terça-feira, 9 de julho de 2024

Belezas acesas por dentro

 

06/06/2022

O caminho vai se tornando familiar. Chego até à Marginal Tietê em direção à rodovia Ayrton Senna, depois Carvalho Pinto, Dutra e a transversal Paulo Virgínio. Mas ainda estou saindo de São Paulo, carregando comigo minhas coisas e meus pensamentos. A vida anda complexa nestes tempos, exigindo de nós uma autoconsciência ainda maior, no sentido de saber que somos um coletivo e não um indivíduo absoluto pleno de poder sobre todas as coisas.

Deve ser o peso de encarar a vida urbana tão conturbada de hoje em dia que trouxeram esses pensamentos. O neurocientista Sidarta Ribeiro começa seu novo livro “Sonho manifesto” dando um verdadeiro soco no estômago, mostrando as nossas feridas civilizatórias que estão mais abertas do que nunca: 800 milhões de pessoas passando fome no mundo; 800 mil pessoas se suicidam anualmente em todo o planeta, o dobro do número dos homicídios; crianças, mulheres e até caciques indígenas violentados e mortos na Amazônia; jovens sem perspectiva de futuro; trabalhadores esgotados para se manter no Brasil, no Japão e nos EUA; a cada minuto, onze pessoas morrem de fome… E por aí vai a lista tenebrosa. 

Adicione-se a essa receita triste as mudanças climáticas que nos tem atingido e que atingiu minha terra, Pernambuco, nestes últimos dias. Mais de cem pessoas mortas em uma nova tragédia causada pelas mudanças climáticas. Estamos alcançando uma linha de chegada perigosa que, se a cruzarmos, poderá ser o começo de muitos fins. No entanto, ainda há tempo.

Cheguei na casinha da roça no sábado à tardinha. As cores do céu pintadas pelo crepúsculo formavam uma paleta riquíssima de amarelos, laranjas, vermelhos e até violetas e rosas. Alguns verdes da terra se amarelavam para se aproximar do céu ou até se saturavam ainda mais, tornando-se mais verdes, para nos mostrar os avermelhados de algumas nuvens. Opostos magníficos que são cores complementares… Na medida em que seguimos pela estrada de terra e o sol vai baixando no horizonte recortado das montanhas, os verdes e os tons terras vão se tornando escuros. Há um momento em que quanto mais escuro é o que está próximo de nós, mais há luz no céu. E quanto mais luz há no céu do fim do dia, mais escura é a sombra concentrada nas massas de árvores. Pura ilusão óptica, mas um dos mais belos jogos perceptivos da mente humana… ou da alma? O resultado? Beleza! Ainda vou pintar essas cores!

Chegamos trazendo a noite. Uma fogueira já estava acesa e uma roda de amigos novos, visitantes, tinha se formado entre a fogueira e a cozinha, onde Lumena cozinhava pinhão para todos. Todos artistas da modelagem, do desenho, da criação. As conversas foram leves, plenas de risos e do prazer das nossas narrativas pessoais, que são estimulantes e curativas. Depois que eles saíram e que nos prometemos reeditar este encontro no Morro do Querosene em São Paulo, fomos dormir.

Desde que cheguei, ouvi com estranhamento o mugido de um boi nas redondezas. Dentro do silêncio da noite, aquele som era tão triste que me tocou, trazendo um sentimento de solidariedade àquele ser que sofria. Fiquei com muita vontade de procurar e abraçar aquele bicho, porque seu mugido era um verdadeiro e doloroso lamento. Mas não saberia me guiar pelos meandros da noite escura e encontrar o animal que, num intervalo de alguns minutos, repetia seu grito. 

Adormeci, enquanto ouvia o lamento do boi que foi se misturando a um som da minha infância, que veio de lá do fundo da minha memória: os aboios que meu pai cantava. Ele muito cedo aprendeu a guiar o gado pelas pastagens ou a levá-los de volta ao curral, entoando esses cantos chamados de “aboio”, que todo sertanejo nordestino pratica. O gado reconhece a voz do dono e parece ficar em silêncio, encantado pelos aboios cantados do vaqueiro. Porque nesses mundos por muitos de nós esquecidos, homens, mulheres e natureza se entendem, falam a mesma língua. Porque “já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens, é certo e indiscutível pois que bem comprovado nos livros das fadas carochas”, diz Guimarães Rosa em “Conversa de bois”.

Amanhecido o dia, soube que o bicho era uma vaca. Homens tinham vindo comprar bezerros e tinham levado o dela porque era chegada a hora do desmame. Na mesma hora meu sentimento materno emergiu e me identifiquei de imediato com a dor que essa mãe sentia. Mais tarde, deparamo-nos com ela: uma vaca preta que, ao nos ver, abriu a boca num novo som que parecia querer atravessar todas as montanhas e que trouxesse seu bezerro de volta. Parecia nos ameaçar… Foram seres como nós que lhe causaram essa consumição. Mas “não, ela é boazinha”, disse o dono dela depois. Só estava sofrendo. “Em dois dias passa”, completou seu Francisco, homem acostumado à dinâmica dos bois.

Ainda estamos naquela fase de aprender tudo desse lado do mundo: o tempo das sementes e da colheita, como cortar a braquiária, usar a enxada e a foice, podar, coroar as árvores tomadas pelo mato. E o aprendizado inclui as temporalidades todas: quando é tempo de semear e de colher, no ritmo da natureza em cuja rede está envolvida até a Lua! Já sabemos que é melhor colher bambu na lua minguante… Até mesmo os mais céticos das crenças populares se calam diante do fato de que os bambus colhidos em lua cheia, por exemplo, racham mais porque soltam mais líquido. 

Uma das grandes lições que tenho aprendido desde que resolvi me alinhar à esta rede dos que defendem a interrupção do modo de vida atual que nos leva à morte, é que toda a nossa racionalidade ajuda, mas não basta.  “Compreender” as coisas só com a mente é limitante, pois somos também feitos de coração. Nossos mundos reais são entremeados do imaginário individual e coletivo. É justo resgatar do mais fundo de nossas almas o que lá pode estar oculto o que nos faz mais ricos: a percepção de que somos parte desse grande mistério que chamamos Vida. Oxalá isso se torne consciência nesse mundo que parece ter decretado seu fim. Epa Babá!

As noites de outono em Cunha, na lua minguante ou na nova, trazem um presente especial. A Via Láctea surge no céu quase ao alcance de nossas mãos e podemos admirar as nuvens de poeira cósmica que se formam em redor de constelações e estrelas. Ali atrás da casinha está “subindo” no céu o Cruzeiro do Sul. Oposto a ele, me virando mais para o Norte, o Sete-Estrelo, como chamamos as Plêiades no Brasil. O Sete-Estrelo da lenda Tupi, que são os sete filhinhos que Sy, a mãe, abandonou. Girando meu corpo um pouco mais, encontro as Três Marias do Cinturão de Órion. Maria da Glória, Maria da Penha, Maria das Dores?… Assim sigo dançando na noite, tocada pelas estrelas e pela minha imaginação que agora vê o “gado” celeste se movimentando junto comigo, dançando a dança do universo… 

Vou me deitar porque a noite é gelada também. A vaquinha finalmente silenciou, a dor amainou. Entro murmurando a música de Lulu Santos, inspirada por minha visão noturna: 

“Tudo o que se vê não é

Igual ao que a gente viu há um segundo

Tudo muda o tempo todo no mundo…”

Eu vim do Cunha...

 

4/04/2022

O tempo voou entre janeiro e abril, quando retomo estas crônicas sobre meu novo projeto de vida, a mudança da cidade para o campo. Nesse meio-tempo, adquirimos um pouco mais de três alqueires de terra em meio ao mar de montanhas da região de Cunha. Nesse meio-tempo, perdi um gatinho, o Miguilim, meu amigo felino que deixou a vida com apenas um ano de idade, e me fez refletir muito sobre a natureza da Vida em seu sentido maior. Meu gatinho me ensinou, em seus doze dias finais de vida, que se faz cada vez mais necessário, além de ter consciência ambiental e respeito à Natureza, o respeito pela Vida que pulsa em tantas outras formas. Fomos educados na cultura ocidental branca a ter respeito somente ou prioritariamente à vida humana, e caminhando dentro do conceito do homocentrismo nos damos todas as prerrogativas para ocupar, expandir, limitar, destruir, adaptar, queimar e até matar outros seres vivos que atravessarem nossos projetos e nosso desenvolvimentismo a todo custo. Miguilim me ensinou sobre a Vida…

Viajei para Cunha há poucos dias carregando comigo, além desses pensamentos, vários itens para nosso futuro trabalho na terra: enxada, cavadeira, tesoura de poda e rastelo, mas também vários itens para equipar a casinha de roça que alugamos enquanto não temos nosso primeiro teto. Cheguei no fim da manhã, sozinha, pois meus amigos viriam em outro carro um pouco mais tarde… Fiz uma arrumação geral em tudo, preparando para a chegada deles. O céu estava se fechando e um vento forte começou a cantar em todas as direções. Uma frente fria tinha chegado em São Paulo e, nas montanhas, ela vinha com mais força ainda. Por volta das 18 horas, fui pra porta da casa, ficar de olhos e ouvidos atentos. Mas o vento forte trouxe consigo uma chuva intermitente e isso era preocupante, uma vez que a noite estava caindo e a estrada de terra é sempre um perigo a enfrentar, em especial na escuridão molhada.

Que foi tomando conta do lugar. À noite, toda a variação de verdes possíveis dos morros e montanhas se tornam uma mesma massa cinza escura. O mistério parece descer sobre a terra… Ventos vindos de direções variadas arrancavam sonoridades diferentes para meus ouvidos: estalos nos bambus, farfalhar das folhas das árvores, algum barulho surdo de algo que cai e as águas que dançam na ventania, estalando sobre as folhas e o mato. O mistério se fez maior, e uma pontinha de medo me deu um leve arrepio. Lembrei do poema do Drummond “Anoitecer”, que Zé Miguel Wisnik musicou:

“É a hora em que o sino toca
mas aqui não há sinos; (…)
Hora de delicadeza
gasalho, sombra, silêncio.
Haverá disso no mundo?
É antes a hora dos corvos
bicando em mim meu passado
meu futuro, meu degredo…”

Esse clima de mistério que se abateu sobre mim, sozinha nas montanhas, numa cabana isolada, sem internet, sem telefone, sem possibilidade de comunicação, me trouxe à lembrança uma conversa que tive com minha mãe recentemente. Falávamos de vida na roça, como foi a vida dela até a adolescência, vivendo no meio do sertão do agreste pernambucano, onde viveram seus pais, meus avós e bisavós, e outros antepassados que saíram de Portugal para tentar a vida no Brasil selvagem e nunca mais voltaram. Lá pelas tantas, minha mãe me lembrou do nome do lugar onde nasceu e viveu meu pai, meu avô, meu bisavô… Cunha! Cunha! No mesmo momento em que ela pronunciou a palavra, ouvi a voz do meu pai me chamando muito pequena para ir para “o Cunha”! Assim mesmo no masculino ele falava, pois resumia numa expressão que o lugar onde meu avô vivia tinha esse nome.

Cunha! Mistérios da vida, dos giros que o mundo dá, como esse vento que sopra em redemoinhos trazendo gotas d’água e mais frio pra dentro da cabana. Me veio a vontade de agradecer a meus ancestrais; talvez eles tenham a ver com o fato de eu estar me mudando, a esta altura da minha vida, para Cunha? Nem o vento soube me responder pois soprava ainda mais forte qualquer braveza, entrando pelas frestas do telhado, me fazendo ir lá dentro buscar um cachecol de lã de lhama. O que importa? Mistérios são para serem contemplados, ficarem pulsando na alma como possibilidade de poesia, infinitamente… 

Mais de sete da noite e meu ouvido alerta não detectava nem sinal de meus amigos… Pensei: aguardo mais uma hora e se ninguém aparecer tento sair para ver se não encalharam em algum lamaçal da estrada. Mas uns quarenta minutos depois ouço vozes: da Sandra, da Paty, da Jane? Peguei minha lanterna e meu guarda-chuva, pronta pra ajudar a abrir as duas porteiras que separam a casa da estrada. Mas encontro elas e Luciana carregando malas e mochilas nas costas, sob a chuva. O carro não alcançou a última subida. Fui com a Paty até ele buscar o resto das coisas e Kawni, que lá tinha ficado de guarda. E a noite foi só festa e alegria, finalmente todas juntas.

Em breve teremos uma espécie de mapeamento do nosso terreno: onde ficará a casa-sede, onde estarão as cotas individuais, onde estará nossa horta, como canalizar a água do riacho que, sim, corre solto e limpo pela terra. Nos dois dias seguintes fomos, as seis pessoas prontas a acariciar nossa terra: limpamos em redor das fruteiras cítricas e das cinco mudas de árvores que plantamos, todas um pouco sufocadas pela braquiária e pelos lírios. Respiraram, estão crescendo. Logo nosso primeiro Ipê plantado, por nove mãos, será uma imensa árvore que vai nos dar sombra, flores e beleza. Colhemos macaxeira (mandioca ou aipim, nas línguas do sudeste) e dela fizemos a sopa que aqueceu nossa próxima noite. Fizemos fogueira e comemos pinhão, numa roda ao redor do fogo, com Jéssica e Leo que se juntaram a nós. Lumena, Flávio e Johnny desta vez não vieram, mas foram incluídos na roda do afeto. 

Na tarde seguinte foi preciso cobrir os dois quartos com as lonas que tinha trazido. Aquele vento frio insistia em nos castigar à noite, minhas amigas tinham dormido mal e nada como uma noite mal-dormida para trazer maus pensamentos, dúvidas, medos, toda espécie desses monstros mentais que nos atacam nas horas da escuridão. Mas essas devem ser as horas “da delicadeza, gasalho, sombra, silêncio”… Lonas colocadas e a próxima noite foi passada mais confortavelmente.

Não sabemos ainda ao certo quando será o momento de chegar e ficar em Cunha, de forma definitiva. Em alguns momentos vem a vontade de ser logo, em breves meses; em outros, é claro que domina a dúvida e ela pede tempo. Tempo pra pensar, pra sentir, pra resolver as paradas todas de quem se enrolou muito numa cidade grande como São Paulo. Nesse rolê metropolitano, mil garras nos seguram, verdadeiras teias nos enredam. E há os diversos cantos de sereias urbanas enganadoras que nos iludem com promessas as mais diversas como as oferecidas por uma grande cidade e seus bares, restaurantes, cinemas, teatros, museus e shows aos quais quase nunca vamos com a frequência que deveríamos… ou gostaríamos. Enquanto isso, o tempo passa… Mas a música de Criolo confirma e decreta e não me deixa duvidar:

“Os bares estão cheios de almas tão vazias
A ganância vibra, a vaidade excita
Devolva a minha vida e morra
afogada em seu próprio mar de fel!
Aqui ninguém vai pro céu!”

Guarás e moinhos de vento

 

20/01/2022

A busca por uma terra possível para implementar todos os sonhos só termina quando a fase da burocracia está completa. Idas e vindas, conversas, solicitações de prazo, negociações, verificação de documentos, consulta a cartórios, contadores e advogados… Espinhosa e necessária burocracia, fase chata, mas que nem de longe amedronta pessoas aguerridas como esta Ecomunidade Bem Viver. Se é assim, vamos vencer mais esta etapa. Para adicionar mais dificuldades, tudo isso foi acontecendo quando tudo estava em suspenso por causa das festas de final de ano. Mas o grupo é um bloco coeso e disposto a enfrentar qualquer parada.

Enquanto isso, eu tiro quinze dias de férias, como todos os anos. Viajo a São Luís, onde vive minha mãe e irmãos. Porém, na retaguarda de todos os cuidados para que tudo caminhe bem, o trabalho colaborativo do meu grupo não foi interrompido nenhum dia, o que me permitiu esta pequena ausência. Assim funcionam as coisas quando somos um coletivo.

No quinto dia da minha viagem peguei o carro alugado e saí de São Luís em direção à Parnaíba, charmosa cidade do norte do Piauí, localizada em pleno delta do rio Parnaíba, que separa aquele Estado do Estado do Maranhão. Este rio gigante nasce lá longe, ao sul, entre os Estados do Tocantins, Maranhão, Piauí e Bahia. E desagua de forma imponente, poderosamente criando inúmeros canais e diversos braços de rios menores que correm para os braços do mar… Dizem que este santuário aquático-terrestre é, em tamanho, o terceiro maior do planeta. Ele recorta diversas pequenas e grandes ilhas, que abrigam uma rica biodiversidade, com manguezais cujas árvores atingem até dez metros de altura.

Depois de umas quatros horas de viagem, tendo passado por Barreirinhas, em plena região dos Lençóis maranhenses, impossível continuar dirigindo sem parar um pouco para admirar aqueles imensos panos brancos de areia que recobrem aquele trecho à nordeste do Maranhão. A vista se perde, buscando o horizonte à frente, atravessando as dunas de areia que se sucedem em ondas até o Oceano Atlântico. Mas uma imagem começa a entrar em foco em meio ao areal branco: grupos de torres de concreto com pás girando ao vento arrancam palavras do meu sobrinho adolescente, que viaja comigo: – que lindo! Concordo com ele enquanto penso que é tão bom ver a humanidade buscando formas alternativas de energia, energia “limpa”… Daí para a frente, esses tipos de moinhos de vento ressurgem na paisagem, como os lençóis de areia, nos trazendo encanto.

Nove horas depois de iniciada a viagem, chegamos a Parnaíba, na casa de um jovem casal, simpático e afetuoso. Nossa aventura pelo Delta se iniciava e, enquanto viajamos em direção à Pedra do Sal (uma ponta de praia na primeira e grande ilha que visitamos), os dois iam nos explicando a realidade das torres de energia eólica. Que esses parques onde se encontram as turbinas se estendem por várias regiões dos Lençóis maranhenses e do Delta do Parnaíba, tendo sido implantados sem respeito à natureza e aos habitantes da região: lagoas são aterradas, moradores afastados de seus lugares, e os que continuam nas vizinhanças são obrigados a suportar o imenso barulho feito pelas pás gigantes sendo movidas pelo vento forte. E, o que é pior: diversos pequenos povoados, onde vivem pescadores e pequenos agricultores, ou não possuem energia elétrica ou não recebem energia advinda dessas gigantes torres… Que contradição! A captação de energia é realizada por essas turbinas, favorecidas pelos ventos constantes do lugar, mas a eletricidade gerada vai para muito longe dali: as torres de sustentação com seus gigantescos cabos carregam a energia produzida pelo vento para alimentar empresas  capitalistas…

O sol estava se pondo no horizonte e a gente estava sentado perto de umas pedras onde as ondas do mar batiam com toda a força do mundo! De vez em quando uma onda maior, e mais brava, estourava mais alto e jogava água em nossa direção… O mar parecia querer gritar que como as coisas estão indo, assim não permanecerão… As agressões do desenvolvimentismo a todo custo estão esgotando o planeta. Enchentes causadas pelas chuvas se espalham por todo o Brasil, criando tragédias familiares, enquanto ondas de imenso calor atingem o sul do Continente… Isso sem falar nos vírus mortais soltos pelo planeta inteiro…

Em nossa linha de visão do crepúsculo, uma torre de energia eólica se imiscuiu entre nós. Lembrei de Dom Quixote, o velho guerreiro de Miguel de Cervantes, que empunhou sua espada contra aquelas monstruosidades dos moinhos de vento que surgiram em seu caminho. Eu já tinha perdido o encanto com a visão daquelas imensas torres. Meu sobrinho e meus amigos também. Passamos a odiá-las, a querer erguer as nossas lanças também contra o desenfreado capitalismo, destruidor da vida. Fiquei com vontade de gritar, junto com o mar, contra aquelas pás gigantes, a mesma coisa que gritou Dom Quixote: “— Ainda que movais mais braços do que os do gigante Briareu, heis-de mo pagar!” 

Mas eram dias de férias e nossos amigos nos levaram até um cais, onde pegamos um barco em direção à Ilha das Canárias. Trinta minutos de barco e mais quarenta de quadriciclo, chegamos no povoado Torto,  pequena comunidade de pescadores. Fomos recebidos por seu Chico e dona Dica, em sua casa simples e confortável. Seu Chico nos levou em seu pequeno barco a motor para visitar dunas de areia à beira de um dos canais do Parnaíba. Depois, serpenteando pelas curvas do rio, passando por manguezais que abrigam desde caranguejos, até macacos e aves, chegamos numa pequena ilha-dormitório da ave Guará e suas penas vermelhas, que brilham ainda mais em contraste com o verde vivo do mangue: estas aves chegam aos bandos, pousando nas árvores onde passam a noite. Não nos aproximamos demais. Seu Chico desligou o motor do barco. Em silêncio, ficamos observando inúmeros pontinhos vermelhos se movimentando, se aconchegando sobre o verde das folhas. Seu Chico explicou, baixinho: – Elas voam em formação em V, aproveitando a aerodinâmica do grupo para alcançar longas distâncias. Ou uma atrás da outra, em fila. A que está na frente empresta sua energia às que estão atrás. Quando a líder se cansa, outra assume o seu lugar e a ave recupera suas energias se posicionando atrás da nova líder… 

Exemplo de vida colaborativa! Me emocionei ao ouvir o pescador, na beira do mangue, contemplando os Guarás, no Delta do Parnaíba. Lembrei do meu grupo e que escolhemos viajar como esses pássaros, em cooperação uns com os outros e com o meio-ambiente. As lições a que nos dispusemos reaprender, nestes novos e difíceis tempos, já nos foram dadas pela Natureza, nestes seis milhões de anos em que existimos como espécie: a Vida acontece em colaboração.

Engendrando o sonho

16/12/2021

A primeira das duas vezes em que li “Os sertões” de Euclides da Cunha, tive que vencer uma primeira grande dificuldade: passar pela primeira das três partes que compõem o livro, A Terra. O autor parece testar o leitor, numa linguagem tão áspera quanto culta: é preciso atravessar as cadeias de montanhas da região sudeste, contemplar o eterno conflito entre o mar e a terra ao longo do litoral brasileiro, atravessar sertões e caatingas, para poder ter acesso ao sonho de um homem, Antonio Conselheiro, e sua Canudos. Aquele sonho que habitava o coração de Antonio Vicente, o Conselheiro – criar uma comunidade alternativa ao sistema – permanece como paradigma.

Lembrei deste livro fundamental quando me juntei aos buscadores da terra, deste meu grupo de amigos. Porque a realização do grande sonho coletivo – aí incluídos todos os sonhos individuais – envolve um chão. A primeira vez que fui com parte deles, fomos para São Luiz do Paraitinga ver uma propriedade que ficava mais próxima do distrito de Lagoinha, pequena cidade do Vale do Paraíba. O sol estava a pino, a natureza exuberantemente verde, após as primeiras chuvas. O olhar que percorre as montanhas em 360 graus se enche de encanto, porque há uma verdadeira ondulação harmônica de montes, morros, subidas, descidas. 

Mas “olhar” uma terra é muito diferente de ver um apartamento ou uma casa na cidade. É necessário andar sobre ela, calçar bem os pés, proteger pernas e braços, porque há plantinhas que machucam a pele e diversos pequenos animais que podem picar. Ainda é preciso vencer as subidas e descidas, observar veios d’água, possíveis áreas cultiváveis ou construíveis, percorrer trilhas, passar por “bambuzeiros”, como dizem os habitantes desta parte do interior de São Paulo. Tudo isso com o sol ardendo sobre as cabeças e a respiração resfolegante, coração acelerado… E de repente “ver” aquele pedaço de terra ocupado por nossas casas, com flores nas janelas, com floresta, hortas, viveiros, ateliês, galinhas, oficinas, ovelhas e muito afeto.

O caminho até chegar ao sonho também é áspero. Há estradas de terra a serem percorridas, com buracos, pedras, cascalhos, curvas, subidas. Os automóveis que usamos nas cidades sofrem nesses trechos, não foram feitos para isso. Mas há que esgotá-los, tirar deles seu máximo de potência. Essas máquinas não foram feitas para nos dar maiores pernas? Então! Mas o preço da gasolina está caro, então nos apertamos em um ou dois, adicionando mais massa a ser transportada em direção ao sonho…

Na segunda vez que fomos, passamos por várias propriedades na montanhosa região de Cunha. Até encontrarmos uma área mais plana, mais habitável, mais próxima da cidade próxima, portanto mais viável em diversos aspectos. Cunha é uma cidade que atrai muitos turistas em busca do sossego – ou da aventura – nas montanhas. Lá também residem diversos artistas que trabalham com cerâmica. E há uma rica vida cultural do povo, com a Festa do Divino, as tradições da Semana Santa e Corpus Christi, cavalaria de São Benedito, Festa do Pinhão, Festival de Música no inverno, além da festa da Padroeira, Nossa Senhora da Conceição…

… Oxum, Ora Yê-iê, Ô! Nossa senhora, rainha das águas doces, dos rios e cachoeiras que banham as montanhas de Cunha. Montanhas de Baba Okê, onde Oxalá também faz sua morada e recebe suas oferendas. E onde também habita Xangô em suas pedras – Kao kabecilê! – o rei das tempestades, dos raios e dos trovões, livrai-nos do mal! Mas também tem, pairando nos ares, o deus Tupã, que criou os céus e as estrelas, as águas e a terra. É Nhanderuvuçu  que nos fala no som das tempestades, cujas águas escorrem nos riachos protegidos por Iara, a Mãe-Dágua, entrando e saindo das matas onde mora o Caipora. Tupã nos deu o poder de criar ou destruir!

A esta altura de nossas vidas, escolhemos criar. Parar de ser parte da destruição geral!

Contratamos um casal, arquiteta e engenheiro ambiental, para nos apresentar um estudo de viabilidade de ocupação do terreno que nos agradou. A propriedade possui em torno de oito hectares (ou três alqueires e meio), contendo uma Área de Preservação Permanente (APP) que ocupa quase um terço do terreno. Há também uma área de cobertura florestal, uma pequena mata preservada, onde vivem muitas espécies de bichinhos da terra e do ar. Há um pequeno córrego que talvez um dia tenha sido um rio, do qual pretendemos cuidar que volte à sua origem. Caso seja esta a terra escolhida.

Em torno de 50% da área total, há espaço e possibilidade de ocupação, segundo atestam as fotografias minuciosas do drone do engenheiro. Essa parte que pode ser ocupada encontra-se, no entanto, dividida em três trechos. Há estrada de servidão, nome engraçado que significa que outras pessoas podem fazer uso dela, passando por esta terra. Ainda no relatório dos dois profissionais, consta que a gleba possui rede de distribuição de energia elétrica e vias de acesso bem mantidas. E o relatório conclui, quase como um poema para nós:

“Ainda, sob o aspecto ambiental, contém adequada proporção de vegetação nativa já consolidada, aclives e declives suaves frente ao contexto geomorfológico cunhense, e é abastecida por curso d’água perene.”

Mas a história ainda não acabou, ou apenas começou. Outra área surgiu como possibilidade na mesma região. Se apareceu, há que se olhar de perto. Há que se comparar… Há que se resolver… Estamos, no momento, como se estivéssemos arando a terra, preparando-a para nos acolher. E por isso, ainda é preciso caminhar mais sobre ela, e suar mais e sonhar mais, para poder chegar à nossa Canudos e ver de perto o sonho arquetípico de uma terra sem males…

segunda-feira, 8 de julho de 2024

Rastros nas montanhas de Cunha

 27/11/2021


“Caminante, son tus huellas el camino y nada más; caminante, no hay camino, se hace camino al andar.” Há muito tempo atrás li, e não de todo entendi, este trecho do poema “Cantares” de Antonio Machado. É natural, já que há coisas que levam tempo para a gente entender, o tempo da experiência de vida. Mas antes de mais nada, é preciso ressaltar que este poeta espanhol, um quase desconhecido nas bandas de cá do Atlântico, foi vítima do fascismo espanhol, perseguido e exilado pelo governo assassino de Franco, que matou outro poeta, Federico García Lorca… Fascistas não suportam arte e artistas, como sabemos muito bem hoje em dia no Brasil governado por outro fascista, cujo nome é melhor nem dizer…

Mas lembrei desse poema porque eu havia sonhado um sonho que, por um tempo – meses -, estava envolto nas brumas da madrugada. Nem sempre a linguagem do sonho é clara. Quando sonhamos, vamos para os mundos dos símbolos, das imagens soltas na mente, das asas que nos permitem voar, da liberdade em sua maior acepção. 

Falo do sonho que estou vendo, desde setembro, se transformar em realidade, e por isso a frase que abre este texto faz todo o sentido. Desde o ano passado fui me movendo na direção de algo que me atraía, mas que ainda não tinha se tornado claro. Os passos já estavam deixando pegadas, indicando algum caminho que traria uma reviravolta em minha vida: os movimentos da terra redonda me levaram para ser parte da Ecomunidade Bem-Viver, um projeto que já estava em andamento, meticulosamente trabalhado e pensado por esse grupo de mulheres que é uma verdadeira riqueza! 

O grupo vem amadurecendo desde maio. Muitos chegaram, vários saíram, como na vida e na estação: “tem gente que chega pra ficar, tem gente que vai pra nunca mais, tem gente que vem e quer voltar, tem gente que vai e quer ficar, tem gente que veio só olhar, tem gente a sorrir e a chorar…!” (salve, Milton Nascimento e Fernando Brant!) Hoje somos doze, contando os casais. O sonho individual se tornou o sonho desta tribo que, sim, agora é bem real. 

Os passos seguintes têm sido dados para encontrar a terra onde teremos nosso chão, nosso terreiro, onde coisas irão acontecer. Por essas sincronicidades insuspeitadas que a vida em movimento vai trazendo, a ancoragem está se fazendo na região de Cunha, confluência de três grandes cadeias de montanhas: a Serra da Mantiqueira, a Serra do Mar e a Serra da Bocaina, três gigantes deusas cuja formação geológica vem sendo feita em milhões de anos. 

Muitos de nós já tinham ido ver outras inúmeras propriedades na região do Vale do Paraíba, desde Cunha, São Luís do Paraitinga, Lagoinha. Foram buscados também possíveis lugares como São Francisco Xavier e Monteiro Lobato, até Redenção e Natividade da Serra, todas cidades razoavelmente próximas a São Paulo, onde a maioria de nós vive atualmente. Essa busca por terra é bastante cansativa e dispendiosa. Diferente de procurar uma casa ou um apartamento, a terra precisa ser sentida, caminhada, verificada bem de perto porque muitos detalhes são importantes. Primeiro, a presença de água, depois a topografia do terreno, que precisa ter algum trecho plano, onde se possa construir casas. Há que se tomar cuidado com terras há muito tempo servindo de pasto para o gado, o que é bem comum nesta parte do interior de São Paulo. Ou terras com erosão. Dar preferência a um terreno que possua algum pedaço de mata, porque nossa ideia é plantar mais árvores, ajudar a terra a recompor sua flora e fauna. E há também que se considerar a dificuldade de acesso por estradas de terra. Ou seja, é necessário alguns critérios de escolha que torna, então, a busca um pouco mais complicada.

Há algumas semanas atrás, um jovem casal – ela bióloga, ele funcionário público – que já vivem na região de Cunha, aderiu ao nosso projeto, trazendo com eles muita experiência de vida no campo. E surpreendente sabedoria. Através deles soubemos de uma propriedade à venda que cumpria muitos daqueles requisitos. Depois de alguns encontros virtuais e presenciais, decidimos que valia a pena focar naquela região, pois Cunha possui, além de uma natureza muito rica, uma vida cultural bastante interessante. Os potenciais de realização de todos os nossos projetos são, então, muito viáveis por lá. Vários de nós somos artistas e também pretendemos incluir atividades desta área no projeto geral. 

Viajamos, então, para Cunha para visitar algumas propriedades, em dois grupos, dois finais de semana. Como a região é íngreme, é preciso tomar cuidado para que o terreno seja também habitável. Sob o sol ardente daquela primeira manhã de domingo, descartamos uma, nos encantamos por outra. No final de semana seguinte, os outros que não estiveram presentes nesta primeira visita, foram ver de perto o terreno. Somadas todas as vantagens, descartadas as desvantagens, algum passo mais concreto será dado em breve. De resto, uma vez feita a escolha, é tratar de trabalhar muito para criar nosso pequeno oásis, onde possamos desfrutar do contato com Pacha Mama, abrindo todas as possibilidades para que mais de nós também possam participar da consecução deste sonho coletivo, que inclui o conceito do “Bem Viver”, ou o “Sumak kawsay” da cultura indígena, neste caso a Inca.

Depois de subir uma parte do terreno, onde as montanhas em volta se abriram 360 graus, olhei também para o céu azul do meio-dia. Eu gosto muito de olhar para o céu à noite, desde sempre. Há algum tempo faço um exercício, dentro da minha imaginação, que às vezes me enche de encantamento (e um pouco de pavor) diante da imensidão do cosmos: me vejo aqui plantada em minhas pernas tocando a terra que habita um sistema de planetas que giram em redor do sol, que gira em torno de uma galáxia, que gira em torno de outro grupo de galáxias que boiam no infinito do universo, que mantém em ação forças poderosas que permitem a todos nós estar aqui neste planetinha da periferia da Via Láctea… Às vezes, diante disso tudo, meu coração acelera e eu sou só gratidão: à Força Gravitacional, à Força-Fraca, à Força-Forte, a esses movimentos de forças centrífugas e centrípetas, macro e microscópicas, que nos permitem estar aqui bem vivos.

Voltando pra terra, vejo que este projeto é de uma ousadia que não tem tamanho, é revolucionário! É uma proposta de viver fora dos valores que impregnam a sociedade de consumo. Este modelo está esgotado. É só olhar as estatísticas (quem precisa delas) para ver que o capitalismo está destruindo nosso planeta, que responde com alterações climáticas inesperadas. O aumento da temperatura da terra já é tão real que está matando formas de vida das mais diversas, mundo afora. Mas esse sistema também está matando de fome milhões de seres humanos, enquanto uma pequena elite oportunista (essa gente que gera a “feia fumaça que sobe apagando as estrelas”)  entope nuvens virtuais de bancos com suas moedas geradoras da desigualdade. Mais valia que houvesse mais igualdade… 

Mas “você, da aristocracia, que tem dinheiro mas não compra alegria” há de encontrar a resistência de muitos, porque felizmente somos multidão. Há muita gente por aí sendo atraída por novos padrões de existência, opostos ao sistema atual que ameaça a vida. Nós, desta Ecomunidade Bem-Viver, nos juntamos aos grupos, aos movimentos novos e ancestrais, que pretendem resgatar na prática os princípios de solidariedade, de reciprocidade, de respeito e cuidado com os seres humanos, mas também com a Natureza, com o planeta Terra, pois somos somente um dos fios que compõem essa gigante teia da vida. 

Os próximos passos prometem muito, pois o sonho poderá se tornar real em breve. Já estamos com os pés na estrada…