terça-feira, 9 de julho de 2024

E os sonhos, sonhos são *

 

04/04/2023

O sol saiu, finalmente, e as luzes do outono já tingem as nossas vidas, nossas cidades, a Natureza. Sempre gostei desta luz, mais branda, parece que se espalha mais, porque desnuda mais as coisas do mundo. A luz forte do verão estoura nossa visão com complementares muito sombrias ou muito luminosas. Ou os dias são tórridos e resplandecentes, ou sombrios e acinzentados. E chove, muito. Neste ano então…

No Capinzal, onde se localiza nosso sítio (já podemos chamar nosso pedaço de terra assim, uma vez que já começa a produzir comida), a estrada de terra ficou impossível com a chuvarada deste último verão. Em um determinado trecho, carros atolaram, caminhões evitavam passar, voltavam carregados de material que iriam entregar nas obras. Mas uma ideia surgiu a partir de uma conversa onde estávamos eu, Lumena e Douglas. Lumena falou da ideia de um abaixo-assinado dos moradores do bairro (um aglomerado de pequenos sítios), já tinha redigido o texto, agora era correr a vizinhança em busca de assinaturas de apoio. Douglas contribuiu com a ideia de “então aproveitar e criar um grupo no zap”. Grupo do Capinzal. Assim foi feito, e em dois finais de semana Lumena organizou uma ida a todas as moradias, recolhendo a assinatura do povo. Deu certo. Entregue à prefeitura de Cunha, dias depois um trator e um caminhão vieram consertar o trecho ruim da estrada. E os carros e caminhões voltaram a trafegar…

Minha construção caminha agora a passos mais largos, mesmo com calendário atrasado. Fernando já colocou toda a ferragem dos baldrames, já concretou sapatas e brocas. A etapa seguinte é concretar os baldrames, depois partir para o contrapiso para, enfim, começar a levantar as paredes da minha futura casa.

Dia desses sentei na sombra da árvore vizinha, observando Fernando e Douglas trabalhar. A terra ainda estava úmida das chuvas do verão que foram torrenciais. Me lembrei dos dias e noites de angústia, quando Fernando me dizia que choveu muito à noite e não daria para ir no dia seguinte, ele também angustiado. Quando essa chuva vai parar? Pergunta egoísta, eu sei, a chuva alegra a Natureza, a fertiliza, a prepara para as brotações todas. Então, sob a sombra da árvore, comecei a ver que a chuva tinha feito uma lavagem do terreno todo, uma lavagem do lugar que nos recebia. Para que reclamar? Os mistérios do mundo são maiores, assim o sabem as Iyawôs da Bahia, lavando as escadarias da igreja do Bonfim. Salve Oxalá!

Às cinco horas da tarde, depois do descanso porque o sol estava a pino, fui na casa de dona Nair, uma vizinha. Chamei da porteira, um cachorro latia, bravo. Ela saiu à frente da casa, brigando com o cãozinho e me falando para entrar. Na varanda, seu Chico estava sentado diante do filho, que lhe cortava as unhas. O povo da roça é muito bem humorado, fizeram graça com a cena, seu Chico reclamou da catarata, e eu entrei na cozinha da dona Nair. Tinha ido buscar um queijo que ela mesma faz com o leite das suas vacas, queijo delicioso, no ponto certo do sal. Mas não se vai embora sem o café e o lanche que ela oferece. E ainda levei uma sacola com limões e chuchus, enquanto ela me dizia para voltar dali uns dias porque iria ter laranja e mexerica. Seu Chico já tinha nos dado feijão que ele mesmo tinha plantado e colhido, no alto de seus 81 anos de idade. Tantos presentes temos recebido, nessa acolhida afetuosa, à nós, os que cansaram da vida louca da metrópole, onde o dinheiro é rei e “onde vivem as pessoas que não sabem sonhar a não ser consigo mesmas”, como diz Davi Kopenawa em seu livro “A queda do céu”.

Eu, que sempre sonhei e tinha orgulho dos meus sonhos fantásticos, havia parado de sonhar. Há anos, minhas noites vinham sendo um apagar-me de mim, por algumas horas. Breu, ausência, vazio. Restava-me alimentar os grandes sonhos-projetos, como os que me trazem a pintura, a poesia, a arte. Devanear, sonhar acordada, sempre fui boa nisso. Mas sentia falta dos meus sonhos noturnos, quando o corpo descansa e a alma pode voar pelos espaços e tempos infinitos. Graças às minhas recentes aproximações com outros mundos, os mundos dos indígenas brasileiros como Kopenawa e Krenak, ou os mundos da sabedoria africana dos Orixás sagrados, tenho descoberto que a vida é mais rica do que pode imaginar a nossa cada vez mais vã filosofia ocidental…

Neste sentido, essa transição a que me propus, de deixar a vida em São Paulo e ir em direção às raízes, mudando para o campo, tem muitos mais elementos a serem percebidos. Não é só arrumar as coisas, chamar um caminhão de mudança e levar tudo o que tenho, com meus três gatos, para minha nova morada. Ah as chuvas… Tanta reflexão pude fazer enquanto a chuva caía sobre a minha terra, que adiava a feitura da minha casa. Fui lendo Kopenawa e Krenak, fui absorvendo o conhecimento rico e profundo das nossas tradições mais puras, escondidas pelas florestas. Fui me entregando ao Ilê, dançando para os Orixás, me vestindo de branco, reverenciando essas heranças ancestrais que atravessam tempos não-lineares e que me levam a mundos fascinantes, dos quais antes eu não tinha conhecimento. 

Minha formação é padrão branca, ocidental, racional. Um mais um é dois e jamais pode ser três, porque nesse mundo as potencialidades são assim estreitas. Penso logo existo? As aparências de tudo o que posso ver são estas mesmo, nada há por detrás. Nada do que se encantar que não seja dado pelo dinheiro. O Antropocentrismo é inquestionável, a vida humana é a mais importante. A mente humana então? Nada é mais rico no universo. E assim seguimos destruindo nosso planeta e vivendo vidas de merda: sonhando com altos salários, casas na cidade e na praia, os melhores SUVs do momento, as mais caras viagens pelo mundo, enquanto tomamos Diazepans e Rivotrils ou as melhores drogas anti-depressivas e anti-stress aprovadas pela Anvisa… Estima-se que até 2030 a depressão seja a doença mais comum no mundo inteiro…

Quando se volta a sonhar, o mundo se encanta. Tudo está interligado por um sutil encadeamento que faz árvore, pedra, estrela, pássaro, serpente, oceano, cachoeira, galáxia, planeta, buraco-negro, matéria-escura, criança, micróbio, areia, animal, átomo, rio, tudo dançar! E como esse mundo é embriagante, vamos nos embebedar dele,como propõe Baudelaire:

“É preciso estar sempre bêbado. Tudo está certo: única questão.

Para não sentir o horrível fardo do tempo que curva teus ombros e te faz curvar em direção ao chão, é preciso que você se embriague sem medo.

Mas se embriagar do que? De vinho, de poesia, ou de virtude, como você escolher. Mas se embriague!

E se alguma vez, sobre os degraus de um palácio, sobre a erva verde de um fosso, na solitude morna de seu quarto, você se levantar com a bebedeira já diminuída ou desaparecida, pergunte ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que se move, a tudo o que se lamenta, a tudo o que fala, a tudo o que canta, pergunte que horas são; e o vento, a onda, o pássaro, o relógio, irão te responder: – é hora de se embriagar! 

Para não ser mais um escravo martirizado do tempo, embriague-se sem cessar! De vinho, de poesia, do que você quiser.”

—————————

  • * trecho do poema de Calderón de La Barca.

Tempo, vou te fazer um pedido!

 02/03/2023

Uma casa tem vida e construí-la é um processo de amadurecimento — do lar e de quem lá viverá. Na Ecomunidade, o terreno é aplainado; os alicerces logo serão fundados. E esta gravidez de habitar já está povoada de novas e velhas sensações.

O clima chuvoso não tem dado trégua. Desde novembro, praticamente todos os dias chove na região de Cunha. Desde leves e insistentes garoas até pancadas d’água rápidas e vultosas, ou mesmo chuvas tempestuosas que duram horas, deixando a terra encharcada. Enquanto isso, o projeto da minha futura casa foi se modificando, porque o ente “casa” é um ser vivo, se movimenta por dentro de mim e também no papel e no terreno real.

Mas antes é preciso dizer que nada do que sei agora, eu sabia há poucos meses. Por exemplo que, para dar vida ao projeto é preciso preparar a terra; o terreno deve estar moldado para ser uma base plana e sólida, onde o pedreiro vai escavar as valas para o alicerce, montar as sapatas, abrir as brocas, estender as vigas baldrame. Mas as chuvas vêm atrasando toda esta fase. O tratorista Bruno conseguiu, em um abrir de sol de dois dias, passar a máquina e deixar a terra aplainada. Fernando, o pedreiro que também é artista ceramista, pouco tem conseguido fazer com o trabalho de escavar as valetas. Ainda não chegou nas sapatas e nem nas brocas, porque… ah… as chuvas, as chuvas, as chuvas…

Enquanto isso, a área coletiva vem ganhando riquezas incríveis: temos três pontezinhas de madeira feitas por nossos amigos Dito e Rodolfo. Elas agora nos permitem atravessar os pequenos riachos e áreas encharcadas. Também chegou nossa energia elétrica: foi instalado um poste e um grande transformador. A distribuição através do terreno será feita por estes dias, uma rede elétrica interna da Eco Bem Viver, feita com postes de eucalipto tratado. Nossa horta coletiva já produz fartamente: abóbora, abobrinha, feijão, milho, melancia. Na terra fértil, a vida é um arrebentamento! Arrebata!

Pretendemos respeitar todas estas formas de vida, neste lugar que escolhemos para viver. Será um desafio? Sim, mas nossa disposição é radicalmente esta. Afinal, neste momento em que vivemos, é esta uma das grandes lições que nosso maltratado planeta está a nos mostrar: a cadeia imensa que envolve todas as formas de vida mostra como é importante o trabalho das abelhas, das formigas, dos fungos, dos sapos, das serpentes, das árvores, dos morcegos, dos arbustos, das gramíneas, de cada besouro grande ou pequeno que toda noite, no verão, “fica dando volta em volta da lâmpida”, dentro de casa.

Em apenas um ano já traçamos as ruas, definimos as cotas, roçamos, plantamos, colhemos, construímos. Temos uma pequena casa de dois cômodos, varanda e banheiro seco. Será nosso lugar de guardar ferramentas e beneficiar as coisas da horta na varanda. Nosso lago, que antes era um buraco informe, está cheio de água da chuva, ainda barrenta, mas que atrai os sapos e pequenas formas de vida. Consigo vê-lo no futuro: água limpa, espelhada, com peixinhos nadando, cercado de flores e pequenos lugares cobertos de plantas, criando sombras para os bancos onde nos sentaremos para contemplar essa beleza.

As primeiras duas casas em construção, a minha e a da Lumena, terão paredes de tijolo ecológico, o tijolo que não precisa queimar madeira, nem soltar fumaça. Também não precisa de todo o cimento da construção de alvenaria tradicional, onde se usa fazer chapisco e reboco. As paredes de tijolo ecológico, quando levantadas, praticamente já anunciam que a casa está pronta, e apenas precisa receber o telhado. Para o acabamento – esta fase da obra que deixa em pânico todos os que pensam em construir uma casa – estou pensando também em simplicidade e muita criatividade com pias, balcões, torneiras, cimento queimado, iluminação. Teremos um sistema de aproveitamento das águas das chuvas. Os banheiros terminarão num sistema biodigestor, assim como as águas “cinzas” serão reaproveitadas para as plantas que usam muita água, como as bananeiras.

Mas eu dizia que minha casa é um ser vivo. Sua concepção inicial nasceu de uma conversa entre mim e meu amigo Victor, que é arquiteto e se dispôs a me auxiliar no projeto. Dias depois me apresentou sua ideia: uma casa grande, com uma grande sala redonda coberta por uma laje também redonda, onde eu poderia subir para pintar de dia e contemplar as estrelas de noite. Que encanto! Falei dela e dos efeitos que me causou em outro texto aqui. Passei três meses me imaginando dentro dela, adorando suas curvas que remetiam às curvas naturais, das árvores às galáxias. Mas a realidade foi me mostrando os limites desta construção: estruturar uma forma redonda, desde sua fundação, passando por suas paredes e todo o sistema de sustentação da grande laje é um processo muito difícil, que exige muito primor e custa caro.

Era começo de dezembro e chovia. E eu em São Paulo, esta ilusória zona de segurança. Sempre durmo bem, deito e adormeço. Mas isso começou a se alterar: ficava horas mudando de lado na cama, corpo irrequieto porque a cabeça estava longe dali. Descobri que o corpo dói e não encontra boa posição quando os pensamentos afastam a cabeça do corpo. Era preciso tomar uma atitude. Tomei. E o projeto da casa se movimentou: as paredes curvas se tornaram retas, a laje se transformou em telhado, a casa encolheu, ficou mais aconchegante. E eu voltei a dormir…

Por isso, ainda bem que choveu o tempo justo para que a casa fosse amadurecendo em mim. Como numa gravidez, vou pegando meu projeto nas mãos, afagando sua forma, redesenhando-a, me familiarizando com os lugares que vão ser criados, imaginando minha vida dentro dela, enfeitando-a, cuidando dela, ela cuidando de me dar abrigo e proteção. Já me sinto intrinsecamente ligada a esse ser que vai nascer.

Nessa gravidez, mil pensamentos ficam dando volta em volta de mim, como os besouros. Ideias surgem, algumas são afastadas; de outras, tomo nota. Sensações novas ou velhas me povoam, assim como emoções e lembranças. Todo este processo tem sido vivido com uma intensidade que eu nem sei… Dia desses me perguntaram: — em nenhum momento você tem dúvidas? Resposta: — sim, muitas vezes! Vez por outra acontece de o espaço-tempo parar, numa singularidade que é minha conhecida, e tremo diante da constatação de que mais uma vez farei uma inflexão importante em minha vida. Mas não tem mais volta. A escolha já foi feita e não há como voltar a uma vida que não faz mais sentido e nem à mulher que já não sou. São Paulo ficou grande demais para a menina que nasceu em Caruaru e que está envelhecendo… Por isso está chegando a hora de partir, a hora de mais uma vez queimar meus navios, voltar para casa. — Para a casa que ainda está em construção,  “voltar” para o futuro? — A meu ver, volto para mim mesma, a garotinha, filha, neta e bisneta de pessoas simples que viviam uma vida simples no sertão nordestino. Mas se às vezes me espanto e prendo a respiração, é só para que o pulsar da vida lateje com mais vigor. Sonhando para que, nesse ritmo, a vida seja mais poesia.

Os festeiros do Divino em nossa casa

 8/12/2022

A sala se transformou num terreiro circular, e onde estavam os quatro homens surgiram sumaúmas com suas raízes profundas. Não eram mais quatro vozes, eram milhares, porque toda a ancestralidade se fez presente. Nossas almas se encantavam.

Era meio-dia e tudo estava em silêncio, até os pássaros e os ventos. Domingo claro de sol, céu azul. Terminei de guardar as coisas que trouxe de São Paulo, dei uma olhada geral na casinha alugada de seu Chico, nosso pouso até termos os nossos. Ouvi o som de motor de carro, alguém passando em alguma estrada de terra. Lumena veio da casa de dona Nair, vizinha, mãe de alguns dos filhos de Francisco. Foi logo dizendo: – se prepara, vamos receber visitas!

Minutos depois dois carros chegaram, uma Kombi e um Fiat. De dentro deles saiu uma ruma de gente, vestida de vermelho e branco, carregando um mastro cheio de fitas coloridas, encimado por uma coroa de rosas vermelhas em torno de uma pequena pomba branca. “São os festeiros do Divino Espírito Santo”. Depois de nos cumprimentar, um a uma, se apresentaram: uma moça disse que ela e o esposo eram um dos sete casais escolhidos para fazer a Festa do Divino de 2023. Vinham com ela os festeiros, as rezadeiras. Dois homens portando duas violas, um outro um tambor e um quarto trazia seu triângulo. Pediram licença, entraram em nossa sala.

As mulheres puxaram as rezas e todos nós nos portamos em círculo em volta de uma pomba branca. À Lumena foi destinado o mastro com suas fitas coloridas e as rosas vermelhas. Ela aceitou a obrigação, ouvindo que este mastro trazia bênçãos para nossas casas, famílias, nosso bairro Capinzal. Meus pensamentos, minha racionalidade, meus modos de ser urbanos se afastaram, eu me via novamente surpreendida pelos mistérios do mundo. É quando sou outra.

O canto começou. As duas violas fizeram uma espécie de introdução seguindo o ritmo do tambor e do triângulo. Quatro vozes masculinas, em tonalidades diferentes, entre baixo, contralto, tenor e soprano trouxeram uma música que atravessou tempos, séculos e tradições. Era alguma louvação ao Divino Espírito Santo que lembrava o velho cantochão dos monges da Idade Média. Em ritmo suave, as sílabas se estendiam com a respiração dos quatro camponeses que arrancavam do fundo de suas respirações e almas um novo impulso sonoro, mais grave, mais agudo, mais intenso.

Aquela sala se transformou num terreiro circular, e no lugar exato onde estavam os quatro homens, na verdade surgiram quatro árvores, com raízes muito profundas como Sumaúmas, Ipês e Sibipirunas. Aquele canto virou um canto da Terra, que subia através das raízes e se alastrava pelo ambiente, cujo ritmo alongado, lento, parecendo um lamento, reverberava em nossos corpos, mulheres e homens naquela sala. Não eram mais quatro vozes, eram milhares, porque toda a ancestralidade de todas as pessoas se fez presente. Nossas almas cantavam, encantadas. A música, sabemos, fascina e carrega misteriosos encantamentos capazes de nos arrancar de determinado espaço-tempo. 

Os Festejos do Divino se espalham pelo Brasil inteiro. Foram trazidos pelos portugueses, mas se fala de registros destas festas no século XIII na França. Chegaram na Península Ibérica, alcançaram Portugal, atravessaram o Atlântico. Aqui chegando cruzaram com duas tradições fortíssimas: os indígenas e os africanos. Que acrescentaram de si a esta festa, enriquecendo-a com sons, cores, danças, falas, línguas, culinárias, gestos. Amálgama cultural brasileiro. Antropofagia belíssima que somente acontece nessas terras. No Maranhão, o festejo é dirigido pelas Caixeiras, mulheres que carregam suas “caixas”, espécie de releitura de antigos atabaques. Porque quem dá o tom e o ritmo maranhense da festa do Divino tem sido o povo preto.

Em Cunha, a mistura se fez com brancos, indígenas e africanos. Por isso, naquele canto a quatro vozes, grave, em andamento larghissimo, que eu me esforçava para compreender alguma palavra, podiam conter francês, português arcaico, latim, tupi-guarani, yorubá, português brasileiro… “Tupi or not Tupi”… E ressalte-se que ano que vem, em julho, nos dias dos festejos do Divino de Cunha, haverá a Congada, a tradição africana de origem angolana e congolesa, festa milenar que aqui também passou, como outras, pela nossa oswaldiana canibalização, nossa mania de “comer” o estrangeiro… 

Depois de dois cantos, sabendo que os festeiros recolhiam donativos para a festa do ano que vem, entregamos nossa doação, que foi agradecida com outro canto. Meus olhos estavam marejados, eu mal via os homens e as mulheres de vermelho. Uma das árvores se dirigiu a nós, ao final do canto. E o homem nos chamou para acompanhá-los, para ir comer num sítio vizinho, onde a dona da casa tinha feito um almoço para receber os festeiros e todos os que quisessem se juntar a eles. Lembrei das Festas de Santo nos terreiros de Candomblé, onde todos os presentes se reúnem numa grande ceia, ao fim da festa, se alimentando do Axé do Orixá.

Nos dias do festejo do Divino, tudo também termina num grande almoço. Em Cunha, esta festa, que já dura 300 anos, tem toda a preparação que se inicia meses antes, como agora, onde um casal de festeiro guia os outros para recolher donativos que garantirão a grande festa. No grande dia, mulheres jovens e velhas saem de suas casas carregando suas peneiras para ajudar a catar o feijão do almoço. São sacas e sacas de feijão e arroz, kilos e kilos de carne. Já se chegou a alimentar mais de 20 mil pessoas há alguns anos. Todos são convidados a esta imensa mesa, cheia de axé, cheia de bênçãos, feita por tantas mãos. 

Mas neste domingo, agradecemos o convite para o almoço no sítio vizinho, sem saber como agradecer mais o presente de ver de perto esta tradição e de sentir a força da cultura e da alma do nosso povo. “Ano que vem, nós vamos”, respondemos. “Venham na novena também”, sugeriu a mulher de roupa branca e vermelha, parceira e irmã das ogãs e ekedis de Oxalá e de Ogum. Ou de Oiá. Saravá!

Deixaram conosco um pequeno pacote de sal. “Sal bento”, afirmaram. É pra ser acrescentado ao sal da casa, ao sal dos animais, semear nas plantas. Tudo isso trará fartura e prosperidade para a casa e a família. Saravá! 

E eu mal tinha chegado de São Paulo…

Entre a metrópole e os vagalumes

24/11/2022

A chuva desaba sobre o ranchinho, onde a Ecomunidade começa a existir. De manhã, todos chegam para celebrar juntos, caiando as paredes; um ano de construção! Na cidade, meu coração bate como o desafio dos sapos: Estou? Não estou?

Os preparativos para o começo da construção da minha casa, no terreno da Ecomunidade Bem Viver, estão iniciados. Agora sonho com tijolos, me vejo dentro de paredes erguidas em prazo mais curto do que jamais pude prever, passeio e danço em minha sala redonda.

De novo peguei a estrada, domingo de manhã. Há poucos dias o Presidente Lula foi eleito e a extrema-direita ainda estrebucha. Vi suas marcas em dois pontos do asfalto da rodovia Presidente Dutra, pontos onde queimaram pneus, bloquearam o trânsito, estes fascistas. Manchas ameaçadoras, elas trazem de volta esses seres capazes de gritar as piores barbaridades, de pregar as piores mentiras, de acreditar nos maiores absurdos, cegos de fanatismo. Mas … “a História é um carro alegre, cheio de um povo contente, que atropela indiferente todo aquele que a negue”… Melhor me ligar na voz de Bituca.  

Levo comigo dentro do carro, além de um fogão usado e outros objetos que serão úteis nesta fase inicial da comunidade, a planta baixa da casa e imagens em 3D do projeto. O pensamento volta: que alívio termos derrotado a extrema-direita nestas eleições presidenciais. Novamente podemos sonhar! Todos os nossos projetos, pessoais e coletivos, estão autorizados a serem sonhados e executados. O contrário disso seria viver num país impossível, vendo serem erguidos valores carcomidos pelo tempo e pela história; seria continuar a assistir ao desmonte da cultura, da educação; da derrubada de mais hectares das nossas florestas; da perseguição e da violência contra os indígenas, contra os defensores do meio-ambiente e contra nosso povo preto. As hienas fascistas ainda permanecerão grunhindo por um tempo. Uma hora qualquer se calarão.

Cheguei em Cunha, fui direto pro Capinzal, onde fica a terra. O dia estava nublado, sem sol, mas iluminado. Nuvens cinzentas se avistavam na Mantiqueira, ao longe, e na Bocaina. A previsão é de chover durante a semana toda, mas ainda não começou. Passei na casinha alugada de seu Chico, peguei a chave do rancho que construímos, para deixar lá o fogão. Estava sozinha para carregá-lo mas encostei o carro o mais próximo possível e lembrei da velha máxima de Arquimedes que sempre uso como argumento quando alguém se espanta com a minha força: “dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e moverei o mundo”. Mundos movidos, fogão lá dentro, volto para a casinha.

Passei a primeira noite da vida sozinha numa casa de roça. Sensação nova, instigante. A noite veio sem lua no céu, mas ela está lá, cheia, escondida atrás de densas nuvens. Amanhã o Sol a eclipsará totalmente. E como eclipses e luas movem coisas cá embaixo, as nuvens desabaram. Um barulho de vento e chuva e raios e trovões caiu sobre a pequena casa de tijolos de olaria. Mas durou pouco, depois veio o silêncio. Eu já me deitara sob mil cobertas por causa do frio de 10 graus de novembro (!) e ouvia o silêncio… Dentro dele, identifiquei um som longínquo de um avião passando a quilômetros de altura, em sua rota aérea. Depois outro, depois outro… Até que veio a cantoria dos sapos: foi, não foi! Fui, não eu! Foi sim, fui não…

Amanhecido, o dia trouxe Lumena e Guaíra. Douglas pegou sua roçadeira e começou a cortar o mato da minha cota de terra que já ia alto, por causa das primeiras chuvas. Enquanto isso, também limpamos os pés de milho, fava, feijão e abóbora da nossa primeira horta coletiva. Fomos, munidas com o facão, cortar alguns pés de Lírio-do-Brejo, abrindo uma trilha para encontrar o pequeno riacho que margeia nossa mata. Mas as águas tinham subido e o terreno estava encharcado. Resolvemos limpar o mato em volta do nosso lago e plantar mais sementes na horta. Aproveitei, peguei a enxada e fui transplantar três mudas de abacate que tinham sido colocadas bem no local onde ficará minha futura casa. Plantei-as em lugares mais seguros, assim como tinha feito com minha muda da árvore Pau-Ferro, que agora define um dos cinco cantos da minha cota.

Sentei no meio do chão roçado, contemplando meu lugar, tomando posse. A Ecomunidade Bem Viver completou, em 7 de novembro, o primeiro ano de existência. Resolvemos comemorar todos juntos no próximo fim de semana. Quanta coisa aconteceu em tão pouco tempo! Em um ano apenas, compramos o terreno do Capinzal, registramos os documentos todos, roçamos toda a terra, o trator abriu as ruas entre as futuras casas, construímos uma primeira casinha, captamos as primeiras águas da fonte que nos abastece, solicitamos a instalação de eletricidade, demarcamos doze cotas, e duas casas estão prestes a serem erguidas. Mais outras virão, em breve.

Era pra chover todos os dias, mas choveu pouco. Mesmo assim, os dias estavam nublados e frios, as noites escuras. A luz amarela que ilumina a casinha aquece pouco o ambiente. Mais aquecem nossas conversas, lembrando de tempos idos de nossas vidas, de tempos futuros que virão e nos encontrarão habitando aquele lugar emoldurado pelas montanhas e pela Mata Atlântica. Lumena acendeu seu cigarro de palha e saiu para fora. Segui-a depois, em silêncio, ouvindo os sapos: – foi, não foi! Foi, não eu! Foi sim, foi não… E assim seguia a arenga que se repete todas as noites. 

De repente, minha amiga aponta para um brilho que não estava só na ponta de seu cigarro. Olhei na mesma direção: eram milhares de pequenos brilhos que se acendiam e apagavam, ritmadamente, acendendo a noite com seu pequeno lume, mas que se multiplicou e rapidamente nos vimos rodeadas destes insetinhos bioluminescentes, os vagalumes. Parecia que as estrelas desceram à terra para brincar com nossa imaginação e nos fazer novamente voltar a ser crianças, duas meninas brincando de correr atrás das luzes enquanto repetiam a cantoria dos sapos, verdadeiras disputas que nos arrancavam gargalhadas. Foi não, foi sim…

O fim de semana trouxe todos os amigos do grupo. Nos vimos, nos abraçamos, sorrimos juntos, não paramos de falar, contentes de nos encontrar fisicamente depois de tantos meses. Semanalmente nos reunimos virtualmente, colocamos o papo em dia, resolvemos coisas, ações a serem tomadas, perrengues a serem enfrentados, decisões. E vamos nos conhecendo mais e mais, constatando que, como um coletivo, temos muita capacidade de criação e de empreendimento. Que grupo de pessoas fortes, aguerridas, dispostas ao imenso desafio de viver valores outros que não os somente impostos pelo sistema sufocante do capitalismo. Comemoramos este primeiro ano com festa e trabalho. Um deles, fazer à mão, com terra e cal, o reboco da primeira casinha que construímos, enfeitando-o com recortes de vidro colorido doados pela artista da modelagem com vidro, Sandra Tami, uma de nós. Tudo orientado por nossa presidenta, Luciana.

De novo estou em São Paulo, de novo me preparando para voltar a Cunha. Hoje, lá fora, o tempo é inamistoso, as ruas estão barulhentas como sempre. Chove forte e meu pensamento voa em direção ao tempo em que eu era pequena, desobediente e rabugenta, sempre pensando em fugir. Estou fugindo deste lugar, baby… Desta vida na metrópole que cresce em verticais e que há algum tempo tem me feito sentir-me de novo deslocada, outsider outra vez. Daqui do meu sofá, nesta cidade, canto como os sapos: – Estou, não estou! Pertenço, não pertenço! Existir… a que será que se destina?

O fim da ladeira?

 27/10/2022

Os dias se iluminam mais cedo na medida em que a primavera avança em direção ao verão no hemisfério sul. Época das primeiras chuvas. Acordei na casinha alugada na roça com os primeiros lampejos de luz, mas eram fracos. Choveu a noite inteira e ainda estava chovendo forte. Abri a porta da cozinha e olhei para fora: Zina, a cachorra, que sempre dorme ao relento, desta vez tinha se rendido e se enroscado ao lado do tanque na pequena área coberta. A natureza lá fora estava parcialmente oculta pelas gotas de chuva que caíam em cascata, deixando um vapor que se espalhava pelos morros. Os pássaros, sempre barulhentos e namoradores na primavera, se ocultavam em seus galhos. Mas eu precisava voltar para São Paulo, que fazer?

Os cinco quilômetros de estrada de terra que nos separa do asfalto são íngremes, irregulares. Numa parte há o cascalho, que até ajuda a passar com a terra molhada. Mas há trechos em que a terra havia virado um pó fino depois de meses sem chover. Há quatro ou cinco subidas e descidas que desafiam nossos carros feitos para o asfalto. A direção do carro fica quase incontrolável, ele desliza, entregue à lama, transversalmente à estrada. Na subida, isso complica pois os pneus patinam. Na descida, há que se impor ao carro o peso da gravidade, para que ele não saia desembestado ladeira abaixo. Perigo. Mas há qualquer coisa dentro de mim que sente uma força danada em situações difíceis… Deve ser porque sou brasileira.

Certa feita, há muito tempo atrás, eu estava dirigindo um Fiat 147 por uma estrada de terra no interior do Maranhão. Ia com dois rapazes, o carro cheio de panfletos e um megafone. Nos dirigíamos a um povoado distante da cidade mais próxima, Pedreiras, para apresentar aos camponeses do lugar o programa do primeiro candidato comunista depois do fim da ditadura militar. No Maranhão chove muito, quase o ano todo. A estrada era sofrível do começo ao fim, mas o carrinho era forte, fácil de manobrar nos buracos. Até que chegamos a um verdadeiro charco, que bloqueava a passagem. A única possibilidade era atravessar por uma rampa inclinada a uns 45 graus. Que fazer? Olhei pros meninos: vamos? Eram dois rapazes fortes, parceiros, sorridentes. Fomos. Eu na direção, guiando o carro através da rampa até quase virar, mas não virou, porque os dois seguravam o pequeno fiat do lado oposto ao meu. E chegamos no povoado rindo e nos sentindo os mais valentes.

Olhei para o aplicativo do celular, a previsão era de chuva o dia todo. Resolvi esperar para ver se a chuva diminuía. Mas eu queria viver a experiência de dirigir na chuva, nesta estrada de Cunha. Queria ver o tamanho do perigo. Lembrei daqueles dois amigos, por onde andarão? Que farão? Têm filhos? Estarão vivos? Nunca mais soube nada deles, depois que vim pra São Paulo em 1987. Resolvi sair porque a chuva não diminuía por nada! Me despedi de Lumena, que me desejou boa sorte, fui. Muito devagar, sentindo o carro, sentindo o chão, cada pedra, cada poça d’água, cada lamaçal. O pior eram as descidas, mais inclinadas quando se vai em direção a Cunha, pois no sentido contrário são subidas íngremes demais. Passei por três delas, controlando o carro. Restava ainda uma, a maior, que desabava logo depois de uma área plana. Parei o carro antes de descer, respirei fundo, clamei por Exú, o Orixá que abre todos os caminhos e protege dos perigos. Com a primeira marcha engatada, as quatro rodas grudadas na terra enlameada, ia deixando a gravidade agir sobre o carro para baixo, usando o freio motor, a primeira marcha, o freio, o freio, o freio… E o carro foi descendo colado à terra, controlado por meu corpo, mãos, pés, cabeça, emoção, medo, decisão, desafio… Adrenalina estimulada, meu corpo é o do animal acuado que, ou foge ou luta, lutei. E chegamos sãos e salvos, eu e meu carro, na parte final e plana da estrada. Parei, respirei profundamente, minhas mãos tremiam, mas eu estava feliz. 

Na semana seguinte reuniões com Eduardo, o dono da olaria que fabrica os tijolos ecológicos da minha futura casa. Victor, o arquiteto, trabalhando na fase final do projeto. O pedreiro com quem já iniciei contatos, se colocando à disposição para daqui a um mês. Frio na barriga! Me sinto pulando direto do meu sonho na realidade! Em breve meus caminhos me levarão para o grande desafio de erguer a minha casa com os poucos recursos de que disponho. Mas em momento algum duvido de que dará certo! Victor, Eduardo, Lumena, Patrícia, Flávio, Luciana, Johnny, Jéssica e Leo, Sandra, Jane, Gabi, Antonio, Jeosafá, minha mãe, meus irmãos, meus alunos, meus amigos, todos estão ao meu lado incentivando, vai dar certo, vai dar certo! Não duvidem, não duvido.

Parei para tomar um ar. E voltei ao meu país que, desde 2018, vem descendo ladeira abaixo, desmoronando e forçando a todos nós um jeito de viver que “no equilíbrio da lata, não é brincadeira”. Estamos todos tensos. Noites mal dormidas, pesadelos, um acordar de manhã no susto, um medo tão grande de que no próximo dia 30 a gente patine nesta estrada mal-ajambrada, que o país desembeste em direção ao abismo, ao perigo, ao fascismo. Nós que vivemos no período da ditadura militar tememos ainda mais: por nossa liberdade, por nosso sossego, por nossas vidas. O país hoje é um grande caldeirão de experimentos malignos: reativação de valores ultrapassados, violência alastrada, discriminações e preconceitos aflorados, manipulações de toda ordem travestidas de religiosidade alcançando a cabeça de milhões de brasileiros simples, pessoas humildes, exploradas, maltratadas por séculos de injustiças sociais que são guiadas por falsos guias, estranhos capitães que arrastam multidões atrás de si em direção a um impossível paraíso celeste, já que o terrestre eles mesmos ajudaram a tornar insuportável. Por trás disso tudo, movimentando os pauzinhos, a mesma velha elite brasileira: egoísta, inculta, orgulhosa, sentada sobre uma riqueza acumulada em séculos de exploração do povo pobre. Elite desgraçada, elite que governa um país que permitiu 350 anos de escravidão do povo preto. Elite miserável, que é capaz de elogiar a distribuição de renda dos países nórdicos mas incapaz de olhar para seus empregados como seus iguais.

Não, não é possível tergiversar! Suspendam-se todos os sonhos! 

Fui ao mercadinho do MST ontem de manhã. No caminho, levas de miseráveis deitados às centenas, com seus trapos, nas calçadas. Quase todos pretos. Um e outro atravessando entre os carros, tontos de tanta desgraça que caiu sobre suas vidas. Avistei a loja, entrei. Um ar fresco me alcançou logo na entrada, onde uma banca portava adesivos da campanha de Lula, bandeiras dos movimentos sociais, bonés com a logomarca do Movimento Sem Terra. Há esperança! Desde 1500 vivemos de esperança, e nosso povo jamais deixou de resistir. Duas mulheres arrumavam coisas nas prateleiras, arroz orgânico, feijão, frutas e verduras sem agrotóxicos. Perguntei onde encontrava o milho, me apontaram a outra prateleira e deram passos ao meu lado na mesma direção, me ajudando a encontrar, solidárias.

O fim desta trágica ladeira parece estar acabando no domingo. Nós três fizemos o sinal, quando me despedi: o L que nos salvará de despencar no abismo.

Adeus à selva do capital: “Agora não lamento mais”

 29/09/2022

O sonho de viver em comunidade sai do papel. Entre o mar de montes e as matas, tijolo por tijolo ecológico, minha sala-ateliê será redonda tal a abóbada celeste. Respiro ar puro. E, neste domingo, poderemos aspirar outro futuro.

A configuração do terreno já saiu do papel e já está na terra real: o trator finalizou a abertura das ruas, fazendo as retas e as curvas necessárias para que se possa passar através delas, a pé, de carro ou de bicicleta. Falta o acabamento das encostas, as valetas para captar e direcionar as águas das chuvas. Com tudo isso acontecendo, as cotas individuais foram reveladas e já é possível a cada um de nós olhar para elas através dos sonhos de moradas leves.

Fez um ano que me associei a este grupo Ecomunidade Bem Viver. Nestes doze meses couberam muitas reuniões, decisões importantes, risadas, alguns entreveros, muitas idas e vindas, a compra do pedaço de chão de três alqueires, encontros presenciais, busca de fornecedores, do contador ao arquiteto e o pedreiro, roçadas, horta, projeto geral, o master plan, a construção de um pequeno rancho que sirva de moradia inicial e depois de oficina. E a água então, temos com abundância, saída das duas nascentes ricas que tivemos a sorte de encontrar. Além disso, redesenhamos o lago, que já atraiu pequenas criaturas como sapos e pequenos peixes.

Mas há um detalhe ainda mais importante dentro deste projeto todo: as relações humanas. Nossos vizinhos, que dia-a-dia se tornam nossos parceiros e nossos amigos, estão alegres acompanhando toda essa mudança no pequeno local que ocupam na imensidão das montanhas de Cunha. Dito, Rodolfo, Francisco, Douglas, Maria e mais alguns outros têm nos apoiado nas roçadas, nas limpezas do terreno, na construção da horta, na primeira casinha de tijolos, nos palpites, nas opiniões e na sabedoria de quem tem total familiaridade com as questões da terra. Temos aprendido muito com eles em tão pouco tempo!

Tempo que nem é linear mesmo, é uma flutuação que torna leve o caminhar dentro do sonho. Caminho por aquelas estradas, feliz como nunca! Vou acompanhada do meu amigo arquiteto Victor Chinaglia que está tirando minha futura casa de nossas conversas e de sua imaginação. Mas, antes da prancheta, há que se ver o espaço real: a direção Norte, onde nasce o sol e onde ele se põe, a direção do vento principal, aquele ente que quando vem, vem varrendo e tirando coisas do lugar, com seu poder de Iansã. Em nosso caso, o vento forte vem do Sul, o que significa que passa pelo mar, trazendo murmúrios de longínquas canções, sons diversos tangidos pelos ventos de Oiá.

Mas das bravezas dos ventos estou protegida, dito e alivanhado pelo arquiteto. A cota de terreno que me coube fica em parte mais baixa, protegida por um morro onde estarão localizados alguns dos meus amigos. Em torno da minha futura casa há um mar de montes, morros e montanhas, uma pequena mata, árvores à direita, à esquerda e à frente. Um pequeno riacho passa também na frente, mas ainda se encontra completamente escondido pelos lírios e taboas, se movimentando silenciosamente atrás de um bambuzal grande. Área de preservação ambiental, que cuidaremos com afeto.

Nos cinco dias que passei lá, recentemente, fomos eu e minha amiga Lumena conhecer uma olaria onde se fabrica tijolo ecológico. O dono, Eduardo, nos recebeu com muita simpatia e nos deu uma verdadeira aula de construção com estas peças de solo-cimento, que se encaixam em estilo macho-fêmea. Dispensam argamassa, reboco. São muito resistentes mesmo assim, alcançando até quatro vezes mais resistência do que os tijolos feitos de outros materiais. São fabricados de forma quase artesanal, sem fogo: o processo de “cura” dura 30 dias e mais outros quinze para a secagem. Ou seja, completamente inseridos em nossos planos de construir e viver de forma sustentável, com mínimas agressões à Natureza. 

Voltamos da olaria e eu já me decidi a utilizar estes tijolos na construção da minha casa. O processo de montagem das paredes é mais rápido e tão simples que qualquer um de nós pode auxiliar o pedreiro. Ele tem dois furos, por onde podem ser conduzidas as instalações elétricas, hidráulicas e de esgoto, assim como irão conter – a cada metro – a estrutura de toda a casa. Ainda por cima, com mais economia.

A minha sala-ateliê vai ser redonda, me adiantou o arquiteto amigo!

Na mesma noite em que Victor me apresentou um esboço de suas ideias, eu perdi o sono. Ficava me vendo andando, correndo na forma circular da minha casa, imaginando mil formas de organizar, de decorar, de enfeitar… E quando dormi sonhei um sonho curto como um símbolo: eu me via dentro de uma espécie de gruta feita de tigelas de barro, que me rodeavam de todos os jeitos, pequenas, em forma de panelas, com uma linha pintada de vermelho ao redor das “bocas”. Eu me sentia em susto, tomada por uma certa claustrofobia. Mas respirei e o ar era puro, amigo. Teria voltado ao útero de minha mãe, das mulheres todas da minha ancestralidade? Redondo é o útero que nos acolhe, redonda é a terra onde giramos em movimentos circulares. Dias depois sonhei com minha bisavó.

Sala redonda a significar a sazonalidade das estações, a circularidade do tempo. Dividido em 360 graus, o círculo é a ampliação do ponto primordial, que reúne todas as linhas retas num único lugar, o centro. O círculo é a forma em que se desenvolvem os troncos das árvores, e também é circular nossos desenhos da abóbada celeste. É a forma em que as tribos indígenas brasileiras se reúnem, constroem suas casas redondas, reunidas em círculo, como suas danças. É a forma da taça em que nos embriagamos com o prazer da vida, a forma do infinito, do eterno-retorno. O círculo é a roda que gira, gira. Como o movimento dos barcos sobre as ondas, “movimento dos barcos, movimento” como canta Jards Macalé. O círculo da minha sala é onde convidarei meus amigos para cantar, pintar e dançar em circum-ambulação. E onde faremos nossas rodas de boas conversas…

Domingo, 2 de outubro, há uma imensa possibilidade de voltarmos a respirar com um pouco mais de paz em nosso país, tomado pelo ódio de origem fascista nos últimos quatro anos. Já pensou poder voltar a sonhar? Já pensou poder voltar a imaginar mil futuros brilhantes para nossa gente, nossas matas, nossos bichos, nossos povos originários, nossas crianças, nossos adolescentes que haviam parado de sonhar? Lula representa tudo isso, neste momento. E tudo o que descrevi acima será tão mais possível e tão mais viável se nosso país voltar a sonhar e nossa cultura voltar a nos trazer encantamentos! 

Preciso concluir mas, como não ando só, invoco um trecho do poema “Canto da estrada aberta” de Walt Whitman para ilustrar todas essas circularidades, arquitetônicas, históricas, temporais, políticas, às vésperas – provavelmente – de viver nossos maiores momentos de alegria ao final deste processo eleitoral:

“À pé e de coração leve

eu enveredo pela estrada aberta

saudável, livre, o mundo à minha frente,

à minha frente o longo atalho pardo

levando-me aonde eu queira.

Daqui em diante não peço mais boa sorte,

boa sorte sou eu.

Daqui em diante não lamento mais,

não transfiro, não careço de nada;

nada de queixas atrás das portas

das bibliotecas, de tristonhas críticas;

forte e contente vou eu

pela estrada aberta.”

Axé para o Brasil, muito Axé!

Ponto de Fuga

22/08/2022

São Paulo está sofrendo uma modificação visual como há muito tempo não se via. Praticamente não há bairro, entre a zona oeste e sul, onde inúmeros edifícios não estejam sendo levantados. Residenciais ou não, essas torres se erguem verticalmente ocupando o espaço que antes era de casas e sobrados. À esquerda e à direita do meu campo visual, aqui no bairro onde moro, a visão ampla está sendo bloqueada, incluindo a visão do céu. É como uma espécie de cerco, de redução dos limites, mesmo que visuais, e a sensação vai do desconforto à claustrofobia. Roubaram de mim o horizonte, encurtaram o espaço, aceleraram o tempo, apagaram as estrelas… 

Imagino o futuro: mais densidade demográfica e mais carros, muitos mais. Mais gente disputando espaços, consumindo energia, consumindo… Torres altas, falos verticais finos ou largos, agressivos, ao gosto da arquitetura da vez.  Os modismos arquitetônicos das novas modernidades urbanísticas, vêm afagando o mercado imobiliário e o lucro: em cada andar do prédio, onde antes cabiam dois ou quatro apartamentos, que agora caibam dez, vinte. Porque os tamanhos das moradas das pessoas também foram limitados a 15, 20, 30 metros quadrados. 

Mas se oferece mundos. E Fundos: ou imobiliários abstratos ou bem concretos se você uberizar seu bem. Mas é para o seu bem! Você pode interagir com a vizinhança, caso queira. Há espaços para a malhação coletiva, piscinas, lobbies, spa, espaço co-working, lounge, espaço delivery e rooftop (a língua portuguesa não dá conta de tanta modernidade?)… Ah os rooftops! Pagando para morar apertado, você tem acesso à visão do céu no telhado da torre. Lá, sim, você pode respirar, mesmo que o ar impuro da urbe, e ampliar um pouco mais sua visão, não muito, o suficiente para voltar a ser o escravo que se é, mesmo sem querer, da engrenagem toda do sistema. Enjaulado como um carneirinho, você tem acesso ao mundo, se quiser, nos aplicativos do seu celular. Só que não. A ilusão se perde aos poucos, à medida em que se amadurece. Não se iluda, não me iludo! 

Quando cheguei em São Paulo, há 35 anos, a cidade me era um encanto. Tudo era grande, quantitativa e metaforicamente. Andava pelas ruas do Bexiga com suas casas antigas, testemunhas da passagem do tempo nas vidas de gerações de pessoas. E de Adoniran Barbosa. A avenida Paulista estava logo ali, mais acima, imponente, com prédios modernos. Também caminhei anos pelas ruas da Vila Madalena, onde também morei, bairro habitado por estudantes da USP e antigas famílias portuguesas que, aos domingos, voltava a parecer uma pequena cidade do interior. E pelos meninos do Premeditando o Breque, o velho “Premê”, que encontrei uma ou duas vezes no Sujinho da Vila. Trabalhava, estudava, cuidava de crescer na vida, ia ao cinema, lia, frequentava museus, shows, bares, casas de amigos. São Paulo é tudo isso. 

Muitas vezes saí por aí cantando o Premê: “é sempre lindo andar na cidade de São Paulo, o clima engana, a vida é grana em São Paulo, a japonesa loura, a nordestina moura (eu) de São Paulo, gatinhas punks, um jeito yankee de São Paulo, na grande cidade me realizar, morando num BNH…” Hoje São Paulo não tem mais jeito yankee, seu jeito é hipster! Mas já foi fashion. 

Seu Francisco nunca saiu muito longe de sua aldeia. Seu Dito trocou a vida em Cunha pela vida no sítio, que ele comprou quando era possível a um trabalhador comprar um pedaço de terra naquela região. Seu Francisco não é fashion, seu Dito não é hipster. Há muitos mundos no mesmo mundo meu, que continuo nordestina e carrego em mim a sina da música de Luiz Gonzaga: quem sai da terra natal, em outro canto não pára. Não parei no meu canto nesta cidade grande que é de muitos e é também muito minha. Mas os movimentos de uma vida errante me levam em direção ao Ponto de Fuga que se inicia na pequena área de montanhas que circundam o Vale do Paraíba. Mas como não ando só, vou cantando a música de Chico Maranhão, que vai dizendo: “fique também pensando que o ponto de fuga por ser pequenino não cruza as retas mais curvas que o mundo tem”… 

O trator está rasgando a terra, corte suave para traçar ruas. Como vamos chegar, há que se desenhar um espaço onde viver entre a Serra do Mar e a Serra da Bocaina, em meio ao mar de morros. A primeira construção, coletiva, já está com as paredes levantadas. Há formigas comendo as folhas dos limoeiros e há a braquiária crescendo de novo na horta que preparamos. Ou seja, a Vida pulsa. Há um lago que foi reformatado para ficar bonito. Há o espaço da minha casa a ser construída em breve sendo posto à vista. Já sabemos os nomes dos nossos vizinhos, algo de suas histórias, de seus bichos, da Zina e do Gominho. Já iniciamos novas relações com artistas cunhenses, da cerâmica e das artes plásticas. Já agendamos as datas das festas de São Benedito, do Pinhão, do Divino. Vamos chegando, lentamente, suavemente… pois alguém nos “avisou pra pisar neste chão devagarinho”. 

Pareço um pião neste momento: nas mãos de uma criança, o pião sobe e desce, fazendo caracóis em movimento para a frente e para trás, para cima e para baixo. Meu carro já conhece as direções de um lado e do outro, já se sujou no pó fino da estrada de terra seca por falta de chuvas e se enlameou quando as chuvas vieram grossas, penetrando a terra. Olho para meus três gatos e falo a eles que esperem, que terão dias melhores na liberdade do mar de montanhas. Xavier, Tom e Chico me fitam sérios, parece que querem entender porque de vez em quando eu desapareço do apartamento, escorro pelo elevador do prédio, pelas ruas e estradas em direção àquele Ponto de Fuga… É necessário desenhar e retraçar esses caminhos, é meu ofício, é minha vida de artista e o traço precisa ser feito daqui pra lá, de lá pra cá, quantas vezes for preciso porque viver é preciso e necessário.

Quando a lua "incandeia"

25/07/2022


O “master plan” finalmente está pronto. Isso significa que o arquiteto escolhido colocou no papel o conjunto das decisões tomadas por nosso grupo, sobre como iremos ocupar nosso terreno em Cunha. O resultado é um desenho, apresentado em “planta baixa”, onde ele indica as curvas de nível do terreno, o arruamento e a disposição de doze cotas que serão distribuídas entre os associados da Ecomunidade Bem Viver. Além disso, indica onde passará a rede de distribuição de energia elétrica, a rede sanitária e a distribuição da água.

Necessário explicar alguns pontos importantes sobre o que um agrupamento de pessoas necessita para habitar uma localidade. O que fazer com ítens básicos: luz, água, esgoto, lixo. Num condomínio comum, segue-se o padrão conhecido, pagando-se por luz e água, captação coletiva de dejetos lançados em qualquer lugar, inclusive nos rios e no mar. Quando resolvemos nos unir nesta associação, decidimos também nos unir à natureza e cuidar dela, como cuidamos de nós e dos nossos animais. A água necessária temos fartamente, provenientes de duas nascentes que iremos cuidar como preciosidades. A energia elétrica será distribuída de forma padrão, inicialmente, mas projetando um futuro em que esta energia virá de placas captadoras da energia do sol. Os dejetos que produzimos passarão por sistemas de biodigestão, que se transformam em adubo rico para plantas que necessitam de ambiente úmido, como as bananeiras. Quanto ao lixo, serão separados: o lixo reciclável que será levado para locais onde seja separado e reutilizado, e o lixo orgânico que irá alimentar nossas composteiras.

Esses temas já foram fruto de conversas do grupo como um todo e das recentes conversas na casinha alugada do nosso vizinho. Conversas de cozinha são sempre inspiradas: enquanto alguém cozinha e todos bebem uma cervejinha ou uma cachaça, os temas vão surgindo. Luciana, antropóloga que viveu anos de experiência nas matas do Pará perto de tribos indígenas, sempre traz boas histórias, como a de alguns que, nas noites mais frescas, dormem literalmente ao lado do fogo das fogueiras e acordam cobertos pelo pó gris das cinzas. Ou se fala dos banheiros secos, comuns na região nordeste e norte do país. São espécies de “toilettes” que não usam vasos sanitários, as pessoas ficam de cócoras mesmo, posição milenarmente mais natural para defecar. Mas já somos “letrados”, viemos da cidade, então os confortos que aprendemos não precisam ser descartados. 

O passo seguinte ao desenho do “master plan” é contratar um profissional especialista em traduzir o desenho feito pelo arquiteto e dar a ele concretude: medir espaços, fincar pequenas estacas de bambu demarcando terrenos e ruas. Na sequência, outro profissional com sua máquina de terraplanagem irá rasgar as ruas, transformando o desenho do arquiteto em um traçado tridimensional, real. E seguindo nesse planejamento, um pedreiro já foi contratado para construir um barracão de ferramentas, que também servirá de oficina. Esta primeira construção é necessária para que possamos acionar o quarto profissional, o que irá puxar o fio da rede elétrica municipal que passa ao largo, trazendo luz para todos nós…

Enquanto a conversa seguia na cozinha onde Luciana preparava uma sopa de lentilhas para nós, incluindo Gabi, Vitor, Kawni e Alê, saí para fora para ver a que alturas subia a lua cheia. Ela brilhava gigante, tão brilhante que despertou-me um sentimento de reverência. Era um pedaço de luz amarela no céu, um amarelo espalhafatoso, quase escandaloso que tinha subido acima das colinas e ofuscava a vista, revelava a natureza em volta. 

Que diferença das noites escuras das luas novas e minguantes, onde o “lá-fora” da casinha é um todo completo de escuridão. Desta vez, há sombras por todo lado: de árvores, de cercas, de folhas. Até meu corpo projeta uma sombra angulada, dobrando o meu tamanho. Dá para imaginar a pequenina sombra projetada por alguma ave noturna, meio incandiada por tanta luz. Incandiar é uma palavra que aprendi ainda criança em Caruaru: significa ficar com a vista ofuscada diante de qualquer luz, inclusive a do candeeiro. “Incandeia, incandeia, incandeia, incandeia meu candiá”, canta Zeca Pagodinho e canta o povo nas rodas de samba por aí… Me incandeia, Lua! Luz-me, Lua!

Pensei nos pequenos pés de abacate que plantei recentemente e que lutam para se adaptar. Que pequenas sombras estarão projetando agora? Um frio na barriga me fez retornar à casa, porque acabei de ver em pensamento o que será brevemente minha vida que até há pouquíssimo tempo não passava de um sonhar.

Compramos uma roçadeira no dia seguinte. Queremos aprender a roçar, é necessário manter sob controle a braquiária e o mato acostumado a crescer livre e sem controle. Já cobriram os pés de mandioca, antes quase sufocaram as mangueiras e as frutas cítricas. 

Andar pelo terreno agora é diferente. Já visualizamos jardins, bancos, flores, casas, nossas casas. Ali será o pomar, onde vamos cuidar coletivamente de legumes e folhas que nos alimentarão. Acolá, aquele lago ainda feio, informe, feito por mãos um pouco descuidadas, será nosso reservatório de água e em volta dele plantaremos flores, colocaremos pilhas organizadas de pedras para enfeitar o entorno. A nossa mata crescerá ainda mais bela, porque lhe adicionaremos mais árvores. Os passarinhos se multiplicarão em volta das miríades de flores que teremos e as abelhas captarão o néctar produzido pelas glândulas vegetais, levando-o para as colmeias que teremos.

Isto é o sonho.

O pesadelo é o Brasil de hoje.

Soubemos que no Paraná um aniversariante petista foi assassinado a tiros por um militante bolsonarista. O criminoso que preside o Brasil se anima em ameaças cada vez mais explícitas contra a nossa democracia fragilizada. E deixa de mãos amarradas os partidos, a oposição, os movimentos sociais, o povo, a todos nós. Um sequestro de um país inteiro! Sob essa onda proto-fascista, notícias horríveis vêm de todos os lados: menina de 11 anos estuprada e obrigada a dar à luz; um homem negro levado para trás de uma viatura e assassinado a tiros pela polícia; mais negros mortos violentamente em mais lugares; mais mulheres violentadas e assassinadas por seus parceiros em mais novos crimes; mais assaltos, mais roubos de celulares, mais sequestros, mais medo, mais doenças mentais, mais gente passando fome! E nas florestas, árvores sendo derrubadas, minérios sendo roubados, indígenas sendo assassinados…

Ontem saí para dar uma volta na avenida Paulista. O parágrafo acima caiu-me em cheio, pesado. Um homem empacotado com uma bandeira de Bolsonaro caminhava entre os transeuntes, talvez sem saber que carregava sobre os ombros a violência e incorporava a própria Morte… 

“Mudar o mundo, meu amigo Sancho, não é loucura, não é utopia, é  justiça.” Apesar desta necropolítica, seguiremos sonhando. E cantando. “Incandeia, incandeia, incandeia, incandeia meu candiá!”…

Dissonâncias na vida fora dos padrões

20/07/2022

Fim de tarde de segunda-feira pegamos a estrada que segue além do terreno da Ecomunidade Bem Viver. Passamos por outros sítios, o do vizinho de cerca e os de logo depois, em busca de um pedreiro, pois vamos construir uma espécie de barracão para guardar ferramentas e servir de oficina. Os três cães vieram nos receber bravos: quem são essas duas mulheres e esse rapaz estranhos a eles? Mas são cachorros de roça, latem mas não mordem. Principalmente se a dona da casa desce para ver quem chegou, seguida por um filhote de gato, esse, sim, amistoso e brincalhão.

O pedreiro ainda não tinha voltado do trabalho; está construindo um fogão à lenha em algum sítio nas redondezas. Mas deve estar pra chegar, disse a esposa. Resolvemos tomar a estrada de volta e quem sabe cruzar com ele, em seu fusca vermelho. Nosso carro tinha ficado numa bifurcação da estrada, logo depois da porteira principal. Como a noite vinha chegando, resolvemos esperar um pouco, sentados dentro do carro. 

Seja pela escuridão que começava a apagar as cores do mato, seja por algum pensamento aleatório, começamos a lembrar tempos da ditadura militar no Brasil e das pessoas que resistiram, que foram presas, torturadas, assassinadas. Nossos olhares se estenderam para a América Latina, afinal estávamos no ponto exato da bifurcação da estrada, ponto de convergência: a figura de Simón Bolívar surgiu gigante à nossa frente, herói latino-americano, mas logo lhe pusemos ao lado dos nossos heróis, porque somos um país que tem história de resistência desde que foi invadido por portugueses lá pelos mil e quinhentos… E demos vivas a Zumbi, a Antonio Conselheiro, aos resistentes de todos as cores brasileiras.

Mas a noite caiu e o pedreiro não veio, decidimos voltar para casa. Passamos outra vez ao lado de nossa terra onde Júlio havia trabalhado o dia inteiro, aspergindo seu inseticida natural feito de folhas de várias espécies, fermentadas com água e açúcar mascavo. Essa alquimia natural tem sido fruto de estudo e pesquisa dele nos últimos tempos, trazendo para nós a sabedoria de antigos agricultores de longínquos países asiáticos. Nossos pés de limão e frutas cítricas estão crescendo bem, florindo e produzindo os primeiros frutos, e isso atrai pulgões e outros insetos oportunistas. Júlio é sábio, Júlio acorda e dorme cedo, se interessa por grandes questões do mundo, incluindo a de criar novas formas de vida que respeitem o meio-ambiente. E se preocupa em viver em um mundo mais justo, onde a distribuição de riqueza seja ampla e todos possam viver em paz. Júlio tem vinte e cinco anos…

De volta à casa, em torno da mesa, olhamos mais uma vez para o mapa da nossa terra. O arquiteto encarregado de fazer o desenho da distribuição dos lotes no terreno de três alqueires e meio, apresentou uma proposta. Como nos reunimos semanalmente de forma virtual, o projeto foi cuidadosamente verificado por todos nós e, após poucas mas importantes alterações, o plano de ocupação está aprovado. Cabe agora a ele cuidar de apresentar a versão final, com todas as medidas feitas para que a terra possa ser redesenhada com ruas, lotes, energia elétrica, instalação hidráulica, sanitária, etc.

Com isso, o momento de tomar posse, de fato, do nosso pedaço de terra se aproxima e as coisas se movimentam. Agora é pra valer, as horas estão chegando… O encontro com o lugar do sonho vai se tornando cada vez mais real e o passo em direção à mudança de vida foi iniciado. Entra outra fase: a do planejamento das construções coletivas, a abertura de ruas, a instalação da rede elétrica, a captação de água, a cerca-viva que precisa ser plantada, as buscas por bons pedreiros e as apresentações aos vizinhos, aumentando nossa rede de contatos.

Em breve cada um tomará posse do lote que lhe coube e irá planejar as construções das moradias. Entre as cotas, onze mangueiras crescem, exuberantes, felizes com a luz que abrimos e a limpeza de mato que fizemos em torno delas. Algumas já passam do nosso tamanho. Lá embaixo, perto da área mais úmida, crescem nossos ipês e outras mudas de árvores. Três abacateiros ainda se esforçam por se adaptar ao bioma. Dar tempo ao tempo… “Aguardaremos, brincaremos no regato, até que nos tragam frutos, teu amor, teu coração…”

Do lado direito, na parte mais baixa do terreno, uma árvore se destaca. Não sabemos ainda de que espécie ela é, que nome tem. É alta, tronco grosso, cascudo. Sua sombra é bem ampla e já sonhamos em limpá-la embaixo, montar um banco de bambu, uma mesinha e, ao lado dela, enterrar fundo um mourão para segurar uma rede… Com a permissão de Oxóssi, Òké Arô! Agô! Levar livros para ler embaixo dela, papeis para escrever e desenhar sob suas folhas, fazer dessa árvore um lugar de encontro e reflexão, onde o pensamento possa viajar para outros mundos, voar como os pássaros de Cunha, pois o “pensamento parece uma coisa à toa” mas os mundos são infinitos quando a gente voa. Ou sonha. Sonhei que uma senhora estava comigo lá e me dizia que esta árvore é a “cereja do bolo”. Essa árvore é a existência de um Brasil mais antigo e mais bonito do que a avenida Faria Lima… Viva o Brasil maior do que a Faria Lima, esse lugar da estreiteza, do egocentrismo, do lucro, das vaidades… 

Voltar para São Paulo, ato necessário, para onde a vereda da minha vida ainda aponta. Cidade boa, cidade má, São Paulo é tudo, um mundo. Um dia desses eu esperava o farol abrir para pedestres para atravessar a avenida Liberdade. Um rapaz se aproximou de mim. Não, não era um rapaz. Era uma moça. Não, não era uma moça. Era um homem Trans: corpo de homem, cabelos, adereços e roupas femininas, enfeitando sua longínqua e improvável masculinidade. Parou bem na minha frente. Antes que eu pensasse qualquer coisa, me tascou a pergunta: – moça, a senhora tem preconceito de mim? Olhamo-nos nos olhos, ele aguardando minha resposta que veio tão imediata quanto sua pergunta: não! Jamais! Tive de me segurar para não dar um abraço naquela pessoa, rejeitada por este mundo quadrado que resolveu, em algum momento do passado, estreitar as possibilidades de ser em apenas duas vias, macho e fêmea. Mendigue Trans, havia sido xingade um minuto antes de me encontrar, por uma pessoa a quem foi pedir uns trocados.

Passei dias refletindo sobre tudo isso. Os incômodos que sentimos no caminhar da vida quando esbarramos em momentos dissonantes, é bom que nos movam para debaixo das árvores, estas velhas sábias que estão milênios a nos ensinar que não existe indivíduo, que a vida é em rede…