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segunda-feira, 1 de junho de 2015

Anotações finais

Final da Calle de Alcalá quando encontra com a Gran Vía, Madrid
Aos domingos, por aqui em Madrid, tem a famosa Feria del Rastro, uma feirinha enorme onde se vende de tudo o que se possa imaginar, principalmente de coisas usadas e antigas. E o preço é muito bom! Nada a ver com os altos preços da feira da Praça Benedito Calixto em São Paulo ou a do Bexiga. Aqui dá pra comprar muita coisa legal, e histórica, pagando um preço honesto. E tem de tudo mesmo!

Uma das ruas onde ocorre a
Feria del Rastro
Nestes dois dias em Madrid, depois que voltei da Andaluzia, tenho observado as pessoas. E tenho visto muitos negros de origem africana por aqui vendendo as mesmas bugigangas chinesas que eles vendem no Brasil. Muitos andando pela rua, olhar perdido, como se fossem turistas. Mas os turistas, como eu, voltarão para suas casas, para seu país. Eles não tem para onde voltar. Talvez nem por aqui, a não ser os albergues públicos. Ou las calles...

Hoje cruzei com um deles quando eu ia para o Museu do Prado. Era um homem alto, bonito, pele bem escura, e me disse, como deve ter dito para outros que passaram, arranhando seu espanhol, que precisava de algum dinheiro para comer, que estava desesperado de hambre! Dei-lhe dois euros, o pobre coitado nem conseguia me agradecer em espanhol, respondeu em francês, em seu francês africano...

Lembrei das inúmeras fotos que salvei em meu computador sobre a tragédia da travessia do mar mediterrâneo pelos africanos que fogem das guerras, da fome, das perseguições políticas em seus países do norte da África. Centenas já morreram tentando alcançar a Itália. Os que conseguem chegar ao continente europeu se espalham por aí, tentando buscar um recomeço de vida... Num lugar diferente, com gente tão diferente da sua, com culturas tão distintas. Quero tentar pintar isto.

Músicos de rua na Feria del Rastro
Olho para os que encontro aqui em Madrid e não consigo ver neles nada mais do que sobreviventes. Alguns olham para dentro de lojas, vendo os produtos. Só olhando, porque comprar por enquanto não dá... Os europeus estão reagindo a essas hordas de negros africanos invadindo seu continente. O preconceito aumenta, em especial no norte, mas também dá pra perceber, pelo menos aqui em Madrid, que o povo espanhol convive com esta situação. Compra as bugigangas chinesas, ajuda com esmolas, ajuda de algum jeito. Ou eles não estariam aqui. Ninguém melhor que os espanhóis para saber o que é contar com a ajuda dos estrangeiros, pois eles fugiram daqui, muitos para o Brasil, na época da ditadura franquista assassina.

Por falar em mendigos, só aqui eu vejo um tipo de mendigo que não vi ainda em lugar algum. Em primeiro lugar, toda igreja tem o seu mendigo na porta, esmolando, homem ou mulher. Em segundo lugar, há mendigos aqui que nunca em sua vida você identificaria como tal, não fosse o fato de eles estarem na rua e com um cartaz explicando sua situação. Como uma senhora bem vestida, alta e branca, que portava um cartaz dizendo que precisava de ajuda porque não tinha como sobreviver. Passei por vários jovens também, bonitos até, explicando que não há trabalho e eles precisam de ajuda. Já falei daquele que encontrei no primeiro dia aqui, na rua do hotel onde estou, que pedia dinheiro para wisky, cerveza ou marijuana...

Autorretrato de Anton Raphael Mengs,
uma das pinturas do Museu do Prado que me
chamou muito a atenção desta vez
Mas passei o dia hoje no Museu do Prado. Fui ver e rever as pinturas daquele lugar, que tanto encantam todos que vão lá. Ticianos, Rubens, Tintoretos, Carracis, Riberas, Goyas, Grecos, Mengs, Zurbaráns, Murillos, Fortunys, Sorollas, Velázquez... De encher os olhos!

Para minha sorte, hoje tinham vários artistas lá estudando os mestres, com seus cavaletes, pintando. Um fazia uma cópia de um José Ribera, outro de El Greco, outro de Rubens, outra de Velazquez, outro ainda de Rubens, "As três Graças". Lembrei das Três Graças que Alexandre Greghi está pintando lá em nosso Ateliê Contraponto em São Paulo, junto com um cara do grafite de rua. 

O artista daqui, que está fazendo uma cópia desta pintura de Rubens, se chama José. É jovem. Fiquei um tempão vendo ele pintar, ainda na fase da grisalha, que é uma primeira parte da pintura feita apenas com uma ou duas cores. Ele está fazendo com siena natural, sombra natural e branco. O desenho está perfeito. Quando ele parou um pouco, fui até ele conversar. Me disse que Rubens fez esta grisalha mesmo, e que ele já estava quase começando a colocar as cores. Quantos dias de trabalho até agora? Uns oito, dez dias. Mais quantos para acabar? No lo sé, me respondeu sorrindo.

Ontem dei andamento à uma pintura que comecei a fazer aqui, já dentro da busca pelos valores altos, pela luz. O quadro está ainda inacabado, mas está aqui no meu quarto, me olhando brilhantemente e eu satisfeita com ele. Fase nova... Vamos ver... Não posso dar continuidade aqui, vou acabá-lo em casa, porque a tinta não seca a tempo de eu viajar. Ou talvez nem termine, deixe como está, para registrar uma viagem que foi tão importante para mim, de tantas descobertas!

E a saudade do Brasil só cresce! Mais dois dias e chego. E começa uma nova etapa da minha vida.

Comecei a pintar este quadro em Madrid, para terminar no Brasil.
Com o foco nos valores mais próximos da luz.
 

terça-feira, 19 de maio de 2015

Os retratos

Palácio Real de Madrid
Hoje, ao contrário de ontem, fez friozinho o dia todo. Venta muito em Madrid e hoje as correntes de vento não pararam.

De manhã, fui direto ao Palácio Real, que fica na parte mais antiga da cidade. Em seus princípios, Madrid ia de lá até a Puerta del Sol, que fica perto. Antes tinha mesmo uma porta que abria para dentro da cidade rodeada de uma muralha. Era lá que o sol se punha todos os dias, depois de ter nascido do lado do palácio, começo de tudo. O mundo era menor, ainda mais para o rei que se escondia nesse canto.

Nas portas do Palácio Real
O palácio real é enorme, como todo palácio deve ser. Parece que conta com cerca de 2.800 quartos. Nada mal... Mas seu luxo não chega aos pés de Versalles, claro. Mesmo assim, dá pra ver que todo o luxo e grandeza das aristocracias francesas também foram vividos em terras espanholas, cujos reis e rainhas casaram-se ao gosto da política com soberanos de países europeus, incluindo a França.

Fui ver a exposição "El Retrato en las coleciones reales", que acontece dentro do Palácio. São pinturas e esculturas feitas por artistas desde o século XIV até 2014, representando reis, rainhas e suas famílias. Artistas como José Ribera, Diego Velazquez, Francisco Goya, Joaquim Sorolla e o pintor vivo Antonio López foram contratados para retratar reis e rainhas. Além de muitos outros, conhecidos e desconhecidos, espanhóis e estrangeiros. Após uma longa série de retratos que cobrem do século XV até o XIX, salta aos olhos, de forma confortável e inovadora, o retrato de Alphonso XIII pintado por Joaquin Sorolla em 1907. Pura luminosidade! Como gosto da luz deste pintor! Infelizmente não estou conseguindo colocar imagens aqui no blog pelo meu tablet... Mas colocarei quando chegar de volta em casa, em junho.

O último retrato foi o que fez Antonio López, numa encomenda que durou 20 anos pra ficar pronta. Este retrato da família real atual, do rei Juan Carlos e a rainha Sofia acompanhados de seus três filhos, pintados em tamanho natural, difere de todos os outros. Não há suntuosidade, nem luxo, nem mesmo brilho. Nem o brilho do sol do quadro de Sorolla. Parecem cinco pessoas de uma família rica qualquer, bem vestida e de forma sóbria. O ambiente não é no palácio ou em algum lugar que pareça nobre. Mais parece a oficina do artista, que é também escultor. Há uma réstea de luz no canto superior esquerdo, projetada na parede atrás da família. Mas nem brilha, apenas se reflete de forma suave. Em todos os lugares da tela, as marcas do trabalho do pintor. Nacos de coisas que se grudaram na tinta, os riscos dos lápis que serviram de rascunhos, números que Antonio López usou para marcar alguma coisa, suas pinceladas cuidadosas e outras nem tanto. Pictóricas. Tudo em volta dos reis lembra simplicidade e austeridade, mas que são as do pintor. Antonio López mede muito, calcula muito parece um matemático em sua precisão no desenho. Mas na pintura é mais intuitivo, trabalhando mais com camadas de formas (shapes) sobrepostas. O resultado é bom de ver. E não é hiperrealismo, como alguns surgirem que seja a pintura de López. Nada de hiperrealismo, nada a ver! Somente muito à distância poderia parecer, mas de perto, as pinceladas são claras, se mostram.

Rua central de Madrid
Andei um pouco pelo pátio do palácio, observei. Muitos turistas falando muitas línguas estavam por todo lado. De lá, entrei na Catedral de Madrid, ao lado do palácio. Poder temporal e poder espiritual, juntos, definindo como devem ser as coisas na terra. Fui em direção à igreja de São Francisco, onde tem uma pintura de Goya. Mas estava fechada. Era hora da siesta... Até os padres são filhos de Deus...

Almocei e fui encontrar Juan Argelina, um amigo que conheci aqui em 2013. Ele é professor de História da Arte em uma escola pública de Madrid. Dá aulas para adolescentes do ensino médio. Conversamos por mais de três horas, num café na Plaza de Sant'Ana. Conversa boa, boa, boa! Ele conhece tudo sobre Madrid, sobre a Espanha, desde política até arte. Está feliz com o surgimento do partido-movimento Podemos, liderado por Pablo Iglesias, um jovem de 36 anos, idealista, que quer fazer política de forma totalmente nova e de acordo com o mundo atual. Mas falamos muito de arte também. E ouvi muitos dos causos que Juan contou.

Mas a conversa com Juan fica para o próximo post. Aqui já são 22h e preciso dormir. Amanhã acordo cedo e pego o trem para Toledo. El Greco me aguarda.
Um dos lugares mais antigos da cidade de Madrid

sábado, 6 de abril de 2013

Diário de Madrid III

Estação Iglesia do metrô, com uma reprodução
de pintura de Joaquín Sorolla

O Museu Sorolla amanheceu me chamando. A ideia inicial era ir ao Prado, mas peguei o metrô em direção a Chamarti, estação Iglesia.

Antes entrei em um café, dos muitos que têm por aqui, e tomei um grande copo de café com leite e uma "media luna". No Brasil seria um pingado e um croissant. Os cafés de Madrid são variados em tempo e espaço. Aguns existem há décadas como o Café Gijón, que existe desde o começo do século XX. Ni verão, as cadeiras ocupam as calçadas, mas como ainda está muito frio eles se resumem ao espaço interno, quentinho, como em todos os lugares fechados, comuns em toda a Europa.

O frio hoje estava cortante. Fazia 10 graus me pleno meio dia! Esqueci minhas luvas no hotel e protegi minhas mãos nos bolsos do sobretudo. As mãos dóem neste gelo. E em Madrid venta muito.

A casa onde se localiza o Museu Sorolla é a casa onde ele viveu e trabalhava desde 1909, quando a comprou. É enorme! Uma bela casa e, segundo as informações que fui lendo enquanto o visitava, Joaquin Sorolla teve muita satisfação em comprá-la. Era resultado de seu trabalho. Realizava o sonho de instalar sua família, esposa e três filhos pequenos, num lugar confortável. Ele era bastante apegado a eles e sua ideia também era ter seu local de trabalho perto de sua família.

Um dos cômodos do Museu é onde estava seu ateliê. Uma sala bem ampla, com pé direito bastante alto e uma claraboia retangular no teto que lhe fornecia a luz natural necessária para trabalhar dentro de casa, quando o inverno - e o frio - chegavam. As paredes eram cheias de pinturas suas, alguns objetos adquiridos em lugares diferentes enfeitavam o lugar. Ele trabalhava simultaneamente em vários quadros e o tamanho do ateliê lhe permitia ter vários cavaletes.

Todos - todos! - os quadros de Joaquín Sorolla que eu somente conhecia de fotos estavamm lá, à minha frente, enchendo os meus olhos! Esses momentos são indizíveis! Nem sei como descrever direito o que sinto sempre que me encontro em frente a uma tela original de algum mestre. Me emociona. Me inquieta. Me silencia... Foi assim com muitos deles! Em Amsterdam, em Berlim, em Paris... até em São Paulo!

A entrada para o Museu Sorolla custa 3 euros. Em todas as salas da casa estão suas pinturas, e o Museu guarda o maior acervo de obras dele. Fui vendo os quadros, um por um, estudando.

Ateliê de Sorolla, hoje parte do Museu
A pintura de Joaquín Sorolla é caracterizada pelo uso de grossas camadas de tinta, os empastos. Ele não pinta os detalhes das cenas e figuras a não ser onde é muito necessário. Quanto mais áreas de sombra, ou segundos planos, menos detalhe. Mais concisão, mais simplicidade, tanto no uso da quantidade de tinta quanto nas pinceladas. Algumas devem ter sido feitas em três ou quatro passadas de pincel. Mas são fortes, firmes, encaixadas. Ele usava pinceis grossos, de pelo mais duro.

Nas inúmeras telas representando a praia, se vê que ele não ficava descrevendo nada em detalhes. Não desenhava as ondas, por exemplo. Aplicava camadas de empasto branco onde a luz era bem forte. Passava o pincel deixando verdairos nacos de tinta de valor alto (branco, branco-amarelo, branco-azul). Por isso suas telas brilham! Ele era fascinado pelo efeito da luz sobre as coisas.

Na segunda sala, tive que esperar um pouco. Havia uma senhora de meia idade com um grupo de uns 15 adolescentes e ela explicava os quadros de Sorolla para eles. Um por um. Parei para ouvir, se ela me permitia... Vi que fazia perguntas aos alunos, que respondiam um pouco tímidos. E ela continuava explicando. Se deteve bastante tempo nas telas "Após o banho" e "Clotilde na praia". Clotilde era a esposa de Sorolla. Fiquei pensando como é importante essa formação desde cedo na vida de um ser humano. Ensina-nos a ver o mundo com outros olhos. E a amar a pintura, os pintores, a arte. Enquanto a professora continuava falando, li sobre Sorolla em um dos paineis: "Seu deseo de captar la realidad tal qual la ve determina su manera de trabajar." O real é sua grande fonte de inspiração.

Alguns dos pinceis que Sorolla usava
Mas voltando a analisar a pintura deste artista, vi que na tela "Maria en la playa de Biarritz", por exemplo, o ponto de interesse é a luz forte que bate sobre as ondas. O vestido dela está na sombra, sem maiores detalhes. Seu rosto é sereno e monocromático. Uma parte do seu vestido é esvoaçante e a luz bate forte sobre ele e brilha. Assim como sobre seu chapéu. Mas a luz forte mesmo é mostrada sobre camadas grossas de tinta branca que representam as ondas. Lindo de se ver! Na outra tela "La bata rosa o despos del baño", ele pintou nacos de luz sobre as roupas do casal. E mais uma vez dá para ver: quanto mais sombra, menos necessidade de tinta.

Fiquei bastante tempo na sala onde era seu ateliê. Fotografei os cavaletes (dois), os pinceis, a caixinha onde ele guardava as tintas. Ainda tem algumas bisnagas de tinta dentro, bem usadas, espremidas. Pelas mãos de Joaquín Sorolla! Os pinceis... fiquei um tempo observando os pinceis. São grossos, pelo grosso, talvez de orelha de porco? Parece... Nada de cerda fina, delicada. Tinta também dois "tentos", um pauzinho que usamos para ajudar a segurar a mão quando precisamos ser certeiros em alguma pincelada.

Passei para onde antes era uma antesala da casa. Nesse espaço estão suas pinturas feitas no jardim de sua casa. Sorolla cuidou detalhe por detalhe dos jardins. Desde os pequenos pedaços de cerâmica decorada que ele encomendou no Marrocos, até as plantas e as flores. Muitas delas viraram seus modelos e aparecem em seus quadros. Ali, li este poema de Juan Ramón Jiménez, "Mariposa de luz":

Mariposa de luz,
la belleza se va cuando yo llego
a su rosa.

Corro, ciego, traz ella...
la medio cojo aquí y allá...

Sólo queda en mi mano
la forma de su huida!

Ainda escreverei sobre essa experiência de contato com o real. Tão sutil, tão passageira quanto um segundo que passa e quase não se alcança, a não ser em alguns momentos de beleza... Mas isto é assunto para depois.

"Rosas blancas en el jardín de mi casa", Sorolla
Encontrei na sala seguinte um jarro com flores do qual eu fiz uma cópia em pastelo no ateliê de Maurício Takiguthi! Fiquei feliz em ver ali, à minha frente, um quadro que eu estudei profundamente, o "Rosas brancas en el jardin de mi casa". Da casa de Sorolla... E eu estava lá, na casa de Sorolla e em frente ao quadro!

Saí para o jardim. Quando cheguei lá, vi uma moça bem jovem, esculpindo uma miniatura no jardim, usando como modelo as esculturas que lá estão. Sentei-me embaixo de um caramanchão, onde tinham umas cadeiras. Peguei meu caderno de desenho e fiquei ali umas duas horas desenhando uma escultura do jardim. Os visitantes passavam, alguns olhavam meio rápido. Os europeus são muito discretos quando se trata de invadir a privacidade alheia. Acho que gosto de me sentir assim, deixada em paz, de vez em quando. Mas um deles ficou atrás de mim e vi que me fotografou desenhando, a mim e ao modelo que eu usava, um par de esculturas.

O jardim de Joaquín Sorolla
Em certo momento, a menina escultora passou por mim e me perguntou as horas. Três e quinze. Agradeceu e seguiu para dentro da casa. Continuei desenhando. E quando acabei ela tinha voltado ao seu trabalho, solitária no meio do jardim. Pensei em ir até ela, já que me perguntou as horas. Fui. Ela estuda escultura num ateliê de um escultor aqui em Madrid. Quase não conhece de pintura, disse. Mas gosta muito de Joaquín Sorolla. Me contou que faz esculturas a partir de modelo-vivo uma vez por mês no ateliê, para estudar a anatomia humana. Olhei para o rosto dela, bem jovem. Lembrei de Camille Claudel... Me despedi, agradeci e fui embora sem nem saber seu nome. Se um dia ela ficar famosa, será que vou lembrar do seu rosto?

Fui caminhando pela Calle Santa Engracia em direção ao metrô Cuatro Caminos. Uma rua bem larga e bonita. Chamartí deve ser um bairro bom de se viver. Passei por um colégio, Divina Pastora, bem na hora da saída dos alunos. Crianças de mãos dadas com pais e mães cruzavam por mim todo o tempo. Entrei no metrô, fui direto para a Plaza de España.

E como este post está ficando grande demais, deixo o resto para contar na próxima entrada.

Dom Quixote e seu fiel escudeiro Sancho Pança, na Plaza de España

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Diário de Madrid II

O urso com a árvore, símbolo da Espanha
Meu primeiro dia em Madrid rendeu muito. Apesar do cansaço de uma noite dentro do avião, fui caminhar. Minha amiga Susana, que está em Lisboa, me sugeriu um lugar para almoçar: o restaurante Miau na Plaza de Santa Ana, que tem um gatinho como logomarca. Em homenagem a meus gatos Xavier e Nestor, fui para lá. Passei pela Puerta del Sol, andei pelas ruas, caminhando e olhando tudo. Madrid é uma cidade linda. Lembra Paris em alguns lugares, mas há algo de diferente. A cidade não é muito grande e dá para andar a pé por aqui sem muitos problemas. A Plaza de Santa Ana, a Puerta del Sol, a Plaza Mayor, assim como o Museu do Prado e o Reina Sofia fica tudo meio perto...

Meu almoço: primero plato, una ensalada russa, mui buena y bien servida. Segundo plato, um peixe com salada de batata. Acompanhando, 2 taças de vinho da região de Rioja que, segundo outro amigo, Adalberto, parece que produz os melhores vinhos espanhois. Como postre (sobremesa), um pudim de leite com chantilly, enrome. Ao final um café. Preço de tudo isso? Onze euros somente!

Na Plaza Mayor, aglomerações de turistas. Nesta Plaza aconteceram grandes execuções públicas de bandidos, mas também de revolucionários. Aqui crepitaram as fogueiras e os julgamentos da Inquisição. É uma construção quadrada, com prédios de 3 andares colados uns nos outros. Há uma estátua equestre no centro, da qual eu fiz um sketch rápido. Enquanto desenhava, uma moça se aproximou e ficou me filmando enquanto eu desenhava. Não sei que lingua ela falava, não parecia espanhola. Ri para ela, que aprovou meu desenho. Nem posso posta-lo aqui agora, porque o cartão SD da minha câmera não está cabendo na entrada do netbook que estou usando...

Vi alguns mendigos na Plaza Mayor. E muitos artistas de rua em muitos lugares. Um deles era tenor e cantava uma ópera ao ar livre. Alguns passavam e depositavam suas moedas na caixinha em frente a ele. Outros tocavam sozinhos seu violão. Outros, cantavam em grupo. Um desses artistas de rua assustava os que passavam do lado. Só aparecia seu rosto, pintado com cores escuras como um personagem de filmes de terror e do seu lado uma cara de cão malvado, do outro uma cara de lobo assustadora. Aos desavisados que passavam muito perto, ele gritava e mexia as cabeças dos bichos, assustando as pessoas e fazendo rir os que assistiam à cena. Quando se depositava uma moeda em sua caixinha, se era homem, ele gritava mexendo as cabeças: Muchas gracias! Se era mulher, ele era mais suave... Muito engraçado!

Na Gran Via, às sete da tarde (ainda muito claro por aqui) vi minha primeira manifestação contra a crise: um grupo de uns cem espanhois faziam muito barulho e se transformavam em mil. Com cartazes atacando "banqueros y gobierno" gritavam: "Usted ahi mirando, también te estan robando!" Concordei com eles, fiquei um pouco observando a cena, vi que um carro da polícia acompanhava tudo de perto. Senhoras e senhores idosos também estavam lá e também gritavam: o velho e bom sangue espanhol! Acá y en esta lucha, somos todos hermanos! Contra el capitalismo!

Uns metros abaixo desta manifestação, na esquina da Gran Via com a Calle Fuencarral, onde estou hospedada, havia um outro mendigo: inteiramente vestido de palhaço, rosto pintado e nariz de borracha vermelho. Mas não ria nada. Cheguei perto e observei: era um senhor já idoso, se viam as rugas atrás da maquiagem... Seria um palhaço desempregado? Seu circo teria sido extinto e ele estava sozinho no mundo, sem seus companheiros? Deu vontade de saber sua história. Depositei uma moeda de 1 euro em sua caixinha. Ele falou um "Gracias" com voz baixa e cansada, sem se mover. Lembrei-me do filme de animação "O Ilusionista". Deu pena dos artistas sem trabalho... Deu vontade de chorar...

Academia Decinti

Ainda no Brasil eu tinha descoberto dois pintores daqui que mantém uma escola de arte no bairro de Chamarti. Peguei o metrô na estação da Puerta del Sol e desci quatro estações depois, na Iglesia, que também fica ao lado do Museu Sorolla, que irei visitar hoje. O ateliê não é muito grande, mas tinha umas dez pessoas trabalhando lá, junto com Alejandro, um dos professores. O outro é Oscar. Me apresentei e eles me receberam muito bem muito simpáticos. Conversamos bastante, ele me disse que seguem a estética da pintura espanhola e mais especialmente a de Joaquín Sorolla. Resultado da conversa: a partir desta segunda irei fazer um curso intensivo no ateliê deles, 4 horas por dia, de segunda a sexta. Ele me disse que irei utlizar uma palheta de cores primárias, mais preto e branco. Vou fazer a experiência de pintar sem tons de terra. Saí de lá muito feliz e com uma grande expectativa de estudar um pouco com eles aqui em Madrid!

sábado, 3 de abril de 2010

O Velázquez que nos mira há 354 anos

Desde o dia 16 de março de 2010, o quadro do pintor realista John Singer Sargent, “”As Filhas de Edward Darley Boit”” (1882), ficará exposto, até 31 de maio, no Museu do Prado, em Madri, Espanha, ao lado da obra-prima que o inspirou, “”As Meninas”” (1656), do espanhol Diego Velázquez.


A tela de Sargent sendo colocada ao lado da de Velázquez
John Singer Sargent nasceu em Florença, Itália, em 1856, mas era filho de pais norte-americanos, originários da Filadélfia. Esse pintor, que desde criança demonstrava talento para o desenho, encorajado por sua mãe, aos 13 anos, começou a ter aulas de pintura na Academia de Belas Artes de Florença. Com apenas 18 anos de idade, foi admitido no Atelier do pintor realista Carolus-Duran, em Paris, um artista que se inspirava na obra do também pintor francês, realista e revolucionário, Gustave Courbet.


John Sargent, Carolus-Duran e Gustave Courbet, três importantes pintores, unidos no mesmo gosto pela estética realista, formam, através do tempo, uma linha artística que alcançou, no passado, o pintor Diego Velázquez, e – indo indo ainda mais distante no tempo e na história da arte – se encontram e se agrupam no mesmo fervor pela pintura do estranho e maravilhoso pintor italiano Caravaggio, o iniciador de uma linha genealógica de pintores que atravessam os tempos.


Seriam necessárias centenas de páginas para nos reportarmos à importância de cada um desses pintores. Ainda voltaremos a falar de cada um deles, nesta coluna. 


Autorretrato de Velázquez em As Meninas
Mas por enquanto, fiquemos com o espanhol Diego Velázquez, pois neste ano de 2010 completam-se 350 anos de sua morte. Expor ao lado de sua obra ““As Meninas”” a tela de 222,5x222,5cm do pintor John Singer Sargent, um óleo sobre linho, pintado em homenagem a seu mestre dois séculos depois do quadro que o inspirou, é parte das homenagens que o artista espanhol terá. Sargent teria feito árduos e persistentes estudos, uns 58 ao todo, para reproduzir em seu quadro ““As Filhas de Edward Darley Boit”” o rigor técnico e as características mais marcantes do mestre.


Mas vamos a Velázquez.


Diego Rodriguez de Silva Velázquez, filho de pai português e mãe espanhola, nasceu em Sevilha, em 1599. A Espanha de Velázquez era, no dizer do historiador da arte francês Élie Faure (1873-1937), um país “cortado “em dez partes pela religião, pela guerra e pela natureza””. Não havia uma cultura espanhola única, mas todo um emaranhado cultural de vários povos, que foram formando aos poucos a alma espanhola, intensa e trágica, tão bem expressa nas famosas touradas e no som das castanholas.


Velázquez desenhava desde muito cedo, e ainda adolescente foi estudar pintura no atelier de Francisco Pacheco, seu futuro sogro. Desde o início, interessa-se por pintar motivos comuns como jarras, peixes, pássaros, flores e frutas, que ele via no mercado de Sevilha. Nesta época, pinta o famoso quadro “”Velha fritando ovos”,” que trazem expressas as raízes de sua inspiração nos pintores El Greco e Caravaggio, de onde aprendeu os efeitos de claro-escuro e o tom realista.


Diego Velázquez: Velha fritando ovos, 1618
Em 1624, muda-se com a esposa para Madri, para trabalhar como pintor contratado pela Corte do Rei Filipe IV, um amante das artes. Em duas viagens à Itália, Velázquez fez diversos estudos, em pintura e desenho, de obras de Michelangelo, Rafael, Ticiano e Tintoretto. Amigo do pintor holandês Rubens, fazia retratos da família real e da corte, além de quadros com temas religiosos e mitológicos.


Diego Velázquez:
O aguadeiro de Sevilha, 1620
Mas antes, em sua Sevilha natal, povoada por nobres, mercadores, eclesiásticos e viajantes de todas as origens, Diego de Silva Velázquez – como também ficou conhecido – convivia com as multidões de pobres, indigentes e delinquentes dessa cidade. Em meio a esse contraste, ele desenvolveu sua sensibilidade artística, que deixou transparecer em muitos de seus quadros em todas as fases de sua vida, mesmo quando já era o pintor do rei. Suas telas, mesmo as de temas religiosos ou mitológicos, estampavam rostos muito parecidos com os rostos da gente simples que ele conheceu em sua terra natal. Rostos enrugados, olhares perdidos, roupas rotas, aparência cansada da lida do dia a dia, surgem até mesmo em telas como ““Cristo na casa de Marta e Maria””, na ““Adoração dos Reis Magos””, na ““O Aguadeiro de Sevilha””, na ““Os Bêbados (Triunfo de Baco)””, na ““A Forja de Vulcano””. Até mesmo em seu apreciadíssimo quadro ““As Meninas””, quando em primeiro plano, à direita da infante Margarida, aparecem dois empregados da família real, a alemãzinha hidrocéfala e anã Mari-Bárbola e o pequeno italiano Nicolasito Pertusato, ambos acompanhados de um cachorro. Disse o jornalista e ativista político, combatente contra a ditadura de Franco, José Ortega y Gasset: “”Nosso Velázquez reúne alguns ganhadeiros, alguns pícaros, escória da cidade, sujos, ladinos e inertes. E lhes diz: Vinde, que vamos zombar dos deuses”.”


Velázquez: As Meninas, 1656
Mas o quadro mais famoso de Diego Velázquez é mesmo ““As Meninas””. Representava a família de Filipe IV, e foi pintado em 1656. Desde então, muito já se estudou, se escreveu e se elocubrou a respeito desse quadro, onde o próprio pintor aparece em auto-retrato.


A tela mede 312 x 276cm, e as figuras estão pintadas em tamanho natural. Ao centro, em primeiro plano, surge iluminada a figura da infanta Margarida-Teresa, com cinco anos de idade, sendo acompanhada por duas damas de companhia. Além dos anões e do cachorro, já citados, surgem mais três figuras de empregados da corte: logo atrás à direita, uma camareira e um ajudante de ordens. Ao fundo do quadro, através de uma porta aberta, surge a figura de José Nieto Velázquez, parente do pintor e tapeceiro do palácio. Também ao fundo, à esquerda, um grande espelho de moldura escura reflete os rostos do rei e da rainha, que estariam, segundo parece, à frente de todo o grupo e no próprio lugar da pessoa que examina o quadro. O pintor, na tela, com pincel e palheta nas mãos, tem diante de si uma grande tela. Também ele está olhando para nós, os observadores do quadro – ou para o casal real, segundo o ponto de vista escolhido.


Mas penso, enquanto olho para o incrível quadro desse grande pintor, que há uma grande dica que Velázquez continua dando através dele, 354 anos depois: o observador vê a realidade refletida nesta pintura e é, ao mesmo tempo, observado por ela. Lembro-me dos primeiros experimentos da Física Quântica, quando os físicos se depararam com o estranho comportamento das partículas, que pareciam sofrer interferência da observação. Observador e observado em perfeita sincronia. Diante do gigantismo desta tela, não há como não ficar um tanto quanto inquieto com esses olhares, que se lançam do quadro ao espectador, criando essa relação enigmática entre o observador e o quadro. Isso me leva a pensar, a seguir, que os laços que unem realidade e sensibilidade do artista são infinitos. Não se trata de retratar a realidade tal como ela é, como na pintura acadêmica tradicional, ou mesmo no estilo hiper-realista. Trata-se sobretudo de apreender a realidade e refletir sobre ela, devolvendo-lhe uma nova característica, que o olhar do artista transmuta com seu pincel. Carolus-Duran costumava ensinar a seus alunos no atelier, dizendo que é preciso “exprimir o máximo, com o mínimo de meios”.


Velázquez:
Pablo de Valadolid,
1632/1635
No exercício de perceber a realidade, o pintor recria-a, remodela-a e apresenta-a ao espectador, modificada, convidando-lhe também a uma nova visão sobre o mundo. Porque afinal de contas, a vida nos convida todo tempo a APRENDER A VER, a cada momento com um olhar diferente, sem as escamas que nos são lançadas aos olhos pelo sistema vigente (e pela mídia). Cria-se então essa relação dialética entre Realidade e Arte, uma interferindo na outra, em ritmos tensos ou frouxos, mas provocando o movimento natural da vida.


Penso, por fim, que uma tela de 354 anos, mostra que a Realidade, mutável e infinita, será sempre o referencial infindável iluminador da criatividade de tantos e tantos artistas, os que vieram e os que estão por vir. Porque, afinal de contas, uma cadeia de DNA onde constam nomes como Caravaggio, El Greco, Velázquez, Courbet, Fantin Latour, Rosa Bonheur, John Sargent, Vladimir Tatlin, Alexander Rodchenko, Diego Rivera, e tantos outros artistas desse calibre, ainda dará muito o que falar na História da Arte, que é também uma parte importante da história da humanidade.


Penso que a arte realista acima de tudo é uma arte humanista, com tudo o que de belo essa palavra esconde em si.