A pintura figurativa data de milhares de anos, desde que os primeiros artistas pintaram nas paredes das cavernas, como em Altamira, na Espanha, ou em Lascaux, na França. Mais de 15 mil anos depois, continuamos transformando o que vemos em obras de arte, uma atividade permanente e necessária à alma humana. A arte figurativa, apesar de viver nos tempos atuais certo ostracismo, mantém-se silenciosamente consistente e ativa, como sempre esteve. Afinal, apesar de alguns teóricos do neoliberalismo pós-moderno, a Arte não morreu!
Um exemplo muito concreto é o artista plástico paulistano Maurício Takiguthi, pintor realista. Maurício concedeu-me a entrevista abaixo em seu atelier na Rua Frei Caneca, em São Paulo, onde sou uma entre seus 70 alunos. Vale à pena a leitura atenta até o final, uma vez que ele aborda temas muito importantes no que diz respeito às artes plásticas atuais, assim como ao pensamento contemporâneo. Filosofando sobre a arte realista, ressalta o humanismo presente na pintura figurativa, em contraposição à arte conceitual, fria, discursiva e abstrata, longe do humano e da realidade de seu tempo.
Maurício, conte um pouco da sua trajetória artística.
Maurício – Na minha infância e adolescência, gostava muito de quadrinhos e de desenhar super-heróis, mas sempre com “cara” de ilustração, não de pintura. Até que um dia meu irmão gêmeo me convidou a fazer um curso de pintura que, apesar da minha resistência inicial, acabei indo. Por sorte, tinha um professor de pintura que morava a três quadras de casa. Ele tinha estudado pintura acadêmica na Europa. A partir daí, com o tempo e com a prática, fui descobrindo que minha grande paixão era tentar representar a figura com ilusão de profundidade. Para mim aquilo era uma coisa mágica, conseguir representar uma figura com volume, e foi isso que me fez pegar gosto pela pintura. Só que ainda não era figura realista, mas acadêmica, seguindo a formação do meu professor daquela época.
Depois meu irmão acabou tomando o caminho da arquitetura, e eu fiquei na pintura. Com o passar do tempo, percebi que estava chegando num limite, pois compreendi que a simples representação objetiva do modelo era uma coisa muito pobre. Foi quando comecei a investigar mais a parte conceitual-técnica da pintura, por conta própria. Um dia me deparei com o livro da Betty Edwards, “Desenhando com o lado direito do cérebro”, e, junto com livros de pintores realistas norte-americanos, comecei a estudar com mais profundidade as bases do desenho e da pintura.
Como foi seu caminho em direção à pintura realista?
Maurício – Com esses estudos, fui descobrindo que o campo da pintura era muito maior, que existem conceitos técnicos que expandem e orientam a ação, assim como existe uma relação especial que se estabelece entre o artista e a pintura. Nos livros que fui lendo, percebi que o Realismo – para o qual existem várias definições – foi muito menos um movimento unificado e muito mais uma linha de pensamento localizada historicamente no tempo e no espaço, o que faz do realismo alemão, por exemplo, ser diferente do russo, que é diferente do francês, que é diferente do norte-americano. O Realismo é muito difícil de definir porque ultrapassa aquela visão que muitos têm de que se trata apenas de uma mera representação objetiva do real (a tão chamada “cópia” da natureza), que é uma definição, do ponto de vista técnico, mais genérica. Burton Silverman, pintor realista contemporâneo dos EUA, com quem tive um workshop no ano passado, por sua vez, chama de realismo esse registro emocional das relações que ele mantém com as pessoas na vida cotidiana.
Para mim, o realismo é a representação desse modo como eu encaro, percebo e me relaciono com o mundo real. Mas, por exemplo, (aponta uma de suas telas, onde surgem rostos humanos no tronco de uma árvore), alguém poderia dizer, olhando para essa pintura, que ela é uma pintura simbólica, ou mesmo expressionista, ou surrealista. É engraçado, pois para mim ela é uma pintura realista. Às vezes, para eu poder traduzir o modo como vejo ou sinto a realidade, eu preciso distorcê-la por ser a melhor maneira de expressá-la. A coisa se passa mais ou menos assim: ao estabelecer relações com o mundo real, através da minha percepção e concepção, impressões e sensações são geradas e são elas os elementos a serem impressos na minha pintura.
Aqui em seu atelier você pretende que ele seja uma escola de pintura realista?
Maurício – Pretendo que seja uma Escola enquanto pensamento realista e não escola de formato institucional como uma academia. Isso por dois motivos: pela diferença que existe na natureza do enfoque como treinamento e também pela concepção. O primeiro diz respeito à correlação entre nível de institucionalização e grau de liberdade. Numa escola de pintura acadêmica, por exemplo, de certa forma, impõe-se o pensamento na forma de regras e a tendência é massificar o ensino. Apesar de a formação basear-se num bom esquema para desenhar de observação, o aluno adquire habilidade prática, mas que tende a ser mecânica. No sistema de atelier, o aprendizado não se dá de forma tão rígida ou fechada, o pensamento se torna mais individualizado, possibilitando maior flexibilidade e maior grau de independência. O aluno age mais livremente. Trabalha-se mais com o conhecimento a partir da existência de critérios, não tanto de regras.
Conceitualmente, no sistema acadêmico, o pintor está mais preocupado em representar o mundo de maneira estritamente objetiva. Tem como intenção “copiá-lo” tal qual ele se apresenta, por mais que isso seja impossível (já que a subjetividade sempre vai estar presente), através da linha. Essa ênfase da representação do tema pela linha tem como característica o limite e contraste das formas. O claro e escuro estão subordinados à forma. A ordem nasce da linha como ponto de partida e o caos, longe de ser administrado, é eliminado. Não há qualidades voltadas para o ordenamento mental ou seleção do mais significativo.
O modelo realista do tipo pictórico, neste ponto, oferece muito mais possibilidades. Este último se apropria dos elementos do real, para impor simultaneamente a sua personalidade, visão, concepção e emoção, numa tarefa difícil que combina objetividade e subjetividade. Para tal intento, o realista, por outro lado, deve necessariamente buscar o essencial na imagem, por critérios que auxiliam a elaboração mental. Outro traço distintivo em relação aos acadêmicos lineares é que, a partir do momento em que você busca representar a luz nas coisas (e não as coisas com luz), a massa ultrapassa a forma e o limite da linha é eliminado. E com isso o mundo se abre! O artista pictórico é incumbido de administrar o caos durante todo o processo e de buscar um trabalho mental mais consistente. Neste ponto, a pintura realista cria a combinação interessante entre pensamento e sensação (situada mais no campo intuitivo). Isso me atraiu muito!
A pintura realista, como eu vejo, é esse campo de ação infinito, complexo e muitas vezes indefinido, onde o conceito serve de referência que orienta a ação intuitiva. Não para estabelecer regras que ensinem etapas e modos de fazer determinado tema, que acabam engessando a visão de mundo. Muito pelo contrário, o pintor realista é uma espécie de observador que registra suas impressões do mundo, traduzindo-o em pinceladas, cores, valores, bordas, etc. É nesse processo de ordenamento desse mundo caótico que forma e conteúdo emergem como síntese que o artista expressa e a pintura adquire, por conseqüência, o status de pensamento e de expressão.
Qual a diferença entre essa visão da arte realista e a arte abstrata?
Maurício – Eu vejo da seguinte forma: o pintor abstrato nega, por princípio, a representação dos objetos da realidade e a ilusão tridimensional de profundidade e tem sob enfoque estritamente os elementos visuais inerentes à imagem bidimensional. O pintor realista, por sua vez, pode também focar os mesmos elementos visuais, pela descolagem da imagem de seu objeto, mas sem negar a realidade. Para ele, a ilusão de profundidade pelo uso seletivo da luz é fundamental.
É neste sentido que a abstração, entendida como processo de organização mental da imagem, não faz parte do monopólio da arte abstrata. Muitos dos pintores pictóricos no passado o fizeram, em alto nível de complexidade, por meio de conceitos técnicos de construção, como Velásquez, Vermeer, Whistler, Rembrandt, Sargent, entre outros (mas para entender como isso se dá, seriam necessários estudo e visão em profundidade, coisa que não dá para exigir de quem nega o conhecimento dos fundamentos do desenho e pintura...).
Outra diferença entre a arte realista e a abstrata é o nível de preconceito que o pintor realista tem de enfrentar, que a é o da valoração de cunho ideológico. Toda representação figurativa tradicional recebe o rótulo de conservador, retrógrado ou acadêmico e é julgada sumariamente como fria, mecânica, inexpressiva ou desprovida, a priori, de criatividade ou conceito.
Portanto, a diferença, em última instância, entre um pintor abstrato e um realista não recai tanto no nível de abstração, mas sim na recusa da representação dos objetos da realidade com ilusão de profundidade e também no grau de preconceito. Vivemos um momento esquizofrênico e contraditório na arte, no qual, a liberdade consiste em poder fazer o que quiser, desde que não seja figurativo.
Em 2009, você foi a Nova Iorque participar de uma oficina com o pintor realista Burton Silverman. Fale um pouco do seu aprendizado com ele.
Maurício – Uma das questões que ele deixou claro: no mundo existem milhões de pintores, mas a partir do momento em que você se lança a desenhar ou a pintar, você deve ter um bom motivo para fazê-lo, que pode ser subentendido como você tem que fazer a diferença! O artista precisa saber qual é o seu papel no mundo. Burton tem um viés de esquerda, é um intelectual preocupado com o que acontece à sua volta. Ele estava discutindo o estado atual da arte nos EUA, que é hoje o centro da pintura realista. Na visão dele, existe hoje um excesso de pintura representacional pasteurizada, em que os pintores até podem executar bem, mas fazem de um modo impessoal, descritivo, frio. Para ele, o Realismo deve ir além adquirindo tanto função social como estética. Função social no sentido de representar a sociedade em que vivemos, desde a cultura até o ponto de vista mais subjetivo, onde está inserida a relação que ele, como pintor, estabelece com o mundo de hoje. Aliás, foi essa critica que ele me fez. Ele me perguntou por que eu pinto como os barrocos? Porque eu não pinto a cultura japonesa ou a sociedade brasileira? Ele tem esse lado político.
E o que você achou dessa provocação dele?
Maurício – Eu busquei até agora, ao invés de me localizar no tempo e no espaço atual, me situar em algo mais universal. Há uma crítica social ou olhar contemplativo em meu trabalho, mas reconheço que é uma abordagem mais universal, dissociada do tempo e do espaço.
Mas Silverman me fez algumas sugestões: se quero pintar uma figura, que tem a solidão como tema, que isso se faça dentro de um contexto. O contexto de Silverman é a sociedade norte-americana atual, do século XX e agora XXI, que ele demarca no seu contexto histórico. Eu penso em começar a trabalhar mais dessa forma. Acho que é um desafio bom.
Em seus quadros, dá para ver que seu foco é mesmo na figura humana. Isso é uma escolha?
Maurício – Sim, porque é claro que dá para o artista se expressar através de uma natureza-morta ou mesmo de uma paisagem. Mas, para mim, a figura humana é muito mais desafiadora, pelo duplo desafio de representá-la no mais alto nível de exigência e de conseguir colocar na tela o meu olhar sobre elas. Gosto desse lugar de observador da condição humana e evidenciar o meu estranhamento diante das coisas. É seguramente tema mais difícil. É o que me atrai.
Na abordagem realista, com intuito de ordenar e expressar a relação com o mundo visível, é necessária a união de elementos como conceito (diretriz de ação), técnica (meios de expressão) e sensibilidade (intuição). Isso nos faz encarar o processo como algo inteiro e é isso o que nos faz humanos: essa capacidade de perceber o real, de interagir com ele, de estabelecer uma relação emocional mas também de entendimento. Um entendimento que se dá de uma forma racional e também intuitiva.
O grande problema é que, na sociedade de massas, com a fonte infinita de informação, ausência de critérios (claros e definidos) e, portanto, incapacidade de seleção ou mesmo de julgamento consciencioso, as pessoas perdem a capacidade discernir e acabam agindo pela aparência mais superficial das coisas. A própria exigência de tomar decisões rápidas com base em poucas informações, em função do ritmo acelerado de vida, dificultou a contemplação e a busca da compreensão, substituídas pela dedução. O que se cultiva, por tabela, coletivamente, é o uso dos olhos racionais e não da visão em profundidade.
Por falar em sociedade de massas, e a chamada arte contemporânea?
Maurício – Essa arte atual sofre desse mesmo mal falado anteriormente. Os processos de arte são superficiais e estereotipados, as pessoas navegam social e culturalmente dentro da arte por uma linguagem que se dá por chavões. Um bom exemplo disso é essa ideia corrente de que jogar no papel ou na tela qualquer coisa sem critério ou técnica tem nome de liberdade ou espontaneidade. Qualquer coisa espontânea, preferencialmente sem sentido, adquire o status de expressivo, através de convenção. Certa vez, li num jornal um artista dizendo que passou 12 horas seguidas fazendo desenho compulsivamente sem parar, com uma pausa apenas para comer um pedaço de pizza. Não foram 12 horas de treino ou de trabalho orientado por algum tipo de conceito (critério) e sim 12 horas em que ele foi tomado ou “possuído” pelo desenho. É engraçado, para não dizer triste, o esforço existente de tentar propagar esta imagem de que a compulsão confere ao artista uma qualidade ou virtude estética.
O mais comum é tentar achar racionalmente um significado mais profundo usando recursos verborrágicos. Isso se propaga facilmente, principalmente, neste ambiente propício onde o público não entende nada (pela ausência de critérios de validação estética) e se sente perdido.
Essa confusão decorrente da “instalação” do vazio na arte, contudo, é bastante útil, pois na ausência de qualquer regulação, nesta sociedade movida por aparências, é que a arte contemporânea consegue preencher com o conteúdo que lhe convier. Apesar de convertida em mercadoria no sistema atual como investimento financeiro, representa simbolicamente fonte de prestígio, de poder e até de certo nível intelectual, que nem sempre o comprador, o novo rico, tem, mas pode insinuar.
E para quem não reza na cartilha da arte contemporânea, como sobreviver?
Maurício – o caminho alternativo é criar seu próprio nicho, buscar circuitos alternativos ou mesmo viver com atividade paralela. O que foi possível perceber há alguns anos é que, sendo um artista de base tradicional, dificilmente conseguiria ter acesso a instituições de arte de ponta. Parece que a partir de certo nível os espaços têm dono. A única possibilidade se você quiser expor é entrar “no esquema”.
No começo eu era bem ingênuo, achava que o bom trabalho era suficiente para se sustentar, mas com o tempo percebi que o buraco é bem mais embaixo: primeiro tem que ter bons contatos (como produtores culturais que vejam no seu trabalho uma alternativa rentável no sentido financeiro e também como ideia facilmente assimilável neste processo de propagação em massa), um trabalho que se adapte “ao gosto do freguês”, uma boa estratégia de apresentação à elite econômica, uma assessoria de imprensa forte, bem paga; depois, conseguir aprovar seus projetos, captar recursos, procurar críticos e curadores que estejam interessados nisso, etc. Precisaria ter toda uma estrutura por trás que estivesse a fim de investir nisso.
O sistema de arte virou mais um ramo do mercado, virou comércio. Atualmente, impera o conceito, muito falada nos bastidores mas nunca assumido publicamente, de que boa obra é obra vendida. A maior preocupação não é com o que o artista tem a dizer, mas com quanto dá para faturar em cima dele. E nesse esquema ultra concorrido, o artista procura enquadrar-se para ser aceito, mesmo que seja para usar artifícios que o identifiquem como transgressor, excêntrico, “afetado”, louco, entre outros adjetivos esdrúxulos. Nessa sociedade de massas, quem grita mais alto é que pode chamar a atenção do mercado, da mídia e assim obter mais espaço...
Sociedade do espetáculo...
Maurício – É necessário entender que tudo isso é sintoma de uma época contra o qual talvez não haja solução no campo da ação individual. No livro Oil Painting Techniques and Materials, livro de Harold Speed, é possível entender essa correlação entre classe social que detém o poder político e o tipo de arte desenvolvida. Se no século XVIII, a arte destinava-se para a aristocracia; no século XIX, para a classe média; no século XX a arte seria moldada à lógica da sociedade de massas. Diante disso, é possível entender a necessidade hoje de buscar o escândalo como modo de vida artístico.
Sabendo disso, a solução que vislumbro para os artistas realistas é a de encontrar os seus pares. Conseguir dialogar com pessoas que tenham os mesmos interesses, os mesmos desejos e ambições, mas sem a preocupação de que isso repercuta em escala social.
O Silverman, por exemplo, na década de 60 criou um movimento realista com seus colegas de faculdade e escreveu um Manifesto Realista. Ponderou que aquela iniciativa e luta não valeram a pena. O jornalista de Nova Iorque na ocasião disse que aquilo não era notícia. Com essa experiência, Silverman chegou à conclusão de que o que derradeiramente importa é dar exemplo. Acho que também é o máximo que posso fazer. Minha intenção é mais pessoal: eu quero atingir um nível alto na pintura!
A arte realista hoje se concentra mais nos EUA? Por que?
Maurício – Um dos principais motivos é que, onde se concentra o dinheiro, há maior concentração de artistas também. Isso explica em parte, mas não porque há um número tão grande de realistas. Outra explicação possível é de que o americano nunca deixou de lado, talvez por uma questão cultural e de valor, a representação das coisas, mesmo no pós-guerra, com a campanha governamental intensa contra a pintura realista, identificada simbolicamente com o regime socialista soviético.
Outro fator fundamental e decisivo foi o alto nível de institucionalização da arte realista ou acadêmica nos vários setores sociais, na forma de ateliês, academias, faculdades, museus, sociedades artísticas (do pastel, do retrato, etc), mídia impressa, e a grande comunicação entre eles.
No Brasil, não há cultura técnica e culturalmente ainda é muito forte a difusão da concepção de que a criatividade ou improvisação nascem da falta (de formação e de conhecimento) ou da carência. A grande dificuldade nossa é que o nosso padrão cultural ainda é de país colonizado. Então a preocupação continua sendo: o que está acontecendo lá fora? O que é de “bom tom” fazer para ser considerado “descolado”? Isso ajuda a explicar em parte esse fenômeno de repetir velhas fórmulas do século passado consideradas ainda de vanguarda...
É o que se observa hoje. Repetições excessivas das velhas fórmulas... A transgressão se institucionalizou.
Maurício – Chega a ser antagônico, porque hoje em dia transgredir a transgressão ou mesmo o estado vigente é restabelecer a ordem nesse mundo caótico sem regras ou critérios. O grande imbróglio insolúvel reside na convenção inquestionável de que a transgressão é libertária.
Vigora um tipo de ignorância que é o orgulho de ser esse tipo de analfabeto visual, a pessoa que se recusa a adquirir conhecimento técnico, justo ela que permite ler a imagem, saber como ela funciona, compreendê-la, para poder manipulá-la. A técnica é tida como algo mecânico, duro, e não como meio ou instrumento de expressão.
Parece que, para ser artista o pré-requisito, é ter atitude “afetada” ou compulsiva voltada para o entretenimento da grande platéia, que por sua vez, na maioria esmagadora das vezes também não entende nada do que vê e precisa ser avisada de se trata de uma obra artística. O público o vê como um excêntrico despirocado.
O realista como observador do seu tempo cultiva outra postura. O domínio das várias técnicas lhe dá um vasto repertório, como espécie de “vocabulário” visual, para poder se expressar. O processo é uma construção que lapida, desbasta e exige a tomada de várias decisões. A soltura longe de ser essa liberdade de jogar qualquer coisa vaga na tela, compensada depois por palavras, é aquela de poder ordenar mentalmente cada etapa do processo, escolher várias ferramentas à disposição para saber conduzir o trabalho expressivo.
E o que ensinam as escolas de arte atuais?
Maurício – As escolas de arte e as faculdades de arte tornaram-se as atuais academias. Mas com uma diferença gritante: antigamente, eles sabiam executar e dominavam as várias fases do fazer. Hoje, transforma-se objetos prontos em arte pelo “dom da palavra” e a repetição é ensinada como ato inovador a ser reproduzido infinitamente.
Há algo de contraditório e estranho no ar: há um ambiente opressivo em nome do monopólio da verdade artística. Se no passado, o aluno que soubesse desenhar era visto com bons olhos por revelar certa aptidão para as artes, atualmente isso não é só condenado pelos professores, como também pelos colegas. Tenho alunos que contam como os colegas olham feio para ele pelo fato de saber desenhar ou querer trabalhar com desenhos figurativos tradicionais. Uma vez eu perguntei a uma professora da ECA/USP por que eles não ensinavam pintura figurativa? Ela respondeu: “olha, você tem que entender que a pintura acadêmica morreu”. Mas as faculdades de artes inventaram uma nova arte acadêmica que impõem regras inusitadas: numa sessão de modelo vivo, por exemplo, você não deve desenhar o que vê ou interpretá-lo. O discurso sempre é daquele tipo: solte-se! Liberte-se da figura! Qualquer um de bom senso poderia pensar: se é para me livrar da figura, então por que há uma posando na minha frente? O fato é que esse tipo de contradição ou falta de coerência é ensinado na faculdade enquanto valor. Logicamente, você não é obrigado a representá-lo sob o modo realista ou acadêmico, mas qualquer indício de representação fidedigna é castrado por ser considerado algo retrógrado ou uma má influência. Alguns alunos que questionaram a proibição da abordagem representacional acabaram sendo reprovados. São pequenos exemplos que evidenciam o caráter opressivo, ininteligível e “nonsense” desta nova ordem acadêmica.
As escolas de arte, ao adotarem uma postura mística e ideológica a partir da década de 60, em defesa da falta de formação, treino e conhecimento prático e conceitual dos instrumentos de expressão, como pré-requisitos para a criação, estabeleceram como valor, paradoxalmente, a aversão ao aprendizado e a qualquer tentativa de entender o processo prático.
A nova Academia, como você diz, impõe a arte conceitual. Se tudo fica no reino da subjetividade, como fica a obra de arte? Por isso se diz que nas melhores galerias de arte contemporânea há sempre muito papel para se ler?
Maurício – Sim, a partir do momento em que se convencionou que o conceito é mais importante que a obra e esta é mera ilustração dele, fragmentou-se o processo. O que parece reino da subjetividade é na verdade a instituição da arbitrariedade, instituição de um tipo de verdade que tem a transgressão como centro e também a instalação de um grande vazio, preenchido pelo discurso. O processo tornou-se exclusivamente racional. Daí a importância da existência de critérios de validação mais coerentes como peças fundamentais para eliminar essa falta de correspondência entre obra e legenda de que falou e eliminar esse abismo entre o espectador e as obras de arte.
Neste ponto é que podemos pensar que a boa obra de arte se sustenta sem o recurso da “arte verbal”. A diferença básica entre os mestres do passado e muito da arte de hoje, é que as obras dos primeiros sobrevivem sem a “muleta” das palavras – invariavelmente as palavras ilustram a obra e não o contrário. O que de certa forma contribuiu para isso, principalmente no caso dos grandes mestres do passado, foi o domínio técnico de todo o processo. Michelângelo, por exemplo, pessoalmente escolhia o mármore, verificando qual era o melhor tamanho e forma para suas peças em que ia trabalhar, desenhava os esboços, fazia estudos e projetos para visualizar a obra e aí sim esculpia, sempre com a ideia total de todo o processo. Isso sem falar do seu conhecimento técnico da função da linha, da massa, anatomia e perspectiva linear. Os grandes pintores, assim como ele, escolhem o modelo, a incidência da luz, a tela, a tinta, o pincel, escolhe o enquadramento, que tipo de informação ele vai salientar ou eliminar a partir do modelo, ou que tipo de distorção vai ser necessária para representar aquilo que ele quer. Isso é técnica e é esse contato íntimo com o processo que possibilita o artista mais sensível se expressar melhor. Aquilo que permite ao artista manipular a imagem, ter controle sobre a imagem, é a técnica. A técnica é este conjunto de meios que viabilizam a expressão e a ferramenta de que dispomos para poder melhor representar o que queremos, seja uma ideia, uma imagem ou uma sensação. É, por isso, que neste sentido, a boa técnica está sempre a serviço da expressão.
Na arte da transgressão, ao contrário, basta você dizer um clichê qualquer que remeta à ideia de sensibilidade para você ser considerado sensível. É só adotar uma frase pronta, repetir o que um outro disse para que todos deduzam ou elogiem sua inteligência. Você pode fazer qualquer coisa e buscar boas justificativas depois, contratar uma boa assessoria de imprensa ou crítico, que tá tudo certo.
Mas é o que impera hoje nas artes plásticas, em qualquer exposição de arte contemporânea.
Maurício –. A arte se desumanizou quando a sua lógica passou a ter como base de sustentação a ideia de que é arte tudo aquilo que fosse definido como tal. O que poderia resgatar ou traduzir o que há de mais humano, universal e perene em nós mesmos deu lugar à busca neurótica e alienada da novidade, do espetáculo, da transgressão, do escândalo.
Vale a pena citar Ferreira Gullar. Para ele, essa postura racional, influenciada pelo discurso científico, “impôs que a emoção e a intuição passassem a ser velharias. Só que ao fazer isso, a arte caminhou para a auto-destruição, pois a imaginação é a matéria-prima da arte. Por isso, a arte plástica acabou, pela exclusão desses elementos.”
Como pintor realista, gostaria que a arte fosse esse campo de respiro e sensibilidade, do conhecimento e da visão em profundidade, mas não sei se dá para ser tão otimista, uma vez que a própria sociedade, público para o qual é feita a arte não tem voz ativa, qualquer poder de decisão, dentro do atual sistema.
É suficiente lembrar uma entrevista, para ilustrar, na qual um professor da ECA-USP, discutindo os rumos da Bienal em São Paulo, afirmou "que não dá para resolver o eterno divórcio entre o público e as obras quando nunca houve casamento".
A questão fundamental que toca a natureza da relação entre o público e obra artística, é saber, em última instância, para quem a arte deve ser dirigida: se para o todo da sociedade, numa visão mais democrática e sem preconceitos, ou para meia dúzia de intelectuais que se comprazem em discutir o futuro da arte sem que a grande maioria participe.