sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Mandamentos e mistérios gozosos

Por que ninguém teve (ainda) a ideia de expor gavetas com restos mortais em pó de um Crematório?
(Foto do Crematório do cemitério Père Lachaise de Paris, outubro de 2011)
A revista Bravo do mês de outubro, publicou uma reportagem de capa cujo tema é a exposição que acontece na Fundação Bienal de São Paulo, "Em Nome dos Artistas – Arte Contemporânea Norte-Americana na Coleção Astrup Fearnley". Essa mostra reune 219 peças da coleção do Museu de Arte Moderna de Oslo, capital da Noruega. E traz "obras" de Damien Hirst, Jeff Koons e Cindy Sherman, entre outros.


A revista organizou sua apresentação, elencando 7 mandamentos "daquilo que se convencionou chamar de “arte contemporânea”". Continua o texto: "É interessante notar que uma exposição reunindo Van Gogh, Renoir e Degas em todo o seu esplendor e glória não seria possível. Simplesmente porque tais artistas não experimentaram, em vida, esplendor e glória comparáveis aos de Damien Hirst e Jeff Koons, para ficar nos dois mais ricos da constelação (...). Ricos no sentido monetário mesmo. Hirst é, sem sombra de dúvida, o ser humano que mais ganhou dinheiro com criação artística na história ocidental." (!)


"A arte contemporânea não é uma linguagem acessível às massas. Ela se escora em uma série de teorias e procedimentos tão complexos quanto o teatro experimental, o cinema alternativo e a música contemporânea. Só que, diferentemente do teatro experimental, do cinema alternativo ou da música contemporânea – que sobrevivem em ambientes restritos ou financiados por universidades –, ela gerou um circuito milionário. Entender essa relação estreita e amigável entre arte e mercado é essencial para compreender a produção atual. Daí a razão do primeiro mandamento." 


"Escultura" de Jeff Koons,
mas você pode achar algo
assim numa lojinha de
souvenirs...
1 - AMARÁS O MERCADO SOBRE TODAS AS COISAS - o norte-americano Jeff Koons, entre 1991 e 1992, foi casado com a atriz de filme pornô italiana Cicciolina, e fez uma série de pinturas, com cenas do casal tendo relações sexuais. Depois, resolveu ir para o mundo da escultura, quando sua peça ("isso" aí ao lado) foi vendida por 23,5 milhões de dólares na casa de leilões Sotheby’s de Nova York, tornando-o o artista mais valorizado do mundo. Em julho de 2008, outra obra dele foi vendida na casa de leilão Christie’s de Londres por 25,7 milhões de dólares.


Na arte contemporânea, o mercado é uma poderosa fonte de validação artística de um trabalho. Calcula-se que no Brasil o montante de dinheiro que circula no mundo da arte seja da ordem de 300 milhões de reais por ano." Mas no mundo, segundo "levantamento da Tefaf (The European Fine Art Foundation), só em 2008, o total de vendas no mercado internacional atingiu 68,5 bilhões de dólares, sendo que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha são responsáveis por dois terços desse montante."


O inglês Damien Hirst, em 2008, por exemplo, colocou à venda na Sotheby’s, em Londres, 223 trabalhos recém-saídos do ateliê. Vendeu 97% (!) para, em sua maioria, investidores particulares, um total de 198 milhões de dólares. Dois anos mais tarde, o valor das peças vendidas despencou para 10% do total. "É óbvio que Damien Hirst criou uma bolha com a própria produção, usando um procedimento clássico do mercado de ações: vender o máximo possível na alta – e provocar uma baixa logo depois por causa da inundação do mercado com um mesmo tipo de produto. É como se Hirst dissesse que, num ambiente cada vez mais dominado pelo mercado, entender seu funcionamento é essencial para um artista. É como se sua bolha fosse, por si só, uma performance."


Serre um boi no meio e isso é arte,
como fez Damien Hirst, um dos
alunos da escola de Duchamp
2 - NÃO PRECISARÁS DOMINAR A TÉCNICA - Depois que o francês Marcel Duchamp (1887-1968) expôs um urinol como obra de arte, em 1917 (A Fonte), a concepção de que um artista precisa saber pintar, esculpir ou fotografar ficou definitivamente para trás." Muitos das "obras" desses artistas-para-o-mercado aí nem foram produzidas por eles. Mas o que importa é a "ideia". "Desde Duchamp, o que faz de alguém um artista são suas ideias, e não suas habilidades manuais", diz a revista Bravo.


E dá um exemplo local, como do artista paulistano Nelson Leirner, que foi tema de um documentário deste ano (Assim É Se Lhe Parece). Ele nunca pintou um quadro na vida. O que faz é se apropriar de objetos existentes e dar-lhes novo significado".


3 - APRENDERÁS A FALAR SOBRE SEU TRABALHO - "num mundo em que a ideia é tão ou mais importante do que a execução, dominar a palavra é tudo. Tanto que os artistas aprendem isso desde a faculdade. No departamento de artes plásticas da Universidade de São Paulo, os alunos passam pelas aulas ministradas por Ana Maria Tavares e Mario Ramiro, em que são incentivados justamente a falar sobre o próprio trabalho." (grifo meu)


4 - PERTENCERÁS A UMA GALERIA - Absolutamente necessário. Como quase todos os artistas de renome hoje passaram por uma faculdade de Belas Artes (o que evidencia que vivemos o tempo da Nova Academia - ou seja, isso daí é arte acadêmica), "imediatamente passam a integrar o elenco de alguma galeria. Muitos deles assinam contratos com endereços comerciais antes mesmo da formatura". Continua o texto: "A carreira de artista tem atualmente etapas tão bem definidas, e encontra-se tão escorada por marchands, colecionadores, leilões e exposições, que até perdeu um pouco do caráter aventureiro e um tanto arriscado que sempre a acompanhou".


"O diretor do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, Tadeu Chiarelli, vê no entanto essa presença forte das galerias no circuito como algo incômodo: “Pertencer a uma galeria virou sinônimo de ser bem-sucedido”. Porém o número de endereços que abrem a cada ano e o volume de dinheiro que negociam é tanto que foi criada em 2007 no Brasil a Abact (Associação Brasileira de Arte Contemporânea), uma iniciativa das próprias galerias para mapear esse setor. A presidente da instituição é Alessandra d’Aloia, também sócia-diretora da prestigiada galeria Fortes Vilaça, em São Paulo."


5 - PARTICIPARÁS DE FEIRAS DE ARTE - São umas 30 feiras internacionais de arte contemporânea no mundo, mais de duas por mês. Negócios muito rentáveis rolam por lá.


6 - CONHECERÁS CURADORES - ah.... os curadores! Não é possível viver sem eles! Enquanto o tradicional papel da crítica teve seu papel diminuído, "os curadores são os novos críticos". Continua Bravo: "São eles que selecionam artistas e suas obras para exposições que pretendem oferecer um panorama da produção atual e, dessa forma, atribuem leituras para esses conjuntos. Os curadores apresentam temas, sugerem relações entre criadores e apontam também revelações da área. Inclusive para galeristas e colecionadores. “Hoje até as feiras de arte têm curadores. O que antes era Igreja e Estado agora se mistura. Bienais e feiras têm muitas vezes conceitos tão próximos que ficam muito parecidas”, diz um deles, Cauê Alves.


7 - VIVERÁS COMO UMA CELEBRIDADE - Como já dizia o pop Andy Wahrol,cada um deve buscar seus 15 minutos de fama. Os "artistas deixaram de ser figuras por trás de suas obras e estão cada vez mais à frente delas. O público quer saber como se vestem, com quem circulam, o que bebem, como bebem".

Então junte-se uma boa faculdade que ensine a nova forma de fazer arte, renda-se às regras do mercado, tenha-se uma boa ideia ("boa" no sentido disso daí), circule-se por esses circuitos sociais onde impera a futilidade (e muita grana!), dê-se um jeito de ser celebridade (mesmo que por 5 minutos), e pronto! Seu reino individual está garantido!


Cemitério Père Lahaise, Paris, outubro de 2011

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Vivências em ateliês de Paris

A tela original é de Jan Vermeer "Moça com brinco de pérola"
- esta é uma cópia que está sendo pintada por mim - terceiro dia de ttrabalho
Depois de 5 dias, ela está ficando assim...
Duas atividades em especial, marcam esta minha estada de quinze dias aqui em Paris. Em primeiro lugar, pintando uma cópia do "Moça com brinco de pérola" de Jan Vermeer sob a orientação de uma pintora copista do Louvre. Em segundo lugar, fazer aulas de desenho com modelo vivo na Academia de la Grande Chaumière, aqui em Montparnasse, bairro de Paris.

Há alguns meses atrás soube, em São Paulo, do Atelier de Alejandra Astorquiza em Paris, copista do Museu do Louvre. A especialidade dela é copiar grandes obras dos grandes mestres, muitas vezes em frente às próprias obras no Louvre. Como faço parte de um Atelier em São Paulo que também usa como referência as obras dos mestres da pintura, considerei que podia ser muito boa a experiência de fazer um estágio intensivo de uma semana, junto com Alejandra, e aprender diretamente dela um pouco da sua técnica de copista.

Depois de três dias inteiros, e 24 horas de trabalho intenso, minha "Moça com brinco de pérola" começa a me olhar, com seu olhar enigmático. Ainda há muito o que trabalhar no rosto dela, no olhar dela e especialmente na boca dela. Alejandra me disse que esse quadro, junto com a Monalisa de Da Vinci, trazem rostos com os sorrisos mais enigmáticos e difíceis de copiar. Ou seja, minha tarefa não é nenhum pouco fácil. Ainda tenho dois dias inteiros de trabalho, que vou concentrar no rosto dela. Todo o restante que ficar faltando, farei sozinha em meu atelier em São Paulo.


Sala centenária do atelier de la Grande Chaumière
para onde se dirigem artistas e estudantes de arte desde o começo do século XX
Mas também fui à "Grande Chaumiére".

Este atelier fica dentro de um prédio secular aqui do bairro legendário de Montparnasse, e abriga a Academia de la Grande Chaumière, uma das mais antigas de Paris, fundada em 1909.  Lá acontecem cursos livres de desenho, pintura e escultura e está aberta a qualquer um que queira vir treinar aqui. Por estes bancos e estes apoios de madeira em volta da cena principal onde posam modelos, artistas célebres ou não, sentaram e continuam sentando para praticar uma das maneiras mais antigas de estudo de pintura: modelo vivo, nus ou em representação de personagem. Os artistas fazem seus croquis com grafite, carvão, pastel, óleo, acrílica, aquarela...

Fernand Léger (1881-1955) passou por aqui, assim como André Lhote (1885-1962), Emile Antoine Bourdelle (1861-1929), todos professores, ensinando novos artistas. Alberto Giacometti (1901-1966), o grande escultor, aprendeu aqui diretamente com Bourdelle.

Esta Académie de la Grande Chaumière já atraiu artistas de muitos países, de diversas gerações, nestes cem anos, e praticantes das técnicas mais diversas. Porque a Grande Chaumière é uma academia livre, qualquer um pode desenvolver a técnica que quiser. É assim, desde que foi criada em 1901. Alexander Calder (1898-1976), norte-americano; Amedeo Modigliani (1884-1920), italiano; Joán Miró (1893-1983), pintor espanhol, todos sentaram nestes mesmos bancos que vi ao meu redor.

Também alguns artistas brasileiros vieram desenhar aqui, como Lasar Segall, Quirino Campofiorito, Antonio Bandeira, Vieira da Silva e outros.

Ontem, desenhando e pintando junto comigo, tinha umas 40 pessoas, dispostas em semi-círculo em volta de uma modelo francesa, muito simpática, que posou nua. A primeira sessão foi de 45 minutos. Pausa de uns quinze minutos para um lanche servido pela administração da escola: chás diversos, espetinhos com legumes e embutidos, pães, vinho, suco... Depois mais quatro sessões de 25 minutos cada, com pequeno intervalo de 5 minutos, quando a modelo aproveitava para descansar.

Fiquei observando as pessoas, enquanto tomava meu chá, tentando adivinhar o que faziam, se eram pintores, ilustradores ou escultores, se tinham atelier, se eram conhecidos... As madeiras onde apoiamos nossas pranchas de trabalho são as mesmas há mais de cem anos. De tão usadas já estão meio roliças. Os bancos, alguns cobertos com couro, são os mesmos bancos rústicos usados há mais de cem anos, dezenas deles de várias alturas, dependendo da posição que se toma em relação ao lugar onde está a modelo.

Ela fica na frente, numa espécie de altar onde ela é a deusa. Ou o deus, no caso dos modelos homens. Em torno desses modelos, centenas de artistas se juntaram aqui, estudando cada detalhe da anatomia de seus corpos, a direção do jato de luz lançado sobre os modelos, as projeções das sombras, os valores dessas diversas gradações entre luz e sombra... Desenhando, repetimos em nossas pranchas as formas do que vemos.

É muito bom poder viver isso pessoalmente! É muito boa essa experiência de conviver com tantos desconhecidos, de várias idades, que falam uma língua diferente da minha (e talvez outras), mas que nos unimos na mesma e universal linguagem da Arte, na qual todos nós nos compreendemos uns aos outros. Neste espaço de la Grande Chaumière, junto com essas pessoas, lembrei de uma frase de origem africana da qual gosto muito e que explica o que penso também sobre fazer Arte:

"Se você quer ir rápido, vá sozinho. Se você quiser ir longe, vá com outros!"

Ontem desenhei em meu caderno, além do corpo da modelo, toda a minha própria ventura de estar aqui...


A modelo, enquanto se preparava. Em primeiro plano, meu material de desenho. Logo atrás, a madeira que apoia o material do artista, já tão gasta de tanto uso