quinta-feira, 9 de julho de 2015

A eterna novidade do mundo

"Pequena rua", Jan Vermeer, 1657
“O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no Mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar…”


Fernando Pessoa é nítido como um girassol, neste poema… Por isso, me agarro a ele para alguma reflexão sobre a percepção humana.

Temos cinco sentidos, cinco portas abertas para percebermos o mundo, e isto aprendemos nos primeiros tempos da escola infantil: audição, paladar, olfato, tato e visão. Ouvimos música. Saboreamos uma comida. Cheiramos. Tateamos alguma maciez que passa agradável por nossos dedos. Olhamos, no museu, uma bela pintura.

Olhamos? Sim. E não.

Pescador no mar, William Turner, 1796
Segundo pesquisas científicas recentes e nem tanto assim, pois Charles Darwin já havia estudado o assunto, a visão humana foi um dos últimos sentidos a se desenvolver em nossos ancestrais. Em nosso desenvolvimento humano, diz a medicina que a visão humana só está completa aos cinco anos de idade de uma criança. Ao mesmo tempo, sabemos que o olho humano é um sistema óptico complexo. Ele acabou se sobrepondo aos outros quatro sentidos de percepção, e usamos a visão para completar todas as informações que nos vêm dos outros modos de sentir o mundo.

Mas nas Artes Visuais muito mais é transportado à mente humana pelo olho do que a simples imagem ou sensação de cor.

Harold Speed, um pintor inglês que viveu até 1957, em seu livro “Oil painting, techniques and materials”, que estou lendo, diz que os primeiros desenhos que surgiram na civilização humana foram feitos a partir não da visão que tinha um objeto, por exemplo uma ânfora, mas a partir do tato, da mão que passeou pela forma do objeto e verificou seus limites. O sentido do TATO foi o que orientou a arte durante séculos, até o Renascimento e provavelmente até muito depois dele. O desenho localiza as coisas no espaço, concebido como traçados de linhas. As linhas impunham o limite às coisas, que se encontravam separadas entre si. Nas composições primitivas, diz Speed, a descrição dos objetos era feita em contornos de linhas, uma ideia do limite que todos os objetos sólidos têm. E isso é resultado do sentido do tato, segundo ele.

Pintura de James A. Whistler
Foi preciso a humanidade evoluir durante muito tempo para chegar até os estudos de Leonardo da Vinci sobre a relação entre a Luz e a Escuridão. As grandes escolas de pintura dos séculos XVI, XVII e XVIII desenvolveram a ideia da solidez dos objetos no espaço não mais através de linhas, mas através da relação entre luz e sombras, dando a ideia de volume, profundidade, terceira dimensão às coisas pintadas. Da Vinci desenvolveu sua ideia de sfumato, esfumaçando mesmo as massas de cores em sua relação luz-sombra. Mas… até o século XVIII - aponta Harold Speed - todas as escolas de pintura se voltavam para o conceito de pintar o objeto localizando-o no espaço! Mas isso não seria óbvio?


Para o pintor, só o movimento Impressionista é que trouxe, pela primeira vez, a novidade de se enfatizar mais a Cor do que a Forma dos objetos e do mundo em geral. O Impressionismo, que se desenvolveu junto com o Realismo do final do século XVIII e do século XIX, começou a tratar os objetos, as cores, as composições, as luzes e sombras como um TODO único! Não houve um grande pintor depois disso que não foi influenciado por esta novidade dos pintores impressionistas, diz Harold Speed.


Pintura de Burton Silverman
E também acabou por influenciar, ou mesmo direcionar, a chamada “arte moderna” do começo do século XX, com tudo o que trouxe de bom e com tudo o que trouxe de muito ruim. Claro que artistas mais radicais levaram algumas dessas obras a quebrar com toda a tradição e, como muitos movimentos de rompimento, negaram qualquer relação de sua obra com a arte do passado. Mas, como também observa o pintor inglês, que viu pessoalmente alguns desses trabalhos, “eles têm tanta relação com a arte como a banda local do Exército da Salvação”...

Mas não falemos disso agora, porque estamos falando de visão (mas falando de visão, o retorno ao uso de linhas da “arte moderna” não seria um meio de expressão tão antigo quanto os hieróglifos egípcios? Penso nas linhas das pinturas de Picasso, por exemplo).

Muitas vezes na vida tenho me perguntado por que a maioria das pessoas é incapaz de distinguir uma boa de uma má pintura? Por que o comum das pessoas - hoje em dia em especial - se ligam mais no colorido do que na forma? Ou se se ligam na forma, por que sempre estão fazendo comparações com a fotografia? Se um pintor realiza bem um trabalho, o melhor elogio que recebe é “tão bom que parece uma foto”. Por que a grande parte das pessoas não percebem e apreciam as qualidades artísticas reais do trabalho, aqueles mais sutis e refinados, como composição, ritmo e equilíbrio dos valores (dos tons das cores)?

É um problema com a visão? Não enxergamos direito?

Até certo ponto, sim!

Aquarela de Burton Silverman
Na história das cores, sabemos que a cor Azul só entrou na palheta dos artistas depois do século XIII! Antes, só preto, branco, amarelo e vermelho fazia parte do mundo das cores vistas. Verde e azul eram constantemente confundidos na mente humana. Assim como não distinguíamos as relações entre luz e sombra, não tínhamos a percepção da imensa escala de cores que hoje podemos alcançar.

E há ainda um outro fator, que tem mais a ver com a nossa cultura ocidental. O racionalismo desenvolvido ao longo dos últimos séculos, aquele que continuava incentivando o artista a localizar os objetos no seu espaço, é o mesmo que não leva em consideração os aspectos espirituais da arte, tentando trazer sempre todo o conhecimento, inclusive o artístico, para a “luz dura e fria da percepção” puramente “intelectual”, como observa Harold Speed. Que diz também: “Grandes obras de arte ainda permanecem fora do mundo do intelecto puro”.
Mas a pintura, uma atividade humana altamente qualificada, possui uma linguagem universal, capaz de expressar muito mais coisas do que possa imaginar a nossa vão filosofia…

Que hoje mais do que nunca habita o reino da superficialidade...

Pintura de Joaquín Sorolla
Vemos mais a Forma das coisas do que suas cores. Mas vemos também as Cores. E por que não vemos além? Por que não vemos as diferenças de Tom, de Valor?

As pessoas vão ao museu ver belas pinturas, mas não enxergam, por exemplo, as relações entre luz e sombra que afetam as cores locais, levando um objeto amarelo a ter uma variação que pode chegar até o branco ou até o verde, caso seja o caso… Claro, não somos educados para isto. Não aprendemos a ver. Apenas a olhar. Ver e olhar são coisas muito diferentes, quase antônimas, diria eu…

Se em nossas escolas infantis e médias, se em nossas universidades, se em nossas famílias, se em nossas vidas atuais fôssemos educados a enxergar além da casca das aparências das coisas…. Bom, aí o mundo também já seria um outro! Pois se perde grande parte da graça do mundo com essa visão imperfeita…

Repito incansavelmente aos meus alunos de desenho a frase de Beth Edwards, uma artista norte-americana: aprender a desenhar é aprender a ver! Por isso, quando andarmos por aí, como o poeta, pelas estradas, olhando para a direita e para a esquerda, olhemos para o mundo com o olhar prescrutador… Você vai ficar pasmo com o que vai ver da "eterna novidade do mundo"!


Pintura de William Turner
Pintura de William Turner

terça-feira, 30 de junho de 2015

José Benlliure y Gil

La Barca de Caronte, José Benlliure y Gil, óleo sobre tela,103 x 176 cm, 1919
José Benlliure y Gil
Um dos pintores espanhois que conheci nesta minha última viagem à Espanha foi José Benlliure y Gil. Faz parte da coleção do Museu do Prado seu quadro “El descanso en la marcha”, pintado em 1876. Anotei seu nome e fui pesquisar sobre sua obra e história. Não temos muita coisa sobre sua biografia, mas é um pintor da geração espanhola do século XIX que vale a pena conhecer. Em especial pela pintura impressionante que está no topo deste post, "La barca de Caronte".

José Benlliure y Gil nasceu no pequeno povoado de Canyamelar, situado à beira mar, no município de Valencia, onde também nasceu Joaquín Sorolla, grande pintor espanhol. Ele nasceu no dia 30 de setembro de 1855, numa casa pertencente à família Beltrán, onde seus avós trabalhavam como caseiros. 

Filho de Juan Antonio Benlliure Tomás e Angela Gil Campos, ainda muito pequeno seus pais mudaram-se para uma rua baixa da cidade de Valencia, no bairro de Carmen, bairro de ruas e casas simples, onde José viveu sua infância. Sua família vinha de longa tradição artística. Seu irmão, Mariano Benlliure, se tornou um escultor de muito sucesso; seu outro irmão, Juan Antonio, aprendeu a pintar com José e também se tornou pintor.

Após seus primeiros anos de estudo escolar, foi matriculado na Escola de Belas Artes de Valencia, aos 14 anos, e passou a frequentar o círculo dos pintores que se reuniam em volta do ateliê de Francisco Domingo Marqués (1842-1920), de quem José Benlliure foi aluno.

"El tío José de Villar del Arzobispo",
1919, óleo sobre tela, 79 x 66 cm
Com 16 anos de idade apenas pintou os retratos dos filhos do rei Amadeo I de Saboya. Logo em seguida, com 17 anos, foi para Paris com um bolsa de estudos que ganhou da prefeitura de Valencia. Em 1876, com 21 anos de idade, ganhou uma medalha na Exposição Nacional de Artes com a obra “El descanso en la marcha” (ver abaixo). No mesmo ano, termina seus estudos na Escola de Belas Artes de Valencia.

Casou-se em 1880 com María Ortiz Fullana e muda-se para a cidade de Roma, na Itália, onde nasceram seus quatro filhos. Mais tarde, muda-se para a cidade de Assis, no norte da Itália. Em 1888 viaja pelo norte da África, passando por Argélia e Marrocos, onde se deixou influenciar pela cultura exótica e orientalista, o que era moda naquela época. Diversos outros artistas também tiveram esta influência, como Eugène Delacroix e Paul Gauguin, entre outros.

Em 1904 foi nomeado diretor da Academia de Belas Artes de Espanha em Roma, cargo que deixa em 1912 para se mudar definitivamente para sua terra, Valencia.

"El tío Maties", óleo sobre tela,
34 x 43 cm, 1900
Em 1919 foi nomeado presidente honorário do Círculo de Belas Artes e da Juventude Artística Valenciana, assim como “delegado regio” de Belas Artes daquela cidade. Em 1922, tornou-se diretor do Museu de Belas Artes e, de 1930 em diante, passou a ser o diretor da Real Academia de Belas Artes. 

José Benlliure y Gil foi bastante reconhecido em vida e muito respeitado em sua cidade, que lhe deu, em 1924, o título de “hijo predileto”. Ele também foi membro da prestigiada Academia Real de Belas Artes San Fernando de Madrid, onde estudaram grandes pintores espanhois.

José Benlliure y Gil faleceu no dia 5 de abril de 1937, deixando uma obra em que retratou os costumes do povo valenciano, assim como quadros com temas religiosos e retratos de eclesiásticos e burgueses. 

Benlliure tinha um estilo muito próprio e dava o mesmo tratamento a temas os mais simples e os mais grandiosos.

Graças a seu trabalho de documentar em pintura a vida dos valencianos, hoje é possível ver como era a vida naqueles tempos em sua região. Em suas telas aparecem personagens locais como “Tio Andreu de Rocafort” e o “Tio José de Villar del Arzobispo”, além de outros quadros.


El descanso en la marcha, 1876, óleo sobre tela, 118 x 168 cm
Autorretrato, José Benlliure y Gil
El tio Andreu de Rocafort, 99 x 68 cm, óleo sobre tela
Sacerdote revestido, óleo sobre tela, 85 x 63 cm
Na missa, 96 x 146 cm, óleo sobre tela
Retrato de Maria Ortiz em hábito de Monja, guache sobre cartão, 1887, 32 x 30 cm