladas diversas, estudos, rabiscos, cores, valores, que têm o significado de “pele”, “nariz”, “orelha”, “olho”, “maçã”, “grama”, “ar”, “espaço”… e por aí vai. Por outro lado, o chamado pintor abstrato é, na verdade, concreto. Manchas são realmente manchas! Atira tinta na tela, ou derrama, e é apenas isso: tudo começa e termina ali na tela, com manchas concretas, cores concretas espalhadas.

Quando se está pintando objetos, isto funciona. Mas quando se pinta objetos como resultado de um pensamento, isto é criatividade! Mas isso nada tem a ver com pintar “objetos abstratos” e é preciso um pouco de explicação. Na verdade, o pintor realista vê o modelo ali à sua frente, estuda, observa a incidência de luz nele, as sombras, cor local, a atmosfera em torno do modelo, ou seja, observa toda uma cadeia de relações muito grande que incide sobre seu modelo. Mas ele vê com um olhar diferente do olhar comum: ele vê através de seus conceitos sobre luz, cor, dimensão, movimento, espaço, tempo, causalidade… Mas o modelo ali à sua frente sempre é a referência principal e a pintura vai acontecendo nessa relação dialética entre o real e o olhar do artista que traduz em sua tela aquilo que vê.

Por isso, Leffel enfatiza a importância de aprender a pensar visualmente. Em outras palavras, o pensamento do pintor realista, enquanto pinta, não é do tipo “eu vou pintar um olho agora”, mas, sim, “eu vou colocar a luz contra a sombra.” Se a pessoa olha para o objeto dessa forma, irá começar a pensar assim, a pensar em termos de relatividade, “esta luz contra esta luz”, esta sombra em contraponto a esta luz… Pintar imagens significa resolver tecnicamente problemas estéticos. Não é um mistério. Não há nenhum aspecto da pintura que não possa ser discutido, ou, em termos pragmáticos, nada há nada que todo mundo não possa compreender. As grandes pinturas dos mestres, observa Leffel, possuem a característica da simplicidade e da universalidade de compreensão. Elas são evidentes, em vez de esotéricas. Elas falam com todos.

Diz ele, você pode pintar cinqüenta vezes a figura de uma laranja e a cada vez pode ser criativo, se a cada momento você a pode ver numa nova forma, uma laranja num contexto especifico de um momento dado. Os melhores pintores foram aqueles que tinham uma excelente compreensão do significado das coisas ao seu redor. Eles não foram simples copistas. Um bom pintor entende o significado e a importância do que ele vê.

Mas não existe nenhum “segredo” por trás disso, a não ser que o que faz um grande artista é sua capacidade de se debruçar sobre seu trabalho, de estudar, de pesquisar e correr todos os riscos. A admiração que os grandes artistas despertam até hoje, vem dessa capacidade que eles possuíam em “ver” realmente o mundo, em todos os sentidos. Mas grandes pintores foram apenas seres humanos que foram capazes de expressar em suas telas aquilo que viam do mundo, enquanto tentavam resolver os problemas técnicos que surgiam, para fazer com que sua pintura falasse o mais próximo possível a todos, inclusive aos espectadores de hoje. E todos eles, sem exceção, foram incansáveis estudiosos de sua arte e de seu mundo.