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terça-feira, 9 de julho de 2024

Engendrando o sonho

16/12/2021

A primeira das duas vezes em que li “Os sertões” de Euclides da Cunha, tive que vencer uma primeira grande dificuldade: passar pela primeira das três partes que compõem o livro, A Terra. O autor parece testar o leitor, numa linguagem tão áspera quanto culta: é preciso atravessar as cadeias de montanhas da região sudeste, contemplar o eterno conflito entre o mar e a terra ao longo do litoral brasileiro, atravessar sertões e caatingas, para poder ter acesso ao sonho de um homem, Antonio Conselheiro, e sua Canudos. Aquele sonho que habitava o coração de Antonio Vicente, o Conselheiro – criar uma comunidade alternativa ao sistema – permanece como paradigma.

Lembrei deste livro fundamental quando me juntei aos buscadores da terra, deste meu grupo de amigos. Porque a realização do grande sonho coletivo – aí incluídos todos os sonhos individuais – envolve um chão. A primeira vez que fui com parte deles, fomos para São Luiz do Paraitinga ver uma propriedade que ficava mais próxima do distrito de Lagoinha, pequena cidade do Vale do Paraíba. O sol estava a pino, a natureza exuberantemente verde, após as primeiras chuvas. O olhar que percorre as montanhas em 360 graus se enche de encanto, porque há uma verdadeira ondulação harmônica de montes, morros, subidas, descidas. 

Mas “olhar” uma terra é muito diferente de ver um apartamento ou uma casa na cidade. É necessário andar sobre ela, calçar bem os pés, proteger pernas e braços, porque há plantinhas que machucam a pele e diversos pequenos animais que podem picar. Ainda é preciso vencer as subidas e descidas, observar veios d’água, possíveis áreas cultiváveis ou construíveis, percorrer trilhas, passar por “bambuzeiros”, como dizem os habitantes desta parte do interior de São Paulo. Tudo isso com o sol ardendo sobre as cabeças e a respiração resfolegante, coração acelerado… E de repente “ver” aquele pedaço de terra ocupado por nossas casas, com flores nas janelas, com floresta, hortas, viveiros, ateliês, galinhas, oficinas, ovelhas e muito afeto.

O caminho até chegar ao sonho também é áspero. Há estradas de terra a serem percorridas, com buracos, pedras, cascalhos, curvas, subidas. Os automóveis que usamos nas cidades sofrem nesses trechos, não foram feitos para isso. Mas há que esgotá-los, tirar deles seu máximo de potência. Essas máquinas não foram feitas para nos dar maiores pernas? Então! Mas o preço da gasolina está caro, então nos apertamos em um ou dois, adicionando mais massa a ser transportada em direção ao sonho…

Na segunda vez que fomos, passamos por várias propriedades na montanhosa região de Cunha. Até encontrarmos uma área mais plana, mais habitável, mais próxima da cidade próxima, portanto mais viável em diversos aspectos. Cunha é uma cidade que atrai muitos turistas em busca do sossego – ou da aventura – nas montanhas. Lá também residem diversos artistas que trabalham com cerâmica. E há uma rica vida cultural do povo, com a Festa do Divino, as tradições da Semana Santa e Corpus Christi, cavalaria de São Benedito, Festa do Pinhão, Festival de Música no inverno, além da festa da Padroeira, Nossa Senhora da Conceição…

… Oxum, Ora Yê-iê, Ô! Nossa senhora, rainha das águas doces, dos rios e cachoeiras que banham as montanhas de Cunha. Montanhas de Baba Okê, onde Oxalá também faz sua morada e recebe suas oferendas. E onde também habita Xangô em suas pedras – Kao kabecilê! – o rei das tempestades, dos raios e dos trovões, livrai-nos do mal! Mas também tem, pairando nos ares, o deus Tupã, que criou os céus e as estrelas, as águas e a terra. É Nhanderuvuçu  que nos fala no som das tempestades, cujas águas escorrem nos riachos protegidos por Iara, a Mãe-Dágua, entrando e saindo das matas onde mora o Caipora. Tupã nos deu o poder de criar ou destruir!

A esta altura de nossas vidas, escolhemos criar. Parar de ser parte da destruição geral!

Contratamos um casal, arquiteta e engenheiro ambiental, para nos apresentar um estudo de viabilidade de ocupação do terreno que nos agradou. A propriedade possui em torno de oito hectares (ou três alqueires e meio), contendo uma Área de Preservação Permanente (APP) que ocupa quase um terço do terreno. Há também uma área de cobertura florestal, uma pequena mata preservada, onde vivem muitas espécies de bichinhos da terra e do ar. Há um pequeno córrego que talvez um dia tenha sido um rio, do qual pretendemos cuidar que volte à sua origem. Caso seja esta a terra escolhida.

Em torno de 50% da área total, há espaço e possibilidade de ocupação, segundo atestam as fotografias minuciosas do drone do engenheiro. Essa parte que pode ser ocupada encontra-se, no entanto, dividida em três trechos. Há estrada de servidão, nome engraçado que significa que outras pessoas podem fazer uso dela, passando por esta terra. Ainda no relatório dos dois profissionais, consta que a gleba possui rede de distribuição de energia elétrica e vias de acesso bem mantidas. E o relatório conclui, quase como um poema para nós:

“Ainda, sob o aspecto ambiental, contém adequada proporção de vegetação nativa já consolidada, aclives e declives suaves frente ao contexto geomorfológico cunhense, e é abastecida por curso d’água perene.”

Mas a história ainda não acabou, ou apenas começou. Outra área surgiu como possibilidade na mesma região. Se apareceu, há que se olhar de perto. Há que se comparar… Há que se resolver… Estamos, no momento, como se estivéssemos arando a terra, preparando-a para nos acolher. E por isso, ainda é preciso caminhar mais sobre ela, e suar mais e sonhar mais, para poder chegar à nossa Canudos e ver de perto o sonho arquetípico de uma terra sem males…

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Sucesso? Ou êxito?

Velazquez vai continuar sempre vivo na memória artística do mundo. Esta pintura "Toillette de Vênus" é uma das que representa o êxito de Velazquez como artista
Nos dias atuais, busca-se o sucesso como nunca. Qualquer um quer ter sucesso, seu quinhão de fama, seus vinte minutos de celebridade. Em contrapartida, o sucesso dura o que dura a moda. 


Ilustração para o livro "Dom Quixote"
de Miguel de Cervantes, feita por Portinari.
Dois artistas que tiveram êxito.
Mas o Êxito, o resultado final de anos de trabalho, de estudo, de pesquisa, de concentração sobre um tema ou assunto que desafie o artista, o êxito, uma vez instalado, ele fica para sempre. Se isso traz sucesso, é o que menos importa. Se isso torna o artista conhecido por todos, é um fator muito menor do que a satisfação que o verdadeiro artista sente de ter suplantado seus limites.


Fui ver no Dicionário Etimológico qual o significado da palavra êxito. Ei-lo: "êxito sm. resultado, consequência, efeito. Do latim exitus". Diante dessa informação, podemos concluir que êxito representa um caminho em determinada direção, um movimento realizado com o sentido de se suplantar algum limite, pequeno ou grande.


Estava assistindo, no Youtube, uma das aulas-espetáculos do grande escritor brasileiro Ariano Suassuna (autor de "Auto da Compadecida" e "A Pedra do Reino", por exemplo). Lá pelas tantas, ele toca exatamente neste assunto. Transcrevo o que ele diz: 


Ariano Suassuna, escritor brasileiro, dramaturgo,
poeta, professor
"Você pega a banda Sepultura ou a banda Calypso. Elas têm muito mais sucesso do que Euclides da Cunha. Muito mais. Se você anunciar uma conferência sobre Euclides da Cunha, se forem 40 pessoas já serão muitas. Já a banda tem público de milhares de pessoas em cada espetáculo. Então, eles têm sucesso. Mas me diga qual é o êxito maior? É "Os Sertões" (livro escrito por Euclides da Cunha). Todo ano sai uma publicação. E mesmo os brasileiros que nunca tenham lido sabem que existe um livro chamado "Os Sertões" que é fundamental para o nosso país. Do mesmo jeito que "Dom Quixote" (de Miguel de Cervantes) é fundamental para a Espanha. Enquanto existir o livro "Dom Quixote", você pode invadir militarmente a Espanha, você pode dominá-la economicamente, mas a Espanha vai ficar viva porque tem um livro chamado "Dom Quixote". A mesma coisa eu digo de "Os Sertões". Podem desmoralizar, descaracterizar, vender, mas, enquanto existir "Os Sertões", sabe-se que existiu um país chamado Brasil e que aquele era um livro fundamental. Aquilo é êxito. Sei que todo artista verdadeiro o busca".


É isso aí.


Zé Celso Martinez Correa e os atores do Teatro Oficina encenando "Os Sertões" de Euclides da Cunha