quarta-feira, 16 de julho de 2014

Pobre Anteu!

"A terra, ou o combate de Hércules e Anteu", pintura decorativa do teto de uma das salas
do Museu do Louvre em Paris, de Auguste Couder (1790-1873)
 Estou quase concluindo a leitura de um livro do poeta francês Paul Valéry, intitulado “Degas danse dessin” (Degas dança desenho), publicado em 1938 em Paris. Valéry escreve sobre seu amigo o pintor Edgar Degas, o célebre pintor das bailarinas. De tão importante, farei um próximo post sobre este livro aqui neste Blog, pois Degas é um dos grandes mestres franceses, pela vida e pela obra.

Mas antes vou falar de Anteu, porque Anteu me tocou, ao ler o que dele falou Paul Valéry. 


Vaso grego antigo, representando
a luta dos dois gigantes
Dá para falar deste gigante da mitologia grega sob diversas formas e vou me focar na que mais me toca: ele não podia ser separado de sua mãe, a Terra; precisava ter seus pés todo o tempo tocando o chão, sob pena de morrer.

Na lenda grega Anteu era filho de Poseidon (o Oceano) e de Gaia (a Terra). Ele habitava os desertos da Líbia, em uma caverna em cima de um monte, na região de Irasa, próximo ao Estreito de Gibraltar. Anteu havia prometido a seu pai, Poseidon, construir em sua honra um templo feito com todos os crânios dos humanos que atravessassem suas terras. Qualquer um que se aproximasse dele era vencido, pois Anteu possuía uma enorme força. Em suas lutas, cada vez que seu corpo era lançado contra a terra ele se levantava ainda mais firme, porque a Terra lhe restituía as forças.


Hércules e Anteu, gravura de
Gabriel Salmon (1485-1535), de 1528
Um belo dia surge em sua frente um outro gigante, Hércules. Na luta entre os dois, Anteu caiu três vezes por terra, mas isso só lhe fazia ainda mais forte. Hércules percebeu que quando Anteu caía, recuperava o vigor. O gigante, então, segurou Anteu pela cintura elevando-o para que não tocasse mais a terra. Com isso, Hércules manteve Anteu erguido no alto até que ele parasse de respirar. E ele morreu sem seu chão… Depois Hércules tomou para si a esposa do gigante morto.

Anteu foi sepultado na cidade de Tingis, que havia fundado, embaixo de um monte de terra. Conta a lenda que cada vez que se retirava alguma porção de terra da cova de Anteu logo começava a chover sem parar até que o buraco fosse fechado.

Essa lenda inspirou artistas ao longo da história, desde a antiga Grécia onde a luta entre os dois gigantes decoravam vasos e taças; na Idade Média, muitos desenhos foram feitos inspirados nessa fábula. E no século XVII o pintor espanhol Francisco de Zurbarán pintou um grande quadro intitulado “Hércules lutando com Anteu”.


"Hércules e Anteu", pintura
de Gregorio di Ferrari (1647-1726)
Para minha interpretação pessoal, essa é a história de todos os que são separados de sua terra, de todos os migrantes, dos quais faço parte, pois fui levada embora de Caruaru quando tinha 12 anos. Sair da terra natal para nunca mais voltar é a história de milhões de pessoas pelo mundo e de brasileiros como eu; e como eu sentem que uma parte de nós ficou para trás, de forma irrecuperável, enquanto carregamos dentro de nossas almas essa eterna sensação de deslocamento, de não-pertencimento a lugar nenhum, a gente alguma. 

Algo dentro de nós nos torna melancólicos por causa dessa separação que não tem volta. Mesmo se voltamos à nossa terra, já não somos nós, já não é ela a mãe, que agora se juntou a outro marido, o tempo que passou, que na lenda é o gigante Hércules. Quantas e quantas poesias, cordéis e canções foram feitas pelos meus conterrâneos nordestinos com esse tema da separação da terra natal! Desde a canção cantada por Luiz Gonzaga que vaticina: “Quem sai da terra natal em outro canto não para!” até o “Lamento sertanejo” de Dominguinhos, cujo refrão é cruelmente o retrato do que sentimos nós, os exilados: “Sou como rês desgarrada nesta multidão, boiada caminhando a esmo…” E o grande Graciliano Ramos que expressou os sentimentos inexpressáveis de quem vai embora, em seu livro “Vidas Secas”. 

Não, ninguém que não tenha vivido esta experiência é capaz de compreender profundamente a fábula de Anteu! Exatamente no momento em que ele é erguido e segurado acima do chão, separado de sua terra, e vai aos poucos vendo sua vida se esvair nessa agonia imensa de querer voltar a se sentir com os pés firmes sobre o chão, e sem poder…. esse momento de agonia, retratado no rosto da pintura de Gregório di Ferrari acima, é a agonia que toma conta do coração da gente que foi embora para sempre de sua terra… Esse sentimento permanece lá num recanto qualquer de nosso ser, como uma agonia. Eu saí de Caruaru; Caruaru não saiu de mim… Voltar jamais seria uma solução, pois o corte irremediável já foi feito!

E o mito se renova...


"Hércules lutando com Anteu", Francisco de Zurbarán, 136 x 153 cm, 1634

domingo, 13 de julho de 2014

Ateliê Contraponto - noturnos.

Ateliê Contraponto à noite, Mazé Leite, óleo sobre tela, 30 x 40cm, 2014
Travessa Dona Paula à noite, Mazé Leite, óleo sobre tela, 30 x 40cm, 2014

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Caravaggio eterno

São Francisco recebendo os estigmas, Caravaggio
Caravaggio, por
Ottavio Lioni
Dois acontecimentos marcarão neste mês de julho as comemorações dos 404 anos da morte do pintor italiano, Michelangelo Merisi de Caravaggio, ou simplesmente Caravaggio.

No primeiro, a obra “São Francisco recebendo os estigmas”, uma pintura do mestre do barroco italiano estará em exposição a partir de hoje, 11 de julho, na sala de exposições da Galeria de Arte Antiga do Castelo de Udine, cidade a nordeste da Itália.

A mostra está sendo organizada em torno dessa pintura do Castelo, que foi considerada durante muito tempo como um trabalho original do artista. Após anos de estudo cuidadoso verificou-se que ela na verdade é uma cópia, a melhor já feita, do original que está no Wadsworth Atheneum de Hartford, nos EUA. A intenção dessa exposição é mostrar os resultados desses estudos e todo o material documental que foi sendo adicionado a ele, para estudiosos do tema, assim como para o grande número de fãs do pintor italiano.

Nessa pintura “São Francisco recebendo os estigmas”, Caravaggio retrata um episódio da vida do santo de Assis, quando ele teria recebido em seu corpo os mesmos ferimentos de Cristo na cruz, segundo relata São Bernardo no relato da vida de São Francisco de Assis conhecido como “Il Fioretti”. O santo está deitado, como se estivesse prostrado e um anjo o acolhe nos braços, quase como uma versão da “Pietá”, que foi esculpida por Michelangelo, mostrando Maria com o corpo do filho nos braços.

Esta exposição estará aberta até 30 de novembro, em Udine, Itália.

Local do Memorial que guardará
os restos mortais de Caravaggio em Porto Ercole
O outro evento, acontece no próximo dia 18 de julho, em Porto Ercole, localizado na ilha de Malta, quando será inaugurado o memorial que vai abrigar os restos mortais de Caravaggio.

Quatrocentos anos após sua morte, os restos mortais de Caravaggio foram localizados por Silvano Vinceti, o presidente da Fundação Caravaggio, e uma equipe de especialistas, em uma igreja local, em 2010. Caravaggio morreu numa viagem em que, desesperado, voltava para Roma. Isso foi em 18 de julho de 1610.

A operação de traslado dos restos mortais do pintor para o memorial está sendo coordenada pela Fundação Caravaggio. Os ossos de Caravaggio serão depositados sob um arco branco criado pelo escultor Giuseppe Conte, coberto com uma cesta de frutas em cerâmica inspirado numa natureza-morta feita pelo pintor, tudo rodeado por cores e aromas de ervas do Mediterrâneo, como jasmins, lavandas e alecrins. A ideia é fazer uma homenagem a um dos maiores artistas de todos os tempos e que seus admiradores possam ter um lugar a mais aonde ir em busca da história e da memória do mestre italiano.

A inauguração do Memorial está programada para o próximo dia 18 de julho, data de sua morte. Durante a cerimônia, os restos mortais de Caravaggio serão sepultados neste local definitivo.
Cesta de frutas, Caravaggio, óleo sobre tela, 31 x 47, Pinacoteca Ambrosiana de Milão
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Para saber mais sobre o mestre Caravaggio, neste mesmo blog:

-- Caravaggio, arte e rebeldia

E MAIS:

-- José de Ribera, caravaggesco

segunda-feira, 7 de julho de 2014

A química da pintura

Imagem do site da Cozinha da Pintura
Há pouco mais de um ano conheci o artista-professor Marcio Alessandri e seu ateliê que tem um nome bastante curioso: Cozinha da Pintura. Localizado na zona norte de São Paulo, neste ateliê Marcio dá aulas de desenho e pintura seguindo o modelo clássico e sendo absolutamente fiel a ele, pois segue “os métodos da antiguidade com precisão científica”. Assim que se se familiariza com esse Ateliê, logo se verifica que o nome dele faz todo o sentido. Lá se pratica a pintura, assim como lá se estuda toda a parafernália que envolve a química dos materiais artísticos, como uma velha cozinha de alquimia e química.


O professor Marcio Alessandri
Formado em Artes Visuais no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, Marcio Alessandri é atualmente mestrando pela UNICAMP com pesquisa sobre a tecnologia de materiais artísticos históricos. Marcio foi diretor de Arte da MTV Brasil e ilustrador residente nos EUA, onde colaborou com diversas editoras locais. 

Mas um de seus focos principais é estudar a fundo toda a parte técnica dos materiais de pintura, como composição química, reologia dos materiais, especificidades técnicas de pigmentos, mediuns, solventes e todos os componentes fornecidos pela indústria química especializada em produtos para artistas.


Porque, para Marcio Alessandri, o artista deve ser também um pesquisador e profundo conhecedor dos materiais com os quais trabalha. Por isso, ele se dedica a estudar a história dos materiais e seu comportamento, assim com o estudo de técnicas dos mestres, especialmente os do Renascimento italiano. “Meu enfoque é exclusivamente a pintura a óleo", diz ele em seu site. "E dentre os muito assuntos possíveis, pesquiso principalmente óleos vegetais, resinas naturais e sintéticas, cargas inertes, pigmentos naturais e sintéticos, fatura artesanal e industrial de tintas, suportes, criação de paletas e técnicas pictóricas diretas e indiretas, tanto na antiguidade quanto na contemporaneidade”.


Pintura de Leonardo da Vinci: o método de
ensino da Cozinha da Pintura bebe nesta fonte
Eu fiz um curso de pintura renascentista na Cozinha da Pintura. Marcio Alessandri ensina desde o princípio como era o método de pintura dos mestres italianos: a preparação da placa de madeira como era feito no passado, usando cola de origem animal e aplicação de camadas de gesso que preparam a base que será pintada depois. 

Antes de passar para a pintura em si, o aluno aprende a produzir seus próprios pigmentos. E se prepara para refazer, na tela já preparada, uma cópia de um detalhe de pintura de Leonardo da Vinci, por exemplo. O processo de pintura se inicia por uma camada pintada apenas com o pigmento Sombra Natural, na qual, após a secagem, serão adicionadas novas camadas com cromas (cores) diferentes. Os pinceis usados são todos com pelos de marta natural, que são muito macios e permitem a pintura lisa e esfumada, característica dos pintores renascentistas. Ao longo do curso, Marcio também vai orientando e familiarizando os alunos com toda a química que envolve os processos pictóricos.


Além deste trabalho como professor de pintura, ele também dá workshops sobre todos os temas de seu conhecimento sobre os materiais artísticos, que são bastante variados. No site da Cozinha da Pintura, Marcio disponibiliza inúmeros artigos sobre os materiais, métodos e técnicas, o que tem ajudado muita gente a se especializar um pouco mais sobre esse vasto mundo da pintura a óleo. Neste sentido, a Cozinha da Pintura tem dado uma grande contribuição aos artistas brasileiros pela seriedade da pesquisa que vem sendo feita por este artista, assim como por sua generosidade em compartilhar esses conhecimentos.


Pote com pigmento granulado
A partir do próximo dia 19 de julho Marcio Alessandri estará abrindo uma série de cinco workshops no Centro de Arte da Casa do Artista, tradicional loja de venda de materiais para as artes em geral, na cidade de São Paulo. Os temas vão desde “Veículos, solventes e óleos secantes” e “Propriedades das tintas a óleo” até os que abordam os vernizes e os mediuns utilizados pelos pintores ao longo do tempo.

Esperamos que em breve o Ateliê Contraponto, do qual sou parte, possa programar alguns desses valiosos seminários em parceria com Marcio Alessandri e sua Cozinha da Pintura. Aguardemos!

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Salvador Dalí não foi só artista

"Figuras tumbadas en la arena", 1926, Salvador Dali - exposta no CCBB-Rio
Está em exposição no Rio de Janeiro, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) 29 pinturas e mais 80 desenhos, gravuras, fotografias e documentos do artista espanhol Salvador Dalí. Esta é a maior mostra deste artista já feita no Brasil e traz trabalhos seus desde os anos 1920 até seus últimos trabalhos. A partir do próximo mês de setembro, a exposição virá para São Paulo e estará aberta ao público no Instituto Tomie Ohtake em Pinheiros.


Salvador Dali
Essas obras foram escolhidas entre as do período surrealista do pintor e a ideia dos organizadores é que o público possa ver sua evolução artística através das diferentes influências que ele foi recebendo, não só técnicas como ideológicas. Do período de formação como pintor estão as obras “Retrato del padre y casa Es Llander”, de 1920 e “Autorretrato cubista” de 1923. Da fase surrealista são “Monumento imperial a mujer-niña”, de 1929, “El sentimiento de velocidad”, de 1931, “Figura y drapeado en un paysage”, de 1935) e “Paysage pagano medio”, esta de 1937. Mas há também outras obras e desenhos, como as ilustrações para o livro “Dom Quixote de La Mancha”, de Miguel de Cervantes, e “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carrol.

Estas obras vieram para cá cedidas pela Fundação Gala-Salvador Dalí, de Figueras, pelo Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofía, de Madri, e o Museu Salvador Dalí, da Flórida.

É uma exposição importante num ano em que o Brasil promove a grande celebração mundial que é a Copa do Mundo. E assim como os altos números produzidos pela Copa, os valores envolvidos nesta mostra também são altíssimos. O Instituto Tomie Ohtake há 5 anos negocia esta exposição no Brasil, que tem um custo de 9 milhões de reais, captados via lei Rouanet. O valor das obras está estimado em 170 milhões de dólares. Pois Dalí é, além de tudo, uma moeda muito rentável. Nos últimos 20 anos suas exposições em diversos países chegaram a movimentar 60 milhões de euros, segundo o jornal O Globo.


"La perseverancia de la memoria", 1931
Com toda a máquina que move o sistema atual do mercado de arte, apenas a Fundação Gala-Salvador Dalí faturou em 2012 15 milhões de euros! Entre os anos de 2001 e 2012 mais de cinco milhões de pessoas no mundo viram exposições de Dalí.

Mas… nem todo mundo gosta da obra de Salvador Dalí. Nem todo mundo gosta da figura de Dalí. Mesmo assim, há que se reconhecer que sua obra surrealista o coloca no cânone da arte mundial e que diversos de seus quadros pertencem ao imaginário coletivo, como o famoso quadro “La perseverancia de la memoria” de 1931, com aqueles relógios derretendo ao sol.

Do meu universo pessoal faz parte um outro quadro, o “Cristo de San Juan de la Cruz”, que me fazia viajar para o céu atrás da escuridão que ocupava todo o fundo da cruz de onde pendia um Cristo crucificado que parecia habitar uma dimensão fora da nossa. Aquele entardecer misterioso, com suas montanhas longínquas, faziam sonhar minha mente de adolescente católica e de algum modo me ancorava em algum dos meandros da minha imaginação…


"Cristo de San Juan de la Cruz"
Eu gosto dessas pinturas surrealistas que parecem tocar o manto fluido de algum outro mundo. Porque eu gosto de saber dos mistérios da vida, dos espaços sombrios do mundo, das cavernas, das tempestades, do mar agitado, das profundezas das montanhas, do vento gelado, dos trovões ensurdecedores, dos relâmpagos, terremotos e furacões. As revoluções - naturais e humanas - me causam espanto e encanto. Os desastres naturais me fascinam. Adoro saber que uma onda gigantesca varreu tudo o que encontrou pela frente ou que um enorme tufão causou destruições gigantes. Os grandes e pequenos movimentos do mundo criam uma atitude de reverência em mim, porque isso também prova a eterna capacidade de criação e de recriação que possuímos, nós e o mundo. Quantas vezes precisei me recriar… E agora mais uma vez!

A contemplação da Natureza - a natureza verde e a Natureza do mundo - abre essas portas para o que de Real há por trás da superfície das coisas. O que é o Real? Aquele instante em que nos deparamos com uma perda muito grande em nossas vidas e que nos silencia? Como em momentos em que vejo minha vida ser movimentada por algum mecanismo que foge ao meu controle e eu olho para o mundo com um olhar como se tudo se agigantasse diante de mim e se magnificasse em formas estranhas que me assustam? Como quando eu sou forçada a enxergar a minha miudeza diante da vida e me conformar com meu pequeno tamanho diante das imensidões ao meu redor?


"Cesta de pães", 1926
Pronto, acabei de mergulhar mais uma vez no “Cristo de San Juan de la Cruz”! Voltemos.

Salvador Dalí é uma figura estranha, incômoda; inclusive seu aspecto físico, que sempre me pareceu o de um louco. Participar do Movimento Surrealista muito provavelmente o transformou nessa imagem mas ele mesmo fazia questão de ser mesmo esse ser esquisito.

O Surrealismo foi um movimento artístico surgido no começo do século XX, na França, e teve como um de mentores o poeta André Breton. O termo “surrealismo”, que seria traduzido como “algo acima da realidade”, foi cunhado por um outro poeta francês, Guillaume Apollinaire, em 1917. Ela apareceu pela primeira vez como subtítulo da peça de teatro “As tetas de Tiresias”, de Apollinaire.

Mas os artistas que abraçaram essa corrente estética se diziam seguidores de pensadores e artistas do passado, como o filósofo pré-socrático Heráclito e os escritores franceses Marquês de Sade e Charles Fourier. Na pintura, eles consideravam como um dos primeiros surrealistas o pintor holandês do século XV, Hieronymus Bosch, que pintou naquela época quadros como “Jardim das Delícias” e “O carro de feno”. Mas o ponto de estopim do Surrealismo no século XX foi o movimento dadaísta, que o antecedeu.

Salvador Dalí nasceu em 11 de maio de 1904, em Figuera, na Espanha. Quando tinha 12 anos, numa viagem a Cadaqués com os pais, conheceu a pintura de Ramon Pichot, um artista que viajava muito a Paris, porque na época esta cidade era o centro da arte no mundo. Pichot conheceu o talento do menino e orientou seu pai a lhe matricular numa escola de pintura. Dalí teve como primeiro mestre  Juan Nuñez.

Em 1922, Salvador Dalí se muda para Madrid e vai estudar na famosa Real Academia de Belas Artes de San Fernando, que conheci pessoalmente em 2013, em minha viagem a Madrid. Foi morar numa residência estudantil. Já nessa época, fazia pinturas de inspiração cubista, o que atraiu a atenção de dois artistas espanhois como Federico Garcia Lorca e Luiz Buñuel, o futuro diretor de cinema surrealista. A partir de 1924, Dalí também começou a fazer ilustrações para livros.


"Composicion surrealista de figura invisibles",
presente na mostra do CCBB-RJ
Em 1926 foi expulso da Real Academia por se negar a fazer os exames finais de seu curso de pintura. Teria dito que não havia naquela escola nenhum professor que pudesse avaliá-lo… Seu quadro “Cesta de pão” (acima), pintado para seu exame final na Real Academia, mostra como ele dominava a técnica da pintura acadêmica. Foi a Paris, onde conheceu Pablo Picasso. Dalí pintava, então, desde obras mais acadêmicas até aquelas onde se notava claramente a influência dos movimentos vanguardistas da época. Mas antes disso, ele havia estudado a obra de Zurbarán, Bronzino, Rafael, Vermeer, Velázquez…

Em 1929, colaborou na produção do filme “O cão andaluz” de seu amigo Luiz Buñuel, filme que já dava as primeiras mostras do imaginário surrealista. No mesmo ano conheceu sua futura esposa, Gala, uma imigrante russa que era 11 anos mais velha que ele. Se casaram em 1934 e viveram juntos toda a vida.

Salvador Dalí já pertencia então ao movimento dos Surrealistas que se reuniam no bairro parisiense de Montparnasse. A grande maioria dos artistas surrealistas dessa época já se declaravam de esquerda. O mundo de então fervilhava. A I Guerra Mundial havia matado milhões de seres humanos, a primeira guerra capitalista pelo domínio do mundo. Em 1917 na Rússia, os comunistas chegaram ao poder numa revolução soviética que mudaria a face do Leste Europeu, e influenciaria o mundo inteiro. Na Alemanha, o período entre guerras trazia muita fome, medo, desemprego. Os primeiros sinais do fascismo e do nazismo iam se gerando…


"La maxima velocidad de la madona de Rafael",
na mostra do CCBB-RJ
Mas… qual era a posição de Dalí, em meio a isso tudo? Ele não comungava com os ideais socialistas da maioria de seus amigos, como Pablo Picasso, André Breton e Luiz Buñuel, além de outros. Breton, por exemplo, o acusou de simpático às ideias nazistas. Dalí continuava se dizendo “apolítico” e defendendo que a arte deve ser “apolítica”. Num momento em que a maioria dos artistas e intelectuais europeus começavam a denunciar publicamente o regime nazi-fascista alemão, Dalí se negou a fazer isso. Este e outros motivos fizeram com que ele fosse expulso do movimento em 1934.

Mas Dalí começou a receber os louros de sua carreira. Um rico capitalista inglês, Edward James, investiu no artista comprando inúmeras de suas obras, emprestando-lhe dinheiro e o apresentando ao público londrino. Dalí começou a ficar muito atraído por dinheiro, e em 1939 seu ex-amigo André Breton lhe nomeou de “Avida Dollars”, criticando sua paixão por dinheiro.

Quando a II Guerra começou, Dalí e Gala se mudaram para os EUA, onde viveram durante oito anos. Ele retomou seu contato com a religião católica. Em 1949, mudou-se de vez para a Espanha, passando a viver na região da Catalunha. O fato de Dalí ter resolvido ir morar na Espanha em plena ditadura franquista, revoltou novamente seus ex-companheiros, assim como diversos setores progressistas europeus.


Salvador Dali
Diversos estudiosos espanhois, inclusive na atualidade, como é o caso de Antonio Martínez, expõem a público a relação de amizade que unia Salvador Dalí a um dos ditadores mais cruéis da Europa: Francisco Franco. Dalí foi um dos intelectuais espanhois que desde o começo apoiaram Franco na Guerra Civil. Quando de seu retorno à Espanha após a temporada nos EUA, Salvador Dalí não escondia sua admiração pela figura do general. Essa relação de amizade entre os dois culminou na entrega da Gran Cruz de Isabel la Católica, prêmio concedido pelo governo de Franco a Salvador Dalí. Em troca, em 1972 Dalí doou ao Estado espanhol, ainda sob o governo de Franco, uma grande parte de sua obra. Dalí chegou a qualificar publicamente a Franco como “un santo, un místico, un ser extraordinário”...

Que diríamos disso tudo? Jogamos fora a obra com o artista? Talvez não. Mas não deixa de ser incômodo saber que enquanto milhões de espanhois viviam na miséria e sob um regime de medo imenso, sem liberdade absolutamente nenhuma, e quando milhares de pessoas eram presas e assassinadas pelo governo fascista, um artista fazia olhos cegos para tudo isto e não vacilava em se deixar fotografar ao lado de um dos maiores ditadores do século XX?

Há como separar o homem do artista? Salvador Dalí não foi só artista. Se alinhou nas posições contrárias às da maioria dos intelectuais e artistas de seu tempo. Viu o massacre do seu povo, enquanto aplaudia o autor dos massacres. Surrealismo? Excentrismo? Irresponsabilidade de um espírito egóico?

Talvez esse mesmo espírito ainda flane nos tempos atuais. Colocar o ego acima do coletivo pode ser bom para a auto-estima pessoal, mas pode levar o artista a lugares escabrosos...