Mostrando postagens com marcador Rembrandt. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Rembrandt. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 9 de julho de 2012

O bóson de Higgs e a Arte pictórica: faça-se a Luz!

No princípio, uma singularidade criou os céus e a terra. A terra estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo. Uma explosão inicial detonou a luz! E a luz foi feita. E tudo foi criado a partir de então.


No último dia 4 de julho, noite memorável, uma notícia se espalhou pelos quatro cantos do mundo. E nem foi por causa da Libertadores. Nem foi por causa do lançamento do meu livro, evento muito importante. Mas foi porque a Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (CERN) anunciou, em Genebra, a comprovação da existência de uma partícula, o chamado Bóson de Higgs, fundamental para que se possa entender a estrutura básica da matéria.


Essa partícula subatômica foi detectada dentro do Large Hadron Collider (LHC), o super-acelerador de partículas do CERN com 27 km de extensão, que fica na fronteira entre a Suíça e a França. E o bóson de Higgs foi fotografado pela maior câmera fotográfica do mundo. Sabemos que um dos objetivos desse grande acelerador de partículas subatômicas é o de recriar as condições que formaram o universo, a partir do modelo do Big Bang. O “Big Bang” é uma teoria científica que fala que o universo nasceu a partir da explosão de um ponto infinitesimal que se expandiu e criou o Espaço, o Tempo e a Massa existente no universo. E a nós, aos animais e às estrelas! Isso há 14/15 bilhões de anos atrás.


O bóson de Higgs foi confirmado com uma certeza de 99,99%, segundo relatório dos cientistas do CERN. Ela está associada a um 'campo' com o qual as outras partículas interagem (prótons, nêutrons, elétrons, quarks...), ganhando matéria. A interação entre as partículas subatômicas geram massa, e a massa, matéria. Mas há as que não interagem com o campo de Higgs, e essas não possuem massa. Estão destinadas a movimentar-se para sempre na velocidade da luz e são chamadas de Fótons, a unidade básica da luz.

O físico nuclear Peter Higgs
Peter Higgs, um tímido e calmo senhor de 83 anos, esperou quase 50 anos para ver sua tese comprovada, e apenas disse: “É agradável ter razão de vez em quando”. Ele é um físico escocês, atualmente professor emérito da Universidade de Edimburgo. Em 1964, Higgs previu teoricamente a existência do bóson que levaria seu nome, a também chamada “partícula de Deus”. Sua intuição dizia que deveria haver um campo de forças parecido com uma espécie de cola onde as partículas estariam imersas e em interação.


Essa tese deu início a uma verdadeira escola científica, unindo inúmeros físicos que apostavam na ideia de Peter Higgs. Todo um edifício teórico sobre a forma como as partículas criam massa e gera nosso universo visível surgiu a partir daí. Já está se dizendo que essa é uma das descobertas científicas mais importantes dos últimos 40 anos.


A descoberta do bóson de Higgs foi comemorada como a coroação de décadas de estudo de milhares de físicos e matemáticos que focaram seus esforços e suas vidas para entender de onde vem tudo o que existe, uma das grandes questões teóricas que o homem tenta resolver e que movem a ciência há séculos.


A longa espera terminou nesta quarta-feira, dia 4 de julho.

Retrato feito por Franz Hals
Mas o que tudo isso tem a ver com Arte? O que a descoberta de um físico nuclear escocês pode gerar de reflexões sobre a arte pictórica? E que lições podemos tirar daí?


Começando pela última pergunta. Durante 58 anos um homem levou sua vida de professor universitário e pesquisador, insistindo numa teoria. Sua intuição dizia que ele poderia estar certo, o que acabou sendo confirmado. Peter Higgs, como físico de altas energias, sabe que a nossa noção de tempo, o tempo linear, do cotidiano, é pobre. Num universo de 14 bilhões de anos, onde distâncias intergalácticas são medidas em anos-luz, 48 anos são nada. Quase nada também no movimento da história, mesmo que muito para uma vida humana.


Para a vida humana do sujeito que está agindo na superficialidade pragmática do dia a dia, 48 anos de estudo, de espera por algo, é quase insuportável. Mas há os Peter Higgs da vida, aqueles que pacientemente constroem tijolo por tijolo a sua obra. Debruçado sobre seus estudos, esses sujeitos não pensam em si enquanto egos a serem colocados acima de tudo, mas enquanto se esquecem de si e mergulham sobre seus suportes técnicos (ou suas teorias) vão simultaneamente se moldando na modelagem de seu objeto de estudo. Construir um edifício teórico não acontece do dia para a noite. Assim como desenhar e pintar não são dons milagrosos, mas frutos de anos e anos de dedicação, de esforço teórico e prático.

Alegoria da pintura, de Jan Vermeer
Mas o modo de vida deste tempo atual não suporta grandes esperas, e repudia aquilo que não seja instantâneo. Por isso, de vez em quando é necessário que nos calemos diante de um evento como este: a descoberta de uma partícula que gera a massa do universo e que nos remete às grandiosidades que muitas vezes esquecemos...


Diante da descoberta do bóson de Higgs, dá vontade de fazer eco ao que ele disse no dia 4 de julho: “É agradável ter razão de vez em quando”.


Vermeer demorava muito para pintar uma tela. Ele trabalhava lentamente e com muita meticulosidade, enquanto combinava cores de forma inimitável, perseguindo o movimento da luz que vai gerando as sombras, os espaços, a materialidade. Suas bordas não tinham borda. Elas se derramavam pictoricamente fazendo com que todos os objetos e figuras de seus quadros interagissem como o fazem as partículas subatômicas no Campo de Higgs. Com Vermeer, nada estaria mais separado. Quando fiz uma cópia do “Moça com brinco de pérola” em 2011, para mim foi uma descoberta maravilhosa: não há bordas duras em Vermeer, elas são suaves, quase nem existem, há interação pura entre elementos e cores do quadro.

Autorretrato, de Rembrandt
Rembrandt foi outro pintor holandês obcecado pelo entendimento de como a luz se derrama nas coisas, criando as sombras. Também ele pintava, não as coisas que seriam vistas por qualquer ser humano comum, mas pintava as relações entre as coisas, com a perfeita consciência de que a luz cria massas densas, matéria, que ele executava a partir de pinceladas pastosas, em camadas de massas com valores medidos pelos movimentos da luz. E nada de linhas. Massas. “Quando Rembrandt pinta um nu sobre um fundo escuro, a luminosidade do corpo parece emanar naturalmente do escuro do espaço”, diz Heinrich Wöllflin em Conceitos fundamentais de história da arte.


Caravaggio queria criar uma nova relação entre o espaço, as coisas e as figuras. Sua obsessão era a realidade. Como afirma Roberto Longhi, para ele “uma pedra não é menos importante do que um santo, porque não é menos real.” Na configuração dos santos e das pedras, prótons, nêutrons e elétrons interagem entre si e com o Bóson de Higgs, que lhes dão massa. Os mesmos componentes químicos que fazem um santo, fazem uma pedra. E a mesma luz que atravessa a mão estendida de Jesus se espraia nos rostos dos pecadores publicanos em seu quadro “O chamamento de Mateus”. Caravaggio queria representar os volumes que via em termos de planos de luz, com o furor de quem queria “alcançar o real”, como diz Longhi.

Detalhe: autorretrato em
As Meninas, de Velázquez
Franz Hals, com seu pincel inquieto, fazia com que suas obras exigissem a distância espacial para serem assimiladas, pois quando olhadas muito de perto, viam-se manchas, massas em correspondência, movimentos de cores e de valores que inebriavam a vista, como partículas de cores em interação eletromagnética se fundindo para configurar formas e figuras. Nada pode ser visto isoladamente, tudo está em relação, manchas, massas, cores, valores. Assim como ele, Van Dyck; assim como Van Dyck, Rembrandt; assim como Rembrandt, Velázquez.


Em Velázquez, cabelos, vestimentas, figuras, não são cabelos, vestimentas, figuras; são substâncias, são fenômenos luminosos, pictóricos. As massas claras e escuras se interpenetram. A ênfase, diz Wöllflin, está na luz. “Todos os contornos são imprecisos, as superfícies se furtam à tangibilidade e a luz flui livremente, como a correnteza que rompeu o dique”. Como a explosão cósmica inicial, que gerou o espaço, o tempo, a estrela, o planeta, o homem, o gato, a formiga, o pintor, a tela, o cavalete. Massas de matéria navegam imersas na escuridão do cosmos, alcançadas pela luz que desvenda a matéria, e o mundo, e tudo o que existe. Que existe por causa do bóson de Higgs.


Na arte pictórica, o universo está em interação permanente. Tudo interage com tudo todo o tempo. Nada está separado de nada. A harmonia do conjunto é gestada a partir desse aparente caos que confunde as mentes apressadas que olharem as telas de Franz Hals de perto.


Quando o artista norte-americano David Leffel (1931) viu as obras de Rembrandt pela primeira vez, ficou tão impressionado que resolveu dirigir seus estudos para os efeitos da luz sobre a realidade observada. E passou a ensinar que um pintor não pinta coisas, pinta a luz nas coisas. O artista pictórico não vê o mundo em detalhes separados, mas vê massas, planos, dimensões. Ele não pensa, quando vê um rosto humano, em termos de “olhos”, “nariz”, “boca”. Vê jogos de luz e sombra e massas em movimento. Em interação. É exatamente esse jogo das massas, no movimento entre a luz e a sombra, que vai dando materialidade ao quadro. Como as partículas vão se enchendo de Massa através da interação com o bóson de Higgs. E vão criando o mundo e tudo o que existe.


“É agradável ter razão de vez em quando”. Viva Higgs!

realismo
Detalhe de autorretrato, de David Leffel 

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Antes que o ano acabe...

Estudo em pastel preto&branco sobre uma pintura de Rembrandt - dez/2011

Rainer Maria Rilke, poeta e escritor de língua alemã, nascido em Praga (atual República Tcheca) no final do século XIX (1875), certa vez recebeu uma carta de um jovem poeta, acompanhada de um poema, para o qual ele solicitava uma opinião sincera de Rilke. Queria saber se era de fato um criador, um artista.


Estudo com pastel em tons de cinza,
dezembro/2011
Lembrei disso ao terminar este estudo acima, em pastel, sobre um auto-retrato de Rembrandt. Após dias observando a forma de trabalhar daquele maravilhoso pintor holandês, tentando seguir em sua direção, eu pegava no pastel sentindo, alternadamente, a dor e a delícia que toma conta de mim em minhas tentativas de representação pictórica do mundo. Há um sofrimento inerente a esse processo, ao qual me sinto incapaz de fugir: apanho muito, muito enquanto desenho e pinto, nessas preliminares que antecedem o surgimento da figura que quero ver surgir no meu cavalete. Sofro se não alcanço o ponto certo, o tom certo, o valor certo. Sofro se há mais sombra do que devia; se uma certa sutileza foge de mim, se uma massa muito ampla se transforma numa espécie de bicho selvagem que não domino e que me domina; sofro se minha mão oscila, treme, fica insegura quando o toque deve ser o mais leve ou o mais pesado naquele ponto... Mas a delícia vem... Após horas de trabalho, suor, tensão, angústia, a figura vem se mostrando ali na minha frente, com uma harmonia que parece inacreditável, um equilíbrio ainda um tanto quanto incerto, mas que me mostra uma possibilidade de crescimento maior a partir dali... Parece que se abre um mundo imenso de possibilidades novas, uma coisa que às vezes é tão grande, tão grande que parece muito maior do que eu possa transmitir... 


Desenho desde o jardim de infância. Cresci desenhando. Minha vida tem sido em torno do desenho, mesmo que durante anos eu tenha me voltado para o desenho gráfico virtual, com o computador. Mas o desenho está sempre – esteve sempre – a minha vida inteira ali à minha espreita, quando eu pensava que já não precisava mais dele e que o computador estava aí para acelerar todos os processos... Ledo engano. O computador serve a outro tipo de produção. Jamais vai substituir o traço incerto, oscilante, denunciante da alma humana, da mão criadora do mundo. Uma máquina não substitui a alma e o coração do artista...


Olhei de novo para meu estudo sobre Rembrandt. O que ele, Rembrandt, acharia disso? Será que ficaria satisfeito com meu trabalho? Como me avaliaria? Lembrei de Rilke. Peguei o livro na minha estante “Cartas a um jovem poeta”. Li a primeira carta, que já tinha lido antes outras tantas vezes.


Cópia inacabada em óleo da obra "Moça com
brinco de pérola" de Jan Vermeer - outubro/2011
Estavam lá estes dois trechos que mais me tocam: 


 - o primeiro, que fala da dificuldade que temos de traduzir o real que vemos e experimentamos. As palavras faltam. As palavras falham. As palavras são ainda poucas, confusas, estranhas. Há algo no Real que continua indizível. E até invisível para quem não sabe Ver. Fala Rilke: 


“As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte, — seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera.”


A segunda parte da carta, provoca o artista, interroga-o: você consegue viver sem desenhar, pintar, escrever? Não??? Então transforme sua vida na busca disso do qual você não consegue fugir. Fale, Rilke:


“Pergunta se os seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem — usando da licença que me deu de aconselhá-lo — peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, — ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite: "Sou mesmo forçado a escrever?” Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples "sou", então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde.” 


O pequeno Arlequim e sua mãe, pastel colorido, novembro/2011

terça-feira, 8 de novembro de 2011

As resistências da Arte

Uma rua de Paris, entardecendo no outono de 2011 
Quando se anda pelas ruas com um pouco de atenção, observa-se que passamos, de vez em quando, em calçadas de galerias de arte. Paramos para observar através das vitrines; ou das portas abertas. Na maioria das vezes basta uma olhada de fora, da calçada mesmo, para ter um quadro dos quadros expostos ali. São pinturas de vários estilos; pinturas de paisagem, pinturas urbanas, cenas de gênero, figurativas, até mesmo abstratas. Pinturas para todos os gostos.


Há lugar para todos em Paris. Até para os pintores menores de Montmartre, que ganham sua vida pintando retratos de turistas na Place du Tertre, lugar onde, em 1790 foi instalada a primeira prefeitura da "Commune" de Montmartre. Todos os domingos à tarde eles montam seus cavaletes, suas telas e pincéis em plena praça e ficam ali, expondo seu trabalho aos milhares de turistas que visitam aquele bairro. São pinturas, desenhos, croquis de Paris. Mas os turistas também posam para eles, que cobram uns 30 euros por retrato feito à carvão, pastel ou grafite.


Galeria Roussard, Montmartre, Paris
Mas nas galerias de arte de Montmartre, como a Galérie Roussard (que existe desde 1945), podemos encontrar pinturas não só de artistas atuais, mas de artistas do passado, como Pierre Bonnard (1867-1947) ou do aquarelista Roger Bertin (1915-2003). Pinturas, pinturas, pinturas. É preciso ressaltar que a Pìntura continua em alta em Montmartre e no mundo todo, contra aqueles que apregoam que a pintura já morreu, e que o lance do momento - e da moda - é a já absurdamente cansativa arte conceitual...


Nos salões dos Museus, multidões se espremem, se esticam nas pontas dos pés para ver as obras de arte que marcam a nossa história e a nossa vida cultural. Se admiram diante de telas  pintadas por verdadeiros gênios da humanidade, homens e mulheres que alcançaram um tal domínio de seu ofício que nos fazem parar estáticos, e emocionados! Até hoje, séculos depois de pintada, uma tela de Rembrandt arranca lágrimas de olhos mais sensíveis! As filas em volta desses museus alcançam as ruas; filas para comprar os bilhetes de entrada, filas para entrar... E filas para andar dentro desses museus. Dá para sentir a ansiedade das pessoas à nossa volta; é quase possível ouvir, através do olhar que penetra numa pintura, as emoções que vão nas almas de muitos desses que vão a esses lugares ao encontro das Belas Artes.


Multidões em busca de ver Arte e, na Arte, a História




É assim em Paris, Madrid, Barcelona, Bruxelas, Berlim, Amsterdam, Haia, Londres... É assim até nos EUA. Mas não parece ser assim em São Paulo, onde o "conceito" tornado cânone, de origem uspiana e faapiana, domina a cena artística local e impõe suas regras. E sua homogeneidade artística pobre.


Capa do livro de Domecq. A
ilustração da capa representa aquele
que produz "arte contemporânea" e
diz: "Eu não sei o que eu faço"
Falando nisso, encontrei um livro num sebo às margens do rio Sena: o título "Artistes sans art?" (Artistas sem arte?) me chamou a atenção. O autor é Jean-Philippe Domecq, escritor e ensaísta, que também publicou recentemente um outro livro, o "Misère de l'Art" (Miséria da Arte). Mal comecei a ler o primeiro, já deu para perceber que ele se junta a um outro autor francês - Jean Clair, ex-diretor do Museu Picasso de Paris - para fazer um contraponto teórico ao domínio midiático da chamada "Arte Contemporânea". Domecq diz, numa entrevista a um site francês, que essa "arte contemporânea" é, na verdade, o sintoma de "uma crise narcísica única da nossa história cultural". Ele afirma que não tem nenhuma obrigação de cultuar mitos atuais como Andy Warhol, e menos ainda aqueles que especulam com a arte atual que são capazes de "vender até vento", sustentados por uma espécie de intelectual que ele chama de "escroque", porque comete todo tipo de "fraude intelectual". Domecq - corajoso como Jean Clair, e como Affonso Romano aqui no Brasil - se dispõe à uma briga com os postulantes do credo contemporâneo que, diz ele, fazem de tudo para interditar o debate intelectual a respeito do assunto, e divide maniqueistamente o mundo da arte em dois: os que amam Marcel Duchamp e Andy Warhol (entre outros) e "os outros": que eles chamam de "reacionários", de "conservadores" porque amam as Belas Artes; e que estão com essas multidões que insistem em ir ver pintura e escultura nos museus do mundo! Mas aqueles lá não fazem mesmo arte para essas multidões! Fazem arte para especular, a arte dos iniciados em seus conceitos...


Entrei no Museu Pompidou, o Museu de Arte Moderna de Paris. Fila gigante para ver a exposição do pintor Edward Munch. Era difícil ver os quadros nas salas repletas de gente. Mas vi, observei, anotei, fotografei. Saindo de lá fui ver as salas dedicadas ao século XX. Mais dezenas de pessoas se aglomerando em frente às pinturas de Picasso, Fernand Léger, Matisse, Cézanne, André Fougeron... Cheguei, após horas dentro do Museu Pompidou, às salas da "arte contemporânea": havia mais moscas sobrevoando os objetos em seus vôos rasantes, do que gente! A famosa "A Fonte" (uma delas, porque Marcel Duchamp espertamente fez várias cópias) estava entregue aos fantasmas conceituais... Ninguém parado frente a ela, admirando aquele penico milionário! E solitário.


Manchas pretas para quem quiser apreciar,
no Museu Pompidou. Mas não tinha ninguém
- naquele momento - apreciando...
As outras "obras" dessa ala mais pareciam as de um parque de diversão. Aliás, faz algum sentido: é divertido atravessar, mexer, brincar com alguma coisa daqueles objetos expostos como arte. Penduricalhos - como uma pá de Duchamp -, amebas coloridas, manchas pretas, repetições exaustivas de tentativas do passado (de Malevitch, por exemplo), roupas velhas manchadas incluindo uma calça pendurada num varal, metais retorcidos e colorizados fazendo o papel de esculturas, poemas sem sentido esticados ou colados na parede... E NINGUÉM... ninguém andava por aquelas salas, a não ser um, ou dois, ou três, que passavam rápidos por cada coisa daquela. E eu, que estava lá com a masoquista intenção de comprovar que há um vazio sem fim nessa "arte" mercadológica atual!


Mas vi - posso dizer - dezenas de pessoas em frente às pinturas dos museus que visitei, com seus cadernos de desenho à mão, estudando, desenhando, copiando, tentando entender como os grandes pintores trabalhavam. Também vi nas ruas de Paris aqueles tais artistas "conservadores" com seu material de trabalho, desenhando e pintando. E vi, dentro do Louvre, dois pintores com seus cavaletes, copiando telas. Uma delas, o "Pequeno Mendigo" de José de Ribera.


Também vi cerca de 40 pessoas desenhando e pintando, nas duas sessões de que participei no Atelier de la Grande Chaumière, fazendo estudos, com uma modelo posando em frente a nós. Nós, esses "atrasados" que gostamos de desenhar e pintar. Nós, esses "conservadores", que consideramos fundamental nos debruçar sobre quem estudou muito no passado e que nos traz o acúmulo de suas pesquisas individuais sobre Luz, sobre Cor, sobre a química dos materiais. Porque nós, esses "artistas atrasados" não buscamos reinventar a roda! E estamos bem distantes mesmo de inventar "conceitos" de rodas...


Porque tem - entre milhares de outros pelo mundo - o Atelier Vermeer, onde duas pintoras estudam e ensinam baseadas nas telas de quem realmente sabia o que fazia: Rembrandt, Vermeer, Caravaggio, Ticiano, Rubens, Velazquez, Delacroix, Ingres, Goya, Michelângelo, Da Vinci, Botticelli, Courbet... a lista é imensa! Diante destes, multidões se espremem em todos os museus do mundo!


E também porque tem em São Paulo, aqui no Brasil, um Atelier de Arte Realista dirigido pelo pintor Maurício Takiguthi que ensina, a dezenas de seus alunos, os métodos tradicionais de desenho e pintura. Muito desenho, muito estudo individual e coletivo, muito treino técnico e teórico da relação entre os espaços, dos valores, das massas, da Luz. Tudo isto em referência com a realidade, com a inesgotabilidade do Real. Lá estou eu também, há quase três anos, num estudo intenso e muito prazeroso, à moda dos mestres. E, poderíamos dizer, à moda do método científico de estudo.


Mas ano que vem, aqui no Brasil,  vão se espremer as multidões brasileiras: Caravaggio vem ao Brasil (Belo Horizonte e São Paulo), assim como alguns de seus seguidores, entre os quais um dos maiores: José de Ribera, pintor espanhol. Porque nem isso vai conseguir deixar de ver, essa elitezinha local que desde o passado insiste, em sua cabecinha colonizada, em que seria a "engendradora" da "modernidade" (pós-moderna hoje). Sim, porque a "arte" dessa meia dúzia, vai continuar para a meia dúzia que assim deseja.


A grande Arte, esta diante da qual todos silenciam, continuará atraindo a imensa maioria também do povo brasileiro que possa ir vê-la aonde for, porque, nela, ele se espelha, porque ela lhe diz o indizível, lhe traduz o indecifrável, lhe exprime o inexprimível...


Como este olhar, de Rembrandt, espelho do nosso próprio olhar!

Autoretrato, Rembrandt

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Franz Hals, Rembrandt, Vermeer: mestres holandeses em busca da Luz

Vista de Delft, Jan Vermeer, óleo sobre tela, 98,5×115,7cm, 1660-61



Sintéticos; estudo minucioso e sistemático; pinceladas enérgicas; marcas evidentes do pensamento pictórico; soberano virtuosismo da técnica; domínio pleno do pincel; violentos contrastes de claro-escuro; apaixonada busca do movimento da Luz – assim poderíamos sintetizar o que foram esses três grandes mestres barrocos da pintura holandesa: Hals, Rembrandt, Vermeer.

O estilo Barroco, iniciado ainda na Itália renascentista, se espalhou por diversos países, e era o “espelho dos acontecimentos sociais, políticos, científicos, culturais e religiosos que agitaram profundamente o mundo europeu”, como fala a introdução do livro Barroco, da Visual Encyclopedia of Art. Acrescenta que a corrente inaugurada por Caravaggio impôs-se como uma revolucionária forma naturalista de pintar, e ele – Caravaggio – teve uma profunda influência sobre a arte holandesa, especialmente sobre os três pintores nos quais nos debruçamos neste texto. Havia diversos pintores "caravaggescos" em Utrecht, Holanda, que teriam trazido o estilo do mestre Caravaggio para os Países Baixos.

Após a Reforma protestante, iniciada pelos idos do século XVI com a publicação das 95 teses de Martinho Lutero, que se rebelava contra a doutrina da igreja católica, a Europa foi dividida, e pequenos países mais ao norte, como a Holanda, sofreram os efeitos dessa divisão. A Bélgica permaneceu católica, mas a região dos Países Baixos, que estavam sob o domínio de governantes católicos espanhóis, resolveu se rebelar contra seus governantes e sua religião oficial, aderindo ao Protestantismo.


Franz Hals: Dois meninos cantando
1625, óleo sobre tela, 76x52cm
Essa tendência “protestante” e rebelde foi evidente entre os pintores dos Países Baixos, como atesta Gombrich em seu livro A História da Arte. Lá, antes da Reforma, os pintores eram forçados a pintar sob a censura de cunho religioso. Com a Reforma, a pintura de retratos se desenvolveu. Mercadores e burgueses queriam ser pintados e levar seus retratos à posteridade, assim como agrupamentos sociais diversos, que solicitavam retratos em grupo. Isso garantia trabalho e condições de vida melhores aos pintores.

Nessa Holanda livre, surgem estes mestres. Eles seguiram o caminho dado pela arte barroca, que teve uma rápida difusão por causa “da própria natureza dos estilos de arte, que sempre refletem ou traduzem as constantes transformações históricas e sociais por que estão passando as coletividades humanas”, na observação de Carlos Cavalcanti em seu livro Conheça os Estilos de Pintura.

As forças econômicas e sociais se desenvolviam na Holanda protestante. Esse país teve um crescimento grande do comércio, num momento em que a burguesia industrial e mercantil ascendia na Europa, tornava-se mais rica e poderosa, preparando-se para tomar o poder, o que aconteceu com as revoluções após o século XVIII. O Barroco, uma forma de arte onde o movimento predomina, era a representação do próprio dinamismo da sociedade que começava a surgir a partir da ascensão da burguesia.

Em meios às grandes mudanças que ocorriam desde o início do século XVII, vivem Frans Hals, Rembrandt  van Rijn e Johannes Vermeer.

—-

FRANZ HALS


Franz Hals: Palhaço com o alaúde, 1623-1624,
óleo sobre tela, 70x62cm Museu do Louvre, Paris


Ele nasceu por volta de 1580 e era da mesma geração de Rubens, o pintor belga. Seus pais tinham abandonado o sul da região, por terem aderido ao protestantismo, e foram parar na cidade holandesa de Haarlem. Gombrich diz que se sabe muito pouco sobre a vida de Halz, a não ser que teve uma existência precária, sempre endividado.

Mas sua pintura é leve e é livre. A burguesia rica de Haarlem, onde ele vivia, queria ser pintada, queria celebrar suas conquistas cívicas e militares. Frans Hals era o pintor perfeito para representar esse espírito da época, onde a vida parecia boa. Ele pintava homens e mulheres cheios de vida, sorridentes. Nada em sua pintura tem rigidez; muito pelo contrário, séculos antes do Impressionismo ele deu vigorosas pinceladas sintéticas que definiam o que precisava ser definido em uma pintura, como podemos observar claramente em suas telas.


Franz Hals: Grupo dos membros do Hospital Santa Elisabeth de Haarlem,
1641, óleo sobre tela, 153×252 cm



Mas Hals pintou muitos retratos de pessoas das mais diferentes classes sociais: burgueses ricos, mercadores, militares, comerciantes, advogados, funcionários públicos, músicos, cantores de rua, pescadores que “renderam muito pouco dinheiro a Hals e sua família”, como observa Gombrich… Mas Hals dava a esses rostos o tratamento do velho mestre Caravaggio, ou seja, eles eram realistas. Ele sabia como usar a Luz como um dos valores fundamentais para dar expressão às suas pinturas. Seus retratos apresentam pessoas vivas, humanas, em seus olhares cheios de vida e simpatia. Franz Hals teria se deixado influenciar pelos pintores caravaggescos de Utrecht, quando ainda era um estudante no atelier de Carel Van Mander.

Dá a impressão, ao ver algum de seus quadros, que a pessoa que vemos lá parece ser de alguma forma bem familiar a nós. Porque Frans Hals tinha essa capacidade de captar o momento expressivo, e eternizar aquilo, resolvendo em poucas pinceladas, que podem ser perfeitamente observadas.


Franz Hals: A cigana, 1628-30, 58x52cm, 
óleo sobre tela, Museu do Louvre, Paris
Heinrich Wölfflin, estudioso alemão, diz em seu livro Conceitos Fundamentas de História da Arte que esse tipo de pintura feita por Hals não pretende que o caminho do pincel pareça invisível, quando, com isso, perderíamos “o melhor” da tela. Não, essas pinceladas enérgicas e evidentes podem dar ao observador a possibilidade de acompanhar o “pensamento” pictórico do artista e com isso podemos medir o arrojo e a perfeição com que o artista dominava sua arte.

Era comum, entre os pintores da época, inclusive Rubens, compor a pose de seus retratados para dar-lhes dignidade. Mas Franz Hals não; ele colhia aquele momento em pinceladas audaciosas, pintando um cabelo despenteado, uma manga enrugada, um rosto marcado por uma expressão momentânea.

Na velhice, pobre, Frans Hals passou a receber uma pensão do Asilo Municipal de Velhos, cuja Junta foi pintada por ele. Morreu já bem velhinho, com mais de 80 anos de idade.

—-

REMBRANDT VAN RIJN


Rembrandt: Autorretrato, 1658


Nasceu em 1606, sete anos após dois outros grandes pintores: Van Dyck, holandês, e Velázquez, espanhol. Era natural de Leiden, cidade que abrigava uma universidade. Conta-se que ainda criança ele abandonou os estudos para começar seu aprendizado como pintor.

Com 25 anos mudou-se para Amsterdam, onde estudou com Pieter Lastman, considerado o maior pintor de cenas históricas da Holanda. Lastman tinha vivido uns anos na Itália e havia conhecido as obras de Caravaggio. Com esses conhecimentos, Rembrandt voltou para Leiden onde abriu um atelier. Começou a sequencia de autorretratos que ele fez. Conta-se que ele usava dois espelhos para isso, e contorcia o rosto, criando expressões que ele pintava, em seu estudo pessoal. 

Também se sabe que ele dava grande importância ao teatro, e estimulava seus alunos a frequentarem eventos teatrais, para que estudassem os movimentos e as expressões dos atores em cena. Também diz-se que ele era um homem de profundas reflexões e sempre questionava o papel do pintor no mundo.

Rembrandt: Filósofo em meditação,
óleo sobre tela, 1632
Quando voltou a morar em Amsterdam, construiu rapidamente uma nova vida: tornou-se pintor de retratos, casou com uma moça rica, comprou uma casa, virou colecionador de obras de arte. Mas sua esposa morreu e ele, endividado, viu sua casa ser tomada pelos credores, assim como sua coleção de quadros.

Rembrandt pintou muitos autorretratos durante a sua vida, mostrando um rosto de “um ser humano real”, como observa Gombrich em A História da Arte. Não há sinal de que fizesse pose, ou que demonstrasse alguma vaidade com o próprio retrato, mas – continua Gombrich – “apenas o olhar penetrante de um pintor que examina atentamente suas próprias feições, sempre disposto a aprender mais e mais sobre os segredos do rosto humano”. Ele considerava uma pintura acabada “quando seu objetivo tinha sido alcançado”.


Rembrandt: Homem do capacete de ouro,
Gemäldegalerie, Berlim
Gombrich ressalta que, no interesse profundo que Rembrandt possuía em apreender a alma humana, “como Shakespeare, ele era capaz, por assim dizer, de penetrar fundo na pele de todos os tipos de homens, e saber como se comportariam em qualquer situação”.

Ele era sobretudo humano. As figuras representadas por ele são pessoas reais, com sentimentos que podem ser adivinhados. Ele era capaz de ver o mundo cotidiano da forma extraordinária que só o olhar aguçado do pintor possui. Um mundo que ele traduzia em massas de valores, de cores. Era o que ele fazia, assim como a escola que vinha desde Caravaggio: buscava a Luz, da qual foi mestre na observação, obtendo resultados que o colocam entre os maiores do mundo. 

Com isso, do fundo de telas onde o marron escuro predomina, surge uma figura humana, iluminada, grandiosa, muitas vezes salpicada com o dourado da luz que inunda tudo o que precisa ser inundado. A dramaticidade de muitos de seus retratos, inclusive seus próprio autorretratos, é fornecida diretamente pela maestria com que ele dominava a gradação necessária da luz para trazer um rosto à vida, à observação.

Rembrandt, à “semelhança de Caravaggio, também atribuía à verdade e à franqueza um valor mais alto do que à harmonia e à beleza”. Ele, como outros pintores holandeses do século XVII, diz Gombrich, descobriram “a beleza pura do mundo visível”. Eles já não estavam mais subordinados a pintar temas grandiosos, ou figuras proeminentes. A liberdade que a religião protestante lhes dava abria para eles possibilidades infinitas, a partir da simples percepção do mundo real.

Rembrandt, mesmo velho e empobrecido, continuava buscando novas formas de expressão em sua pintura. Morreu em 1669. Gérard de Lairesse, outro pintor holandês do período disse de Rembrandt: “Ele era capaz de fazer tudo o que a arte e o pincel podem realizar”.


A noiva judia, Rembrandt, 1665-69, óleo sobre tela
—-

JAN VERMEER VAN DELFT


Moça com brinco de pérola, 1665,
Mauritshuis, Haia, Holanda
Ele nasceu em 1632 e quase nada se sabe de sua vida. Foi o segundo filho de Reynier Jansz, um comerciante de seda de Amsterdam. Depois que se casou, mudou-se para Delft, onde nasceu Vermeer. Lá, seu pai acabou trabalhando como negociante de arte e, com isso, mantinha relações com alguns pintores como Balthasar van der Ast, Pieter Steenwyck e Pieter Groenewegen. Eles podem ter sido a primeira influência recebida por Vermeer, que foi admitido como mestre na Guilda de São Lucas em 1653, uma espécie de organização de pintores, vidreiros e comerciantes de arte, além de outros profissionais artesãos. Sabe-se que para ser aceito nessa Guilda, a pessoa tinha que ter passado seis anos como aprendiz de algum artista reconhecido. Também fala-se que ele teria sido aluno de Carel Fabricius, um dos aprendizes de Rembrandt.

O Geógrafo, 1668-69
Vermeer casou-se em 1653 com Catharina Bolnes, cujos pais tinham uma boa situação financeira. Vermeer era calvinista e sua esposa católica. Por causa da rejeição da mãe dela ao casamento, fala-se que ele teria se convertido ao catolicismo e, em certo sentido, se rendido aos costumes da família de Catharina, com quem logo tiveram que ir morar. O casal teve 15 filhos, sendo que quatro morreram ainda bem novos.

Mas sabe-se muito pouco de sua vida e, olhando para suas pinturas o problema de saber quem era esse homem é ainda mais acentuado. Ele produziu muito pouco, em torno de 35 quadros, que ele pintava de forma lenta, metódica. Possuía uma incrível capacidade para sugerir formas e texturas, comunicando o máximo com o mínimo de pinceladas.

Sua metódica postura de estudioso mostrava a sua verdadeira paixão pelos efeitos provocados pela luz. “A característica mais notável de Vermeer é a qualidade da luz”, disse o crítico de arte francês do século XIX, Théophile Thoré.
Mas seu trabalho como pintor, nem de longe era suficiente para o sustento de sua grande família. Por isso, ele tinha uma segunda ocupação que parece ter sido a de negociante de arte, como seu pai, ganhando seu sustento vendendo os quadros dos outros mais do que os seus próprios. Mesmo assim ele sempre que precisava preencher algum formulário que lhe indagava sobre sua profissão, não titubeava e escrevia: “pintor”.


A carta de amor, 1669-70
A cada ano que passava, a situação de vida de Vermeer e sua família piorava. Tinha que recorrer frequentemente a empréstimos, o que aumentava mais suas dívidas. Em 1672 estourou a guerra entre a Holanda e a França, sendo que os soldados franceses avançavam em direção ao norte da Holanda. Os holandeses, para resistir à invasão francesa, romperam os diques, e extensas áreas de terra foram alagadas, incluindo uma parte de terra que pertencia à família de Catharina e que era uma fonte regular de renda para os Vermeer. Para piorar, ele não conseguia vender mais nenhum quadro. Anos depois sua esposa disse que por causa dessa guerra e das despesas grandes da família, eles se endividaram imensamente e com isso Jan Vermeer “caiu numa tal depressão e letargia que perdeu a saúde no espaço de um dia e meio e morreu”. Foi enterrado no dia 15 de dezembro de 1675, numa sepultura familiar, em Delft, cidade que ele nunca deixou.

Parece que, ainda em vida, Vermeer era muito conhecido pelos seus contemporâneos e apreciado como artista. Em 1696 houve um grande leilão que incluía quadros dele, cujos preços eram os mais altos de todos os outros artistas, o que demonstra sua popularidade como pintor.


Senhora escrevendo uma carta e sua criada, 1670
A pintura de Vermeer parece possuir uma certa intemporalidade. Sua forma de pintar é, por vezes, quase cristalina. Mas nessa quietude e luminosidade que invade espaços sombrios, podemos observar que ele se aproxima do “tenebrismo” de Caravaggio. Em sua época, a chamada pintura histórica, em voga, incluía os acontecimentos da Antiguidade Clássica, mas também os mitos e lendas de santos, e os temas bíblicos. Mas na segunda metade de 1650 ele voltou sua pintura para as cenas domésticas.

Nenhum dos quadros da fase de "pintura de gênero" representa uma cena muito importante, do ponto de vista temático. A maioria representa pessoas simples, dentro de suas casas, em geral solitárias, costurando, tocando algum instrumento, lendo cartas, estudando. Sua verdadeira obsessão era a Luz, que invadia os ambientes através de janelas abertas, muitas vezes janelas de vidro, como a dizer que ao abrir-se para o mundo, nada pode impedir que a luz tome conta e banhe tudo de cor. E com isso todos os objetos e figuras humanas compõem um conjunto inseparável.

Vermeer usava também cores brilhantes, assim como o azul intenso que aparece em diversas de suas obras. Nada se sabe sobre desenhos, estudos preparatórios. Mas sabe-se que ninguém no século XVII utilizou, como ele, de forma tão exuberante, o pigmento que era dos mais caros na época: o lápis-lázuli, o ultramarino natural. Mas também usava os terras e ocres de forma luminosa. Podemos dizer que Vermeer pintava com a luz, seu objeto de perseguição e de desejo era a luz. Ele tinha estudado textos de Leonardo da Vinci que diziam que um objeto sempre reflete a cor do objeto adjacente e por isso nenhum objeto é visto puramente em sua cor local. Ele foi também o grande mestre da composição, empregando divisões equilibradas das superfícies e tinha domínio perfeito da perspectiva. Para ele a geometria tinha um papel importante na composição.

Talvez por nunca ter saído de sua cidade natal, Delft, Vermeer se manteve desconhecido até o século XIX. O pintor realista francês Gustave Courbet foi exatamente buscar a fonte de sua inspiração na obra dos pintores holandeses, dos mestres que mostravam o mundo, mesmo em suas cenas cotidianas, com a riqueza do tratamento da síntese que absorviam do real. Um desses mestres descobertos por ele era Johannes Vermeer.
A arte da Pintura, 1665-1666, Jan Vermeer, óleo sobre tela, 120x100 cm,
Kunsthistoriches Museum, Viena, Áustria
-------------------------------------------
Obs.: Todas as imagens acima estão em alta resolução. Basta um clique nelas para que possam ser vistas mais de perto.

terça-feira, 17 de maio de 2011

O Realismo atravessa os tempos

Acabei de ler o livro de Carlos Cavalcanti, edição de 1967, "Conheça os estilos de Pintura". É um livro esgotado nas livrarias, há muito tempo. Encontrei-o em minha viagem ao Rio de Janeiro, mês passado, em plena Cinelândia, na Feira de Livros. Paguei dez reais por um livro que dá um panorama histórico da pintura, desde a Idade da Pedra Lascada até o século XIX.


Narciso, de Caravaggio, óleo sobre tela, 110x92cm,
Galleria Nazzionale d'Art Antica, Roma, Italia
Quem lê livros, sabe o que acontece quando acabamos de ler a última linha de um livro que tanto nos prendeu e interessou! Cria-se um vácuo, um "não sei o que fazer agora", o que ler em seguida, como viver a partir deste momento... Um bom livro mexe profundamente, move e remove ideias, cria novas, faz recuar em preconceitos, avançar em conceitos, em conhecimento. Dá vida!


Pois bem! Um bom lastro de conhecimento sobre a história da pintura aumentou mais ainda meu interesse sobre o tema do Realismo nas artes. Isso vai dar muito pano pra manga, pois alguns dados colhidos são realmente interessantes. A realidade - esse contato direto do homem com o mundo à sua volta - tem gerado interesse, curiosidade, investigação, conhecimento, ciência e arte. Ao longo de milhares de anos, o Real tem intrigado o homem, tem movido o homem, tem inspirado o homem.

Pintura palelolítica, caverna de Montinac-Lascaux, França
Artistas realistas não são uma novidade do século XIX, pois como diz Carlos Cavalcanti - além de outros - os primeiros realistas apareceram na Idade da Pedra Lascada "com os desenhistas e pintores madalenianos, decoradores de cavernas, armas e utensílios" que estudavam e desenhavam com muita eloquência os movimentos e o caráter dos animais.

Os egípcios antigos eram ao mesmo tempo figurativos e abstratos como pintores, influenciados diretamente pela religião e suas crenças, onde sacerdotes orientavam artistas dentro de regras rígidas. Mas mesmo assim, os escultores egípcios eram realistas. Também na Roma dos velhos tempos, os pintores - os primeiros muralistas - eram também realistas, pintavam em enormes afrescos murais públicos, cenas da vida, da história.

Estudos de Michelângelo Buonarrotti (1475-1564)
A última fase da pintura Gótica e a primeira fase dos Renascentistas trouxeram excelentes pintores realistas, como Tommaso Masaccio (1400-1428) que para representar cenas bíblicas - moda na época - ia buscar nos bairros pobres de Florença, na Itália, os modelos para seus quadros. Ele é considerado o segundo grande mestre do começo da pintura ocidental, depois de Giotto (1266-1337), exatamente porque ele abriu caminhos para a interpretação realista do mundo, sem a mística da Idade Média. Foi nele que se inspiraram, séculos depois, Michelângelo, Leonardo Da Vinci, Rafael e outros.

Um outro pré-renascentista, Filippino Lippi (1457-1504) - que era filho de um padre (também pintor) com uma freira - também trazia elementos que o diferenciavam dos pintores de seu tempo, influenciados pela mística bizantina: pintava anjos com as unhas sujas, nossas senhoras com a cara das mulheres que se viam nas ruas.
Lição de Anatomia, de Rembrandt, 1632, Museu de Haia, Holanda
Também na Holanda, ainda no século XV, os irmãos Van Eick pintavam o que viam com uma verdade "às vezes quase cruel, dos seres e das coisas", diz Cavalcanti.


No Renascimento que cultuava as formas idealizadas dos gregos antigos, os pintores realistas são em número muito grande! O Barroco, que trazia intensidades dramáticas expressas nas artes, era sobretudo um movimento realista, e de inspiração popular. Não precisamos fazer uma lista de nomes, porque um só deles já basta para atestar esta constatação: O Mestre Caravaggio! Ele era odiado pelos seguidores dos maneirismos aristocráticos de seu tempo, que o chamavam de anticristo da pintura, o pintor maldito, o pintor que vivia com os pés sujos. Caravaggio não ligava, pintava com intensidade a realidade crua que via diante dos olhos.


Nos séculos XVII e XVIII, pintores flamengos e holandeses criaram obras onde interpretavam os interesses da já "opulenta e laboriosa" burguesia mercantil e manufatureira. Nesse período, primorosos pintores realistas pintaram desde retratos até a paisagem de suas terras, além do cotidiano doméstico, encontrando beleza e graça nas cozinhas e nos dormitórios modestos do povo dos Países Baixos.


Mesmo na França do período do Rococó mundano e superficial de uma "aristocracia em decomposição", diversos pintores, ao invés de se inspirarem nos temas em voga, preferiam buscar inspiração na vida laboriosa dos trabalhadores rurais e mesmo na vidinha besta da pequena burguesia provinciana.

Velha fritando ovos, de Vélazquez, 1618, 100x120cm,
National Gallery of Scotland, Edimburgo.
 
Então, diz bem Carlos Cavalcanti, entendida como representação objetiva da realidade, o Realismo na pintura não é uma novidade trazida pelo século XIX, porque, diz, a "Realidade em si mesma, limpa das deformações do sentimento ou dos atavios estéticos, mais de uma vez tem parecido bela aos olhos humanos" desde a remota antiguidade.


Mas foi no século XIX, com Gustave Courbet, que se funda oficialmente o movimento conhecido como Realista, primeiros passos para todos os movimentos modernistas que vieram a seguir. O Realismo do século XIX veio junto com ideias revolucionárias contra a burguesia já no poder, que já de revolucionária não tinha mais nada. Se mostrava conservadora, anti-reformista e autoritária. Citando Arnold Hauser, um dos teóricos do período, Cavalcanti lembra que as intensas discussões daquela época em torno da "arte pura", distante da realidade e da história, eram incentivadas pela burguesia no poder que queria afastar o artista das ideias políticas.


O atelier do pintor, Gustave Courbet, 1855, óleo sobre tela,
361x598 cm, Museu D'Orsay, Paris, França
Hoje, nesta salada contemporânea, assuntos como este voltam de vez em quando. O eterno debate sobre o papel da arte nunca saiu de cena, o que é compreensível, uma vez que o homem como artista é um homem com sentidos diferentes de percepção do mundo, mas um homem que somente se satisfaz quando transmite sua percepção pessoal do mundo aos semelhantes. Há os que criam um diálogo com suas obras, fazem pensar, dão prazer estético. Mas há os que vão simplesmente na onda da moda e, se se preocupam em criar um diálogo com seus semelhantes, esses semelhantes são bem semelhantes mesmo, porque pertencem a uma casta que fala uma língua que a imensa maioria não é capaz de compreender...

Le déjeuner sur l'herbe, de Édouard Manet, 1863,
Museu do Louvre, Paris, França
Do meu lado, sou parte daqueles que gostam de conversar com todo mundo: Masaccio, Van Eyck, Michelangelo, Caravaggio, Rembrandt, Vermeer, Velazquez, Murillo, Ribera, Zurbarán, Dürer, Goya, Rubens, Rafael, Van Dyck, El Greco, David, Ingres, Sargent, Courbet, Delacroix, Manet, Toulouse-Lautrec, Monet, Millet, Rousseau, Géricault, Corot, Fantin-Latour, Doré, Daumier, Turner, Constable, Rossetti, Degas, Almeida Junior, Visconti, Anita Malfatti, Portinari, Di Cavalcanti... a lista é imensa! Nem todos realistas, claro, mas todos gênios em seus cavaletes onde geraram as grandes obras que inspiram nossa humanidade, e que espelham os rostos de todos nós.


Os músicos, de Caravaggio, óleo sobre tela,
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, EUA