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segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

A palheta de Velázquez

Detalhe da obra As Meninas,
onde Velázquez se retratou
Aqueles que pintam, hoje em dia sabem a quantidade enorme de cores colocadas à disposição de qualquer palheta de qualquer um, seja estudante, seja profissional. Para cada pigmento vermelho, uma infinidade de variações que chegam às minúcias de cores chamadas de “tons de pele”; para cada amarelo, variações que vão do clássico amarelo de Nápoles, passando pelos cadmios e pelos cromos, sendo que marcas como a Winsor & Newton tem seus próprios amarelos. Mas o que pode ser uma grande facilidade para os pintores de hoje, pode se transformar nos piores pesadelos - ou nas piores obras - se o encanto consumista por tanta variedade se sobrepuser ao sempre bom e necessário costume do estudo pessoal. Todo artista necessita conhecer seus materiais de trabalho, e o conhecimento técnico deles tem grande responsabilidade no êxito de sua arte.


Ariano Suassuna retratado por mim,
num exercício com a Palheta de Apeles
(Branco, Amarelo Ocre, Vermelho, Preto),
óleo sobre tela, 40x60cm, 2014
 
Tenho feito alguns estudos com palheta reduzida, ou seja, pintando com poucas cores. Fiz 3 pinturas usando a chamada "Palheta de Apeles", o pintor grego da antiguidade que usava somente Amarelo Ocre, Vermelho, Branco e Preto. Comprovei que muito se pode conseguir com pouco, pois o que importa é o aprendizado da manipulação das cores, o domínio técnico das misturas. Mas como continuo intrigada com esse assunto, resolvi pesquisar como pintava um dos meus artistas preferidos: Diego Velázquez, o pintor espanhol.

Na minha busca por informações, fui ao site do Museu do Prado. Lá encontrei textos produzidos por Carmen Garrido Pérez, uma das funcionárias do museu. Ela é a chefe do Gabinete de Documentação Técnica, doutora em História da Arte pela Universidade Autônoma de Madrid e especialista em documentação físico-química para investigações técnicas sobre pinturas históricas. Escreveu vários livros e textos sobre o assunto. Um desses livros é o “Velázquez: técnica y evolución”, que se encontra esgotado. Mas encontrei também artigos publicados por ela, inclusive em PDF, que me trouxeram informações muito úteis, as quais compartilho aqui.

Uma das frases que Carmen repete em seus artigos, resume muito sobre o pintor espanhol. Diz ela: “Velázquez é um artista que pensa muito e pinta pouco, que descarta de sua arte o supérfluo para ficar sempre com o que é essencial”. E demonstra como ao longo de toda a sua vida o pintor sevilhano não usou mais dos que 16 cores em suas palhetas.

O bufão Dom Sebastião de Morra, 1645
Esta informação foi dada após muitos anos de estudos realizados sob o patrocínio do Museu do Prado, em seus laboratórios, a partir de experiências com Raios X e fotografias com luz infravermelha, além de outros instrumentos de medição científicos. O Gabinete de Documentação Técnica do Museu vem acumulando um grande arquivo, diz Carmen, de mostras de telas antigas e mais modernas e têm sido feito estudos muito aprofundados em obras de Zurbarán, Murillo e Velázquez.

Os dados recolhidos até agora, por esses estudos, abarcam cerca de 30 anos da carreira de Diego Velázquez, ainda faltando mais estudos sobre as etapas em que ele viveu em Sevilha e em sua segunda viagem à Itália. Mas, diz Carmen, as cores usadas por ele variaram pouco de um quadro a outro, incluindo o período em que residiu em Roma, de 1629 a 1631. Ela aponta ainda que há uma similaridade nos materiais artísticos usados por espanhois e holandeses, aproximando muito a prática técnica de Rembrandt com a de Velázquez.

As cores de Velázquez

Nos estudos de Carmen Garrido, baseados em micro-amostras de telas analisadas mediante dispersão de Raios X, ela identificou todas as cores que Velázquez teria usado ao longo de sua vida:

1 - Branco de Chumbo
2 - Amarelos - à base de Terras de Óxido de Ferro, Chumbo, Estanho, Antimônio e que hoje correpondem a: a) AMARELO DE CADMIO LIMÃO - b) AMARELO DE NÁPOLES (só usou uma vez) - c) AMARELO OCRE
3 - Vermelhos - foram detectados 3 nas análises, 01 de base de metal e 02 de terra: a) VERMELLION (base de Cinábrio, metal pesado de Sulfureto de Mercúrio) - hoje: VERMELHO DE CADMIO - b) TERRA DE SEVILHA - hoje: VERMELHO INGLÊS (Óxido de Ferro) - c) TERRA DE SENA QUEIMADA - base: Óxido de Ferro Laranja
4 - Marrons: a) TERRA DE SOMBRA NATURAL - b) TERRA DE SOMBRA QUEIMADA (bases: Óxido de Ferro e Manganês)
5 - Azuis - raramente Velázquez usou o Ultramarino, pois o preço do Lapislázuli era muito caro, pedra vinda do Afeganistão: a) AZUL DA PRÚSSIA (ou Azurita, base: Cianureto de Ferro) - b) AZUL DE COBALTO (Óxido de Cobalto ou de Alumínio) - c) AZUL ULTRAMAR
6 - Pretos - vários pretos extraídos da combustão de ossos e outros materiais. Hoje usamos o Preto de Marfim (Ivory Black)

Mais tarde ele também passou a usar um Terra Verde.
As meninas, 1656

No quadro mais conhecido deste pintor espanhol, se pode ver uma de suas prováveis palhetas, formada por 9 cores: Branco de Chumbo, Laranja (Vermellion de Cinabrio), Vermelho (Terra vermelha de Sevilha), Amarelo Ocre, Carmin, Sombra Queimada, Sombra Natural, Azul da Prússia, Preto de Fumo.

Entre seus pigmentos, Velázquez não introduziu substâncias químicas novas, e não aparece nenhum pigmento que ele já não tivesse usado, continua Carmen: “Sin embargo, en su manipulación de los pigmentos, se mostró un pintor ingenioso en un momento en que las novedades eran incontables a través de Europa”. E diz mais: “nos parece que uno de los aspectos más fascinantes de las prácticas de Velázquez fue su desviación de la teoría autorizada de su tiempo”.

Carmen Garrido diz que, salvo algumas exceções, Velázquez utilizou os mesmos pigmentos ao longo de toda a sua carreira, mudando apenas a maneira de misturá-los e de aplicá-los. Ele era “capaz de crear con sólo cinco o seis pigmentos una obra maestra”.


Menipo, 1639
As investigações técnicas sobre a obra de Velázquez no Museu do Prado têm revelado muito sobre a maneira de trabalhar de um dos maiores gênios da pintura mundial. A partir desses estudos, se tem visto que Velázquez escolheu cuidadosamente cada um dos materiais que usou para pintar, tanto por sua qualidade como por sua aplicação em cada momento. Assim, na medida em que sua técnica vai evoluindo, seus suportes e preparações de pigmentos também vão se modificando. “Los pigmentos, más o menos los mismos durante toda su carrera, irán variando en sus moliendas, en sus mezclas y en la manera de ser aplicados, ya que la evolución de su trazo así lo determina”, aponta Carmen.

Na época de Velázquez já era habitual para os pintores o uso das telas. Dependendo da etapa em que estava, ele escolhia como tecido o Linho ou Cânhamo com densidades diferentes. Ele sabia que estas texturas diversas alteravam a visão final da obra. De acordo com os efeitos óticos que ele desejasse, selecionava os suportes (telas), os pigmentos, a técnica e os recursos oportunos para conseguir materializar suas ideias.

Carmen Garrido, com sua experiência de décadas de trabalho em museus, diz que a maioria dos quadros que hoje vemos nesses espaços culturais já foram reentelados. Mas entre as obras de Velázquez do Museu do Prado existem oito com seus suportes originais, tal como o pintor os fez, o que possibilita uma grande quantidade de detalhes sobre seus métodos de trabalho, incluindo as pinceladas de provas, as costuras de pedaços de tecido adicionados, e as imprimações. “Además, estas pinturas conservan su capa pictórica en un estado próximo al de su ejecución, como puede verse en ‘La coronación de la Virgen’ o en el ‘Mercurio y Argos’”.

Uma vez colocado o tecido no chassi de madeira, era feita a preparação do tecido (muitas com cola de origem animal, para proteger o tecido da química dos pigmentos) e a imprimação. O objetivo da imprimação é o de servir de “fundo ótico” para o quadro e aos efeitos coloridos da pintura. Segundo Francisco Pacheco (pintor, escritor e sogro de Velázquez), na primeira etapa de sua carreira ele utilizava “Terra de Sevilha”, um Terra de tom ocre médio, como imprimação.

Já em Madrid, para onde se mudou em 1623, nosso pintor abandona os materiais sevilhanos e começa a trabalhar com um tecido com diferentes tipos de densidades e um trançado mais fino. Sobre ele, aplicava uma dupla camada de base, a primeira na cor branca e depois uma imprimação feita com Terra Vermelha, chamada “tierra de Esquivias” pelos pintores da escola madrilenha. Mas ele também adotou a forma italiana das preparações de tela brancas mais ou menos manchadas com cinzas ou em ocre, o que dava uma combinação perfeita para conseguir os efeitos de superfície, de luminosidade dos fundos e de suas cores.

Ainda segundo Carmen Garrido Pérez, durante a primeira viagem à Itália, Velázquez pintou dois grandes quadros: “A túnica de José” e “A Forja de Vulcano”. O primero, que se encontra no Real Monasterio del Escorial, é uma obra de experimentação com relação às telas (tela napolitana pavimentosa), os fundos (Terra napolitana) e a introdução de alguns pigmentos, como o Amarelo de Nápoles, que Velázquez não usou nunca mais. 


A Forja de Vulcano (1630), cuja imprimação
Velázquez fez só com Branco de Chumbo
Mas foi em “A Forja de Vulcano” que o pintor encontrou o caminho por onde seguirá desenvolvendo sua pintura nos anos posteriores. Sua preparação, continua descrevendo Carmen, foi aplicada com uma espátula e o Branco de Chumbo substituiu as imprimações anteriores feitas com os Terras. O Branco de Chumbo é muito opaco e denso, criando com isso um efeito ótico muito luminoso, observa ela. Velázquez dava muita importância a esses fundos bem preparados, o que se pode ver através desses exames radiográficos que mostram a evolução do pintor, tanto com os materiais como com a forma de aplicá-los, o que lhe dá uma identidade pessoal.

Carmen também observou, a partir de seus estudos técnicos, que salvo uma ou outra exceção, Velázquez nunca volta atrás em sua evolução. Quando adota um novo tipo de tela, algum material ou uma forma concreta de aplicá-los, “deixa de utilizar o anterior”. Por sobre as imprimações, ele fazia um esboço com poucas linhas para situar a composição, que também apareceu após os exames com reflectografia infravermelha. Além disso, ele "pinta siempre a la “prima”, aunque en su mente ha desarrollado con anterioridad la idea de lo que quiere llevar al lienzo. Si algún detalle no le satisface, lo corrige superponiendo el cambio en su trabajo directo sobre el cuadro”.

O espelho de Vênus, 1650
A pesquisadora espanhola também observa que os pintores do século XVII fabricavam suas cores misturando pigmentos de origem orgânica, como as lacas, ou os de origem inorgânico, como os minerais, com aglutinantes proteicos e substancias oleaginosas. As moagens e as misturas eram feitas nos ateliês,  procurando sempre a máxima estabilidade dos materiais. Velázquez sempre empregou pigmentos de boa qualidade e óleos preparados e depurados. Em vista desse cuidado, suas pinturas, apesar do tempo passado, não amarelaram e nem escureceram em excesso, conservando sua transparência e colorido. Em suas misturas, a proporção de aglutinantes como colas ou ovos, e dos óleos, eram determinadas pelas transparências que ele queria alcançar. 

A pintura de Velázquez é resultado “de un largo proceso intelectual”, afirma a pesquisadora. “Cada vez, con menos materia hacía más. Pensaba mucho y pintaba poco, veía el mundo con ojos nuevos y sólo una técnica original como la suya puede transmitirnos su original visión de las cosas, por esto es un gran innovador del arte de la pintura”. 

Como disse Rafael Mengs, no século XVIII, “Velázquez não pintava com os pincéis, pintava com a intençao”. Era um pensador, sobretudo.


Cores prováveis usadas por Velázquez, em sua denominação atualizada (o Branco de
Chumbo foi substituído pelo de Titanio, por causa da alta toxicidade do pigmento,
assim como hoje em dia é mais usado o Preto de Marfim. Os Cadmios são pigmentos
mais modernos, mas equivalentes aos usados no passado)

sábado, 3 de abril de 2010

O Velázquez que nos mira há 354 anos

Desde o dia 16 de março de 2010, o quadro do pintor realista John Singer Sargent, “”As Filhas de Edward Darley Boit”” (1882), ficará exposto, até 31 de maio, no Museu do Prado, em Madri, Espanha, ao lado da obra-prima que o inspirou, “”As Meninas”” (1656), do espanhol Diego Velázquez.


A tela de Sargent sendo colocada ao lado da de Velázquez
John Singer Sargent nasceu em Florença, Itália, em 1856, mas era filho de pais norte-americanos, originários da Filadélfia. Esse pintor, que desde criança demonstrava talento para o desenho, encorajado por sua mãe, aos 13 anos, começou a ter aulas de pintura na Academia de Belas Artes de Florença. Com apenas 18 anos de idade, foi admitido no Atelier do pintor realista Carolus-Duran, em Paris, um artista que se inspirava na obra do também pintor francês, realista e revolucionário, Gustave Courbet.


John Sargent, Carolus-Duran e Gustave Courbet, três importantes pintores, unidos no mesmo gosto pela estética realista, formam, através do tempo, uma linha artística que alcançou, no passado, o pintor Diego Velázquez, e – indo indo ainda mais distante no tempo e na história da arte – se encontram e se agrupam no mesmo fervor pela pintura do estranho e maravilhoso pintor italiano Caravaggio, o iniciador de uma linha genealógica de pintores que atravessam os tempos.


Seriam necessárias centenas de páginas para nos reportarmos à importância de cada um desses pintores. Ainda voltaremos a falar de cada um deles, nesta coluna. 


Autorretrato de Velázquez em As Meninas
Mas por enquanto, fiquemos com o espanhol Diego Velázquez, pois neste ano de 2010 completam-se 350 anos de sua morte. Expor ao lado de sua obra ““As Meninas”” a tela de 222,5x222,5cm do pintor John Singer Sargent, um óleo sobre linho, pintado em homenagem a seu mestre dois séculos depois do quadro que o inspirou, é parte das homenagens que o artista espanhol terá. Sargent teria feito árduos e persistentes estudos, uns 58 ao todo, para reproduzir em seu quadro ““As Filhas de Edward Darley Boit”” o rigor técnico e as características mais marcantes do mestre.


Mas vamos a Velázquez.


Diego Rodriguez de Silva Velázquez, filho de pai português e mãe espanhola, nasceu em Sevilha, em 1599. A Espanha de Velázquez era, no dizer do historiador da arte francês Élie Faure (1873-1937), um país “cortado “em dez partes pela religião, pela guerra e pela natureza””. Não havia uma cultura espanhola única, mas todo um emaranhado cultural de vários povos, que foram formando aos poucos a alma espanhola, intensa e trágica, tão bem expressa nas famosas touradas e no som das castanholas.


Velázquez desenhava desde muito cedo, e ainda adolescente foi estudar pintura no atelier de Francisco Pacheco, seu futuro sogro. Desde o início, interessa-se por pintar motivos comuns como jarras, peixes, pássaros, flores e frutas, que ele via no mercado de Sevilha. Nesta época, pinta o famoso quadro “”Velha fritando ovos”,” que trazem expressas as raízes de sua inspiração nos pintores El Greco e Caravaggio, de onde aprendeu os efeitos de claro-escuro e o tom realista.


Diego Velázquez: Velha fritando ovos, 1618
Em 1624, muda-se com a esposa para Madri, para trabalhar como pintor contratado pela Corte do Rei Filipe IV, um amante das artes. Em duas viagens à Itália, Velázquez fez diversos estudos, em pintura e desenho, de obras de Michelangelo, Rafael, Ticiano e Tintoretto. Amigo do pintor holandês Rubens, fazia retratos da família real e da corte, além de quadros com temas religiosos e mitológicos.


Diego Velázquez:
O aguadeiro de Sevilha, 1620
Mas antes, em sua Sevilha natal, povoada por nobres, mercadores, eclesiásticos e viajantes de todas as origens, Diego de Silva Velázquez – como também ficou conhecido – convivia com as multidões de pobres, indigentes e delinquentes dessa cidade. Em meio a esse contraste, ele desenvolveu sua sensibilidade artística, que deixou transparecer em muitos de seus quadros em todas as fases de sua vida, mesmo quando já era o pintor do rei. Suas telas, mesmo as de temas religiosos ou mitológicos, estampavam rostos muito parecidos com os rostos da gente simples que ele conheceu em sua terra natal. Rostos enrugados, olhares perdidos, roupas rotas, aparência cansada da lida do dia a dia, surgem até mesmo em telas como ““Cristo na casa de Marta e Maria””, na ““Adoração dos Reis Magos””, na ““O Aguadeiro de Sevilha””, na ““Os Bêbados (Triunfo de Baco)””, na ““A Forja de Vulcano””. Até mesmo em seu apreciadíssimo quadro ““As Meninas””, quando em primeiro plano, à direita da infante Margarida, aparecem dois empregados da família real, a alemãzinha hidrocéfala e anã Mari-Bárbola e o pequeno italiano Nicolasito Pertusato, ambos acompanhados de um cachorro. Disse o jornalista e ativista político, combatente contra a ditadura de Franco, José Ortega y Gasset: “”Nosso Velázquez reúne alguns ganhadeiros, alguns pícaros, escória da cidade, sujos, ladinos e inertes. E lhes diz: Vinde, que vamos zombar dos deuses”.”


Velázquez: As Meninas, 1656
Mas o quadro mais famoso de Diego Velázquez é mesmo ““As Meninas””. Representava a família de Filipe IV, e foi pintado em 1656. Desde então, muito já se estudou, se escreveu e se elocubrou a respeito desse quadro, onde o próprio pintor aparece em auto-retrato.


A tela mede 312 x 276cm, e as figuras estão pintadas em tamanho natural. Ao centro, em primeiro plano, surge iluminada a figura da infanta Margarida-Teresa, com cinco anos de idade, sendo acompanhada por duas damas de companhia. Além dos anões e do cachorro, já citados, surgem mais três figuras de empregados da corte: logo atrás à direita, uma camareira e um ajudante de ordens. Ao fundo do quadro, através de uma porta aberta, surge a figura de José Nieto Velázquez, parente do pintor e tapeceiro do palácio. Também ao fundo, à esquerda, um grande espelho de moldura escura reflete os rostos do rei e da rainha, que estariam, segundo parece, à frente de todo o grupo e no próprio lugar da pessoa que examina o quadro. O pintor, na tela, com pincel e palheta nas mãos, tem diante de si uma grande tela. Também ele está olhando para nós, os observadores do quadro – ou para o casal real, segundo o ponto de vista escolhido.


Mas penso, enquanto olho para o incrível quadro desse grande pintor, que há uma grande dica que Velázquez continua dando através dele, 354 anos depois: o observador vê a realidade refletida nesta pintura e é, ao mesmo tempo, observado por ela. Lembro-me dos primeiros experimentos da Física Quântica, quando os físicos se depararam com o estranho comportamento das partículas, que pareciam sofrer interferência da observação. Observador e observado em perfeita sincronia. Diante do gigantismo desta tela, não há como não ficar um tanto quanto inquieto com esses olhares, que se lançam do quadro ao espectador, criando essa relação enigmática entre o observador e o quadro. Isso me leva a pensar, a seguir, que os laços que unem realidade e sensibilidade do artista são infinitos. Não se trata de retratar a realidade tal como ela é, como na pintura acadêmica tradicional, ou mesmo no estilo hiper-realista. Trata-se sobretudo de apreender a realidade e refletir sobre ela, devolvendo-lhe uma nova característica, que o olhar do artista transmuta com seu pincel. Carolus-Duran costumava ensinar a seus alunos no atelier, dizendo que é preciso “exprimir o máximo, com o mínimo de meios”.


Velázquez:
Pablo de Valadolid,
1632/1635
No exercício de perceber a realidade, o pintor recria-a, remodela-a e apresenta-a ao espectador, modificada, convidando-lhe também a uma nova visão sobre o mundo. Porque afinal de contas, a vida nos convida todo tempo a APRENDER A VER, a cada momento com um olhar diferente, sem as escamas que nos são lançadas aos olhos pelo sistema vigente (e pela mídia). Cria-se então essa relação dialética entre Realidade e Arte, uma interferindo na outra, em ritmos tensos ou frouxos, mas provocando o movimento natural da vida.


Penso, por fim, que uma tela de 354 anos, mostra que a Realidade, mutável e infinita, será sempre o referencial infindável iluminador da criatividade de tantos e tantos artistas, os que vieram e os que estão por vir. Porque, afinal de contas, uma cadeia de DNA onde constam nomes como Caravaggio, El Greco, Velázquez, Courbet, Fantin Latour, Rosa Bonheur, John Sargent, Vladimir Tatlin, Alexander Rodchenko, Diego Rivera, e tantos outros artistas desse calibre, ainda dará muito o que falar na História da Arte, que é também uma parte importante da história da humanidade.


Penso que a arte realista acima de tudo é uma arte humanista, com tudo o que de belo essa palavra esconde em si.