segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Que os sonhos se renovem!

Pintura a óleo de William Turner
 Com esta pintura, acima, do pintor inglês William Turner,
este blog se despede de 2015 e deseja a todos
que tenham um final de ano com muita paz!
E que em 2016 todos os bons sonhos se renovem,
que se realizem!
E que, acima de tudo, mantenhamos a alma acesa,
o brilho sereno, o coração aberto
para os novos caminhares que virão!
Feliz 2016 a tod@s!

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Chico, artista brasileiro

Pronto, 2015, se você quiser pode acabar!

Porque um rio de sentimentos invadiu minha alma nesta noite no cinema ao lado de casa… As palavras e as melodias foram sendo derramadas sobre mim, corpo, alma, e coração. Trouxe retrospectivas de vida a cada frase e a cada canção do filme “Chico, artista brasileiro”. As canções de Chico têm o dom de pinçar memórias da minha vida, como se houvesse uma de fundo musical para cada momento desses.

De repente eu era aquelas palavras e aquela voz cantando em som de preto velho explicando que “se a dona se banhou eu não estava lá, por Deus Nosso Senhor, eu não olhei sinhá!” O canto vinha dos recantos e dos mocambos mais escondidos desse meu país, vinha de há séculos, vinha da senzala onde se maltratavam os pretos, vem das favelas onde ainda se esmaga um povo inteiro, onde os atabaques choram grossas lágrimas cujos sons às vezes ninguém ouve: “Pra que me pôr no tronco? Pra que me aleijar? Eu juro a vosmecê que nunca vi Sinhá! Por que me faz tão mal com olhos tão azuis? Me benzo com o sinal da santa cruz!” Ah, meu Preto Velho, que só tinha chegado no açude atrás da sabiá…

Sabiá. Palavra das coisas da minha vida, canto que embalava minha adolescência triste, quando a vida pesava como um fardo e sem nem eu saber por quê… Nem onde ficava esse lugar para onde a minha alma queria ir embora: “Vou voltar, sei que ainda vou voltar para o meu lugar, foi lá e é ainda lá que eu hei de ouvir cantar uma sabiá”... Era a minha Caruaru que tinha ficado pra trás, de quem eu tinha me perdido pra sempre? De onde até hoje me sinto afastada, exilada, enquanto persigo a vida nesta metrópole dura onde ainda faço “tantos planos de me enganar como fiz enganos de me encontrar como fiz estradas de me perder fiz de tudo e nada de te esquecer!”

Nestas vitrines da cidade imensa, por onde caminho meus pés cansados de procurar meus próprios fantasmas, as ilusões que crio, os sonhos que sonho, a vida que era pra ser outra - ou outras -,  atravessando estas ruas augustas, estas calles onde tantas outras pernas passam por mim e onde a voz parece me perseguir dizendo que tinha me avisado “que a cidade era um vão: - Dá tua mão! - Olha pra mim! - Não faz assim! - Não vai lá não!”. Consolação e angélicas ruas dos meus maiores sonhos, os sonhos de uma busca pelo sentido maior de eu existir, fazendo algo de poesia, que floresça não com palavras, mas com pinceis, onde procuro pintar um não sei quê que ainda está dentro de mim e precisa ser arrancado ahhhhhhhhhhhh… Tanta coisa dentro de mim precisa ser arrancada!...

As ondas vêm e a gente pensa que elas se acabaram, mas elas voltam! As ondas do mar brincam na beira da praia de tomar impulso de parecer que deslizam que se espalham que se dissolvem na água para depois ressurgirem ainda mais gigantes, ainda mais tesas, com mais energia sobre os amantes que se banham com “as bocas salgadas pela maresia, as costas lanhadas pela tempestade naquela cidade”. Distante do mar estou. Estou longe das praias onde de noite eu gostava de mergulhar nua, sentir o prazer em meu corpo dos movimentos salgados das ondas, sensação maior de liberdade que eu podia ter! Ávida de mar! Mas as ondas da vida me empurraram para muito longe e tudo isso parece que ficou no sonho, na imaginação profunda da minha história, que ainda gosta de cantar em noite alta aquelas canções onde se contava de alguém que podia ser eu mesma e diz que “hoje é sabido todo mundo conta que uma andava tonta grávida de lua e outra andava nua ávida de mar. E foram virando peixes, virando conchas, virando seixos, virando areia prateada areia com lua cheia e à beira-mar”...

Num tempo em que quase nada eu tinha de meu a vida era passar as noites em longas conversas com meus amigos sobre os sentidos de tudo. “No palco, na praça, no circo, num banco de jardim, correndo no escuro”, pichando alguns muros, gritando em tintas para uma ditadura cair; era eu a que era feliz em possuir só o mar, o sol, a lua, as canções que eu e meus amigos cantávamos em voz alta por aquelas ruas estreitas com seus paralelepípedos que pareciam guardar aquelas casas velhas, adormecidas, cheias de tempo, indo em direção ao mar, à ponte que ligava pedaços de vida. Como saltimbancos, mendigos, malandros, moleques “poeta, palhaço, pirata, corisco, errante judeu, cantando, dormindo na estrada, no nada, no nada e esse mundo é todo meu!”

Mas pelo amor de Deus!....

“Pelo amor de Deus, não vê que isso é pecado desprezar quem lhe quer bem? Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém abandonado, pelo amor de Deus? Ao Nosso Senhor pergunte se Ele produziu nas trevas o esplendor, se tudo foi criado - o macho, a fêmea, o bicho, a flor, criado pra adorar o Criador? E se o Criador inventou a criatura, por favor! Se do barro fez alguém com tanto amor para amar Nosso Senhor? Não, Nosso Senhor não há de ter lançado em movimento terra e céu, estrelas percorrendo o firmamento em carrossel pra circular em torno ao Criador! Ou será que o deus que criou nosso desejo é tão cruel? Mostra os vales onde jorra o leite e o mel, e esses vales são... de Deus? Pelo amor de Deus, não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem? Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém abandonado? Pelo amor de Deus!”

“Consta nos astros, nos signos, nos búzios”, não consta em lugar nenhum! Nem adianta os autos, as bulas, os dogmas, os tratados, as teses, os dados oficiais, o destino, a ciência, os astros, os autos, os signos, os anúncios, as ciganas, os projetos, os profetas, as sinopses, os espelhos, os conselhos, os evangelhos, os orixás, as pautas, as novelas, os muros, os cartazes, os mapas, os lábios, os lápis, os Ovnis, o Pravda, a vodca… O certo é que continuo aqui, eu.

No dia a dia praticando o meu ofício, carregando os fardos que me cabem, arrancando leite das pedras, matando um leão todo dia, fazendo das tripas coração… Tudo isto fez o sentido todo, completo, nesta noite em que ouvi: “Quanto mais eu sei sobre o meu ofício, mais ele vai ficando difícil! Porque eu não posso parar nas coisas que já fiz, que já aprendi. Eu quero aprender o que eu ainda não sei”. EU QUERO APRENDER O QUE AINDA NÃO SEI, eu quero aprender o que ainda não sei, eu quero aprender o que ainda não sei! Eu quero! 

Neste meu rio de vida, de ladeiras, nesta encruzilhada onde “cada ribanceira é uma nação”. Nesta terceira margem, sigo em frente à minha maneira aguardando a “noite da grande Fogueira desvairada”. À minha maneira, os meus argumentos carregam “carradas de razão”! São Sebastião crivado, abri minha visão das coisas antes do trem estacionar naquela derradeira estação!

Mas antes, deixe eu baldear naquelas cidades, e um pouco mais ainda nesta! Me deixe um pouco mais ter voz ativa, em minha palheta de cores mandar, antes que aquela roda-viva-carregue-meu-destino-pra-lá… Onda se formando na beira da praia… Na beira da praia estarei daqui a poucos dias naquela cidade-ilha ouvindo as batidas do meu coração que nasceu em outro canto e por isso seu ritmo é em redondilhas de sete sílabas poéticas dos cordéis de meu Caruaru. Como estas aqui:

“O meu pai era paulista
Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano
Meu maestro soberano
Foi Antonio Brasileiro.

Foi Antonio Brasileiro

Quem soprou esta toada
Que cobri de redondilhas
Pra seguir minha jornada
E com a vista enevoada
Ver o inferno e maravilhas.

Nessas tortuosas trilhas

A viola me redime
Creia, ilustre cavalheiro
Contra fel, moléstia, crime
Use Dorival Caymmi
Vá de Jackson do Pandeiro!

Vi cidades, vi dinheiro

Bandoleiros, vi hospícios
Moças feito passarinho
Avoando de edifícios
Fume Ari, cheire Vinícius
Beba Nelson Cavaquinho!

Para um coração mesquinho

Contra a solidão agreste
Luiz Gonzaga é tiro certo
Pixinguinha é inconteste
Tome Noel, Cartola, Orestes
Caetano e João Gilberto...

Viva Erasmo, Ben, Roberto

Gil e Hermeto, palmas para
Todos os instrumentistas
Salve Edu, Bituca, Nara
Gal, Bethania, Rita, Clara
Evoé, jovens à vista!

O meu pai era paulista

Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano
Vou na estrada há muitos anos
Sou um artista brasileiro!”


Evoé, Chico Buarque de Holanda!

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Artistas negros na Pinacoteca

"Bandeira do Divino", Firmino Monteiro (Rio de Janeiro, 1855-1888),
óleo sobre tela, 1884, 89 x 146 cm - acervo da Pinacoteca
 
A Pinacoteca do Estado de São Paulo irá inaugurar amanhã, 12 de dezembro, a exposição “Territórios: Artistas Afrodescendentes no Acervo da Pinacoteca”. Este evento faz parte da comemoração dos 110 anos da instituição e com isso traz ao público importantes obras assinadas por artistas brasileiros afrodescendentes, valorizando o legado deixado por eles.


Ao lado disso, a Pinacoteca pretende mostrar uma parte de sua contribuição artística para a historiografia da arte brasileira introduzida na gestão de Emanoel Araújo (1992 - 2002), primeiro diretor negro da Pinacoteca do Estado. Por isso apresenta parte do núcleo de artistas afrodescendentes da Instituição, acrescida de novas aquisições.

São 106 obras entre pinturas, gravuras, desenhos, esculturas e instalações que traçam perfis diferentes da produção artística de afrodescendentes no Brasil do século XVIII até hoje. As obras estão divididas em três conjuntos e dispostas de acordo com a familiaridade dos temas ou territórios: Matrizes Ocidentais, Matrizes Africanas e Matrizes Contemporâneas.

Entre as obras na exposição, se destaca o "Autorretrato" de Arthur Timótheo da Costa, feito em 1908 e doado em 1956. Demorou 51 anos, após a inauguração da Pinacoteca, para que esta instituição adquirisse a primeira obra de um artista negro! As razões são óbvias, pois o racismo, que ainda persiste no Brasil, era ainda pior...

Além deste, Mestre Valentim, Antonio Bandeira, Rubem Valentim, Jaime Lauriano e Rosana Paulino também estão entre os artistas que compõem a mostra. Além das obras do acervo, a Pinacoteca também traz obras dos novos artistas negros contemporâneos.

A exposição ficará aberta ao público até 17 de abril de 2016 no quarto andar da Estação Pinacoteca.

Pinacoteca do Estado de São Paulo - Estação Pinacoteca
Largo General Osório, 66
De terça a domingo das 10 às 17h30
Ingressos a R$6,00 (inteira) e R$ 3,00 (meia)

"Autorretrato", Arthur Timótheo da Costa (Rio, 1882–1923),
óleo sobre tela, 1908, 41 x 33 cm, Acervo da Pinacoteca 
"Natureza-morta", Estêvão Silva (RJ, 1845-1891),
óleo sobre tela, 1888, 37 x 48,5 cm, Acervo da Pinacoteca
"Vista da cidade de Itú", Miguelzinho Dutra (Itu, SP, 1810-1875),
aquarela e nanquim sobre papel, 
1851, 49,2 x 74,5 cm, Acervo da Pinacoteca
Sem título, Miguelzinho Dutra (Itu, SP, 1810-1875) tinta ferrogálica sobre papel,
20,3 x 16,6 cm, Acervo da Pinacoteca
Sem título, da série "Para tampar o sol de seus olhos", Paulo Nazareth,
(Ba, 1977-),fotografia,  impressão digital sobre papel de algodão, 
2010,
69 x 180 cm, Acervo da Pinacoteca
"Antes que eu me esqueça", Flávio Cerqueira, 2013, escultura pintada
com tinta eletrostática sobre bronze, espelho e madeira

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Ateliê Contraponto muda de endereço

Novo endereço do Ateliê Contraponto
O Ateliê Contraponto de Arte Figurativa, dos artistas Mazé Leite, Alexandre Greghi e Luiz Vilarinho, acaba de mudar de endereço. A localização agora é na Avenida Angélica, um local mais acessível e de maior visibilidade, ainda mais próximo ao metrô Paulista.

O Ateliê Contraponto foi concebido para ser um espaço que, entre outras atividades, ofereça cursos de desenho, pintura a óleo e aquarela seguindo um método baseado no estudo das obras dos grandes mestres da pintura, dando bastante ênfase ao aperfeiçoamento técnico a partir do desenho que, historicamente, tem sido o grande diferencial para a construção de todo grande artista.

Com orientação dentro da linha de pensamento dos mestres da pintura, em especial a realista, o Contraponto busca a expressão individual conquistada pelo aprimoramento da técnica, pois falar de arte pictórica é falar de Belas Artes.

Além das aulas de Desenho, Pintura e Aquarela, que continuarão a ser oferecidas e orientadas por artistas experientes, o Ateliê Contraponto também oferece:

– Galeria de exposições
– Aulas de modelo vivo
– Oficinas e workshops com artistas convidados
– Evento “Sexta com Arte”
– Espaço para convivência entre artistas

O novo espaço do Ateliê Contraponto é ainda mais amplo, mais arejado, e bastante charmoso.

Venha conhecer o NOVO Ateliê Contraponto!

Novo endereço:
Avenida Angélica, 2.341 - Higienópolis
São Paulo - SP
Próximo ao metrô Paulista
(a três casas da rua Maceió)

domingo, 29 de novembro de 2015

"Meu poeta, meu cabo de guerra"

Nauro Machado, poeta maranhense
Na madrugada deste sábado, dia 28 de novembro, morreu em São Luís do Maranhão, um dos maiores poetas da atualidade. Tinha 80 anos de idade e um câncer no esôfago. Foi-se, o poeta.

Passei grande parte da minha juventude em São Luís. Lá fui descobrindo uma das culturas mais ricas do Brasil, e um dos maiores berços de poetas. Em São Luís todo mundo é poeta; e não dá pra não ser, pois a vida lá é cheia de meandros e de história bem concreta impressa nos paralelepípedos daquelas ruas velhas, e nos azulejos dos casarões coloniais na ilha de São Luís, rodeada pela baía de São Marcos, onde o vento dobra as palmeiras e forma as ondas em torno da Ilha do Amor.

Nauro Machado
No começo da década de 1980 muitas vezes ouvi o próprio poeta Nauro Machado declamar seus poemas. Invariavelmente embriagado. Eu era muito jovem, ele já maduro, já sabedor das coisas da vida, inspirava em mim respeito e um certo temor daquele homem de barbas brancas, olhos duros, firmes como punhais. Nauro nunca estava sóbrio, a realidade era pesada demais para sua alma plena de poesia. Da sua boca saiam as palavras mais duras e também as mais doces. A percepção direta do mundo para ele tinha que ser suportada através dos eflúvios do álcool que corria por suas veias e lhe levava até o cérebro uma nova forma das coisas. Eu passava meus dias entre poetas, músicos e atores de teatro, ilustradores, fotógrafos, cineastas. Eu era muito jovem, mas a vida para mim já tinha sentido vivendo dentro da arte. Nauro Machado era a própria poesia vivendo perto de mim e de meus amigos. Referência para todos nós.

Transcrevo abaixo um artigo de um outro dos grandes poetas do Maranhão, grande compositor, meu amigo César Teixeira, fazendo sua despedida de Nauro Machado:


Yesterday!

Cesar Teixeira

César Teixeira
Enfim, Nauro Machado venceu sua olimpíada. Aos 80 anos conseguiu romper a corda umbilical de um espaço que, segundo ele próprio, não era seu, “mas do universo” – para a surpresa da Morte, na outra ponta da corda, depois de ver seus planos estratégicos caírem por terra.

O poeta retornou à casa Paterna não como um filho pródigo arrependido, que recebe de prêmio um novilho cevado, mesmo porque não desperdiçou a sua herança, nem abandonou sua cidade como na parábola. Ao contrário, desde a publicação de Campo sem Base, em 1958, não parou de escrever. Foram 37 livros de poesia, além de antologias, ensaios e artigos.

Era esse o seu ofício, e São Luís a sua inspiradora oficina, não obstante o inferno burocrático das repartições públicas. Para tanto, adaptou-se ao cardápio da dor, do sofrimento e até mesmo do “escárnio da (...) província”, a fim de eliminar o homem ilusório e edificar o poeta.

Compartilhava líricas alfarrobas (menos as dos porcos) com prostitutas e artistas amaldiçoados nos becos da Praia Grande e do Desterro, e saudava deus e o mundo com a expressão “meu poeta, meu cabo de guerra”, fosse um deputado ou um chofer de táxi.

“Yesterday!” era sua palavra de ordem, ou melhor, seu canto de guerra inacabado, quando as fartas doses de Santo Antônio dos Lopes sem mel faziam transbordar no poeta uma mistura de alegria e dor – naufrágio íntimo no esôfago da alma, que nos tornaria cúmplices e irmãos de infortúnio. Somente John Lennon ou o Marinheiro Popeye poderiam nos salvar. E tudo foi ontem.

Nauro Machado retornou ao útero de Deus, “feliz e sofrido, mas verdadeiro”, por ter preenchido o seu espaço com a sua poesia, feito a areia fina de uma milagrosa ampulheta, após consumir toda uma existência e completar-se. Estava morto e reviveu: o filho pródigo agora pode caminhar com seus próprios pés.

Até breve, meu poeta, meu cabo de guerra!

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Parto

Meu corpo está completo, o homem – não o poeta.
Mas eu quero e é necessário
que me sofra e me solidifique em poeta,
que destrua desde já o supérfluo e o ilusório
e me alucine na essência de mim e das coisas,
para depois, feliz e sofrido, mas verdadeiro,
trazer-me à tona do poema
com um grito de alarma e de alarde:
ser poeta é duro e dura
e consome toda
uma existência.

Nauro Machado em "Campo sem base"

CALENDÁRIO

Tomaste parte em nenhuma outra guerra.
Não perdeste pés ou mãos dentro desta.
Não abriste túmulo em nenhum lugar.
Nada quiseste além dos teus haveres.
Teu país de bois na aurora plantados,
levou-o o tempo na usura do ocaso.
Fizeste nada sábado, domingo,
segunda, terça, quarta, quinta e sexta.
Igual a todos, somaste semanas,
Unindo a noite ao dia e o dia às noites.
Escuta: o tempo passa! E o teu passou.
Passou o bonde, o colégio, a criança.
Já o adulto vai-se: está chegando ao fim
como um ronco doído em cosa podre,
como um enlatado para ninguém.
Made in Brazil. Tonel à água lançado
No porto noite. Minha família! Ó alma.

      Nauro Machado em "Masmorra Didática", 1979
Parafuso

Sabem-me o rosto,
sabem-me os pés,
sabem-me a roupa.

Viram-me nu,
viram-me inteiro
no corpo imóvel.

Mas só me sabem,
mas só me vêem,
mas só me enterram:

inexistente,
alheio e estranho,
entrado em mim.

Nauro Machado, em 'Os Órgãos Apocalípticos' 

Abre-me as Portas, Mãe

Abre-me as portas, mãe, enquanto as estrelas 
buscam em mim agora a treva infinda, 
sem luz alguma no meu olhar a vê-las 
nessa cegueira a ser da altura vinda. 

Assim, mãe, invado tua noite, a sabê-las 
eternamente em pó na luz que é finda 
só para mim, que vou comigo pelas 
manhãs nascendo todas cegas ainda. 

Como fazê-las ser de novo vivas? 
Como, se nunca delas fui um conviva 
às vidas feitas festas para as vistas? 

Para arrancá-las da morte onde as pus, 
quero essa noite, ó mãe, roubada à luz 
do céu que, embora cega, tu conquistas.

Nauro Machado em "O Cirurgião de Lázaro"