sexta-feira, 19 de outubro de 2012

As cavernas, úteros da arte

Interior da caverna Paiva, no Parque Estadual Intervales, São Paulo
A primeira vez em que entrei numa caverna, foi na Paiva, lá em Intervales, reserva florestal no interior de São Paulo. Aquela entrada escura e misteriosa era apenas o começo de uma aventura que abria para mim o mundo subterrâneo. Carregando uma carbureteira que alimentava a chama de nossos capacetes, fomos, eu e uns amigos, penetrando no útero da terra. Estalactites surgiam à nossa frente, desvendados pela fraca luz que cada um de nós carregava; fraca mas suficiente para iluminar aquele mundo desconhecido. Em silêncio, ouvíamos os sons dos nossos passos, além do som de gotas de água que caem dos tetos de carvernas vivas, formando, a cada cem anos, um centímetro de estalactite. O guia, a certa altura, nos sugeriu: desliguemos nossas lanternas e chamas dos capacetes, sentemos no chão e fiquemos em silêncio... Nosso grupo obedeceu. Quietude absoluta! Não existe escuridão maior do que aquela! Nem silêncio mais profundo, quebrado apenas por pequenas gotas d’água. Talvez pela sensação de estar num lugar como aquele, nossos ouvidos foram se abrindo ainda mais e sendo capazes de alcançar o mais pequeno ruído. Um som longínquo, abafado, quase inaudível, surgiu: havia um rio subterrâneo algumas centenas de metros mais à frente... Que lugar!

Quem já entrou em uma caverna, conhece essa sensação de inquietude angustiante, esse silêncio tão profundo que torna nossa capacidade de percepção muito mais refinada. E foi exatamente dentro de lugares assim que nossos antepassados deixaram marcada sua criatividade, produzindo as nossas primeiras obras de arte.

Pintura na caverna de Lascaux, França
Lembrei muito dessa minha primeira experiência, ao ler um capítulo do livro do  professor e jornalista francês Yves Calméjane, “Histoire de Moi”, que diz que realmente as cavernas podem ser consideradas também o “útero da arte”.

Nesse texto, ele fala que os homens pré-históricos coletavam frutas e caçavam animais para se alimentar, mas também desenhavam, pintavam e esculpiam. Esses primeiros artistas estiveram particularmente ativos a partir de 35 mil anos a.C. em torno do que conhecemos hoje como o território europeu, especialmente, mas também foram encontrados traços “artísticos” feitos pelo homo sapiens no território australiano, e com datas ainda mais antigas.

Mas comecemos falando de uma das grandes descobertas dessa atividade artística do nosso passado longínquo, e que é a mais famosa: a caverna de Lascaux, região de Dordogne, ao sul da França.

No dia 12 de setembro de 1940, quatro garotos resolveram explorar uma cavidade aberta pela queda de um grande pinheiro e foi assim que depois de 17 mil anos, a gruta de Lascaux, sítio pré-histórico que se tornou patrimônio da humanidade, se abriu de novo ao mundo. Estava presente na região o padre Breuil, uma das autoridades da arqueologia da época, que visitou o local que os jovens estudantes tinham descoberto e qualificou a gruta como uma verdadeira “capela sixtina” dos tempos pré-históricos!

Pintura na caverna de Lascaux, França
Uma das primeiras imagens encontradas, intitulada “Homem ferido” é uma raridade no mundo da arte das cavernas, uma vez que a figura humana quase nunca era representada. Mas era ainda mais rara ali dentro, uma vez que as 600 pinturas e 1500 gravuras encontradas eram em sua maioria a representação de animais: cavalos, bisões, carneiros, cervos, touros, renas, etc. Um professor e pesquisador francês, Leroy-Gourhan, afirmou que em 66 sítios dessa arte pré-histórica já explorados, encontram-se 66% de representações de animais, 33% de símbolos e somente 4% de representação humana.

"Homem ferido", Lascaux
Pesquisadores da pré-história, estudando a arte das cavernas, levantaram alguns pontos em relação a esses achados artísticos: primeiro, ele observaram que uma forma de expressão artística característica, ocupou um vasto espaço e durou um longo período; segundo, que havia uma unidade no tipo de pintura nesse mesmo espaço geográfico e tempo, com algumas variações de estilo; terceiro, havia uma impressionante qualidade de execução e realismo dessa arte voltada essencialmente para a figura dos animais; notaram também que havia um relativamente pequeno número de espécies de animais representados; uma raridade da representação da figura humana, que, quando era encontrada estava sempre esquematizada e localizada no fundo das cavernas, com qualidade bem diferente das figuras de animais; também observaram a presença de numerosos signos e símbolos ainda indecifráveis.

Os artistas da pré-história que decoraram abrigos e cavernas exerceram seu talento no Paleolítico superior sobre um período em torno de 25 mil anos, que vem desde o período Auriaciano (35 mil a.C.) até o Madaleniano (em torno de 13 mil anos a.C). Essa atividade, no entanto, diminuiu em torno do nono milênio a.C., período onde começa o processo de sedentarização do homem, que até então era nômade.

Pintura da caverna de Altamira, Espanha
A parte do hoje território europeu onde esses antepassados viviam se estendia da península Ibérica até o sul da Rússia. Mas as mais belas obras deixadas por eles estão concentradas nas cavernas de Altamira e Ekain, na Espanha, e em cavernas do território francês, especialmente Lascaux, Cosquer, Chauvet, Rouffignac, Les Combarelles, Font de Gaume, les Trois Frères, Gargas ou ainda a região de Vilhonneur, descoberta em 2005.

O que espanta os pesquisadores é o fato de que durante 25 mil anos esses homens, que eram coletores, caçadores e nômades praticaram sua arte utilizando basicamente as mesmas técnicas e os mesmos estilos para as mesmas representações. O conjunto todo da arte pré-histórica apresenta uma unidade. O mesmo bisão pintado na caverna de Niaux por volta de 13 mil anos (a.C.) é muito aparentado ao grande bisão da gruta Chauvet de 20 mil anos. São as mesmas patas em triângulo, o mesmo encurvamento das costas ou a mesma maneira de representar a cauda, observa Yves Calméjane. E diz ainda: durante esse espaço de tempo - dez vezes mais do que nossa era cristã - as diferenças são mínimas e quase restritas ao número de espécies de animais representados, assim como à técnica de pintura ou de gravação!

Pinturas no teto da caverna de Altamira, Espanha
Essas obras eram pintadas, gravadas ou esculpidas com verdadeira maestria na representação dos movimentos, nas atitudes e nas expressões de suas figuras. E é bom que se diga: eles praticavam essas artes em locais de acesso muito difíceis e em condições muito dificultosas. Por isso, acrescenta Calméjane, “quando o abade Breuil chama a caverna de Lascaux de “capela sixtina”, sem dúvida ele estava querendo dizer que o artista do período madaleniano possuía tanto mérito quanto Michelangelo”, o pintor do Renascimento.

Em Lascaux, por exemplo, seria impossível pintar alguns dos tetos das cavernas sem andaimes. Mas alguns pesquisadores encontraram nesses lugares perfurações na parede e restos de árvores como carvalhos, que devem ter servido como andaimes. 

Esses artistas do passado trabalhavam no silêncio das cavernas e em sua obscuridade angustiante, depois de preparar seu material, como pigmentos, pinceis, raspadores e buris feitos de sílex. Muitas vezes percorrendo centenas de metros dentro das cavernas, segurando sua tocha frágil ou sua lamparina de gordura, eles desenhavam e pintavam tetos e paredes, muitas vezes usando as saliências e os pigmentos naturais que ele adaptava à sua obra.

Caverna de Altamira
Se esses homens sabiam o que faziam e para quê, nós, ao contrário, ignoramos completamente, observa Yves Calméjane. A nós, restam as conjecturas e as teorias sobre as reais motivações daqueles primeiros seres humanos. Aquela prática artística tinha função utilitária, simbólica ou ritual?

Outras observações também impressionam os estudiosos da arte pré-histórica, trazendo ainda mais questões: não existe representação artística da flora, curiosamente não há nenhuma flor, nem frutas ou árvores; não há representação de outros elementos naturais como a água, o sol, as montanhas, as estrelas, a lua, as nuvens. Ao menos que estejam sob uma forma que não possamos perceber; o homo sapiens não sabia representar o horizonte e nada sabia sobre perspectiva; a reprodução da figura humana é rara, como falamos antes; os homens são pouco representados, mas a mulher, sobretudo retratada como reprodutora, é mais frequente nos desenhos das cavernas.

Pintura na caverna de Altamira
Observando-se o “Homem-bisão” da gruta de Villars, ou o “Homem-pássaro” de Lascaux ou o “Mago chifrudo” da caverna “Trois Frères”, vê-se um contraste gritante entre os desenhos de animais e de pessoas. Somente no período Madaleniano, por volta de 13 mil anos a.C., é que encontramos figuras humanas pintadas com mais realismo, como em “Angles-sur-l’Anglin” e “La Marche”, por exemplo. Ali estão as primeiras tentativas do homem de se auto-representar de forma realista.

Na caverna “Angles-sur-l’Anglin”, no interior da França, há a representação de um rosto humano, bastante realista, de perfil, e que sorri com certa docilidade. Enquanto olhamos para ele, enfatiza o professor francês, nos admiramos com esse que pode ser o primeiro sorriso da história da arte e nos faz pensar ainda mais sobre qual motivo havia para que o homem pré-histórico desse um tratamento tão diferente para as figuras de animais e de seres humanos? Seria por não ter ainda consciência de si mesmo? Por não ser capaz de observar um semelhante como eram capazes de observar os animais?

Mas Yves Calméjane também fala sobre uma outra região do mundo, na Austrália.

Pesquisadores franceses na ilha de Borneu
Na região de Ubbir, naquele continente, as representações artísticas são feitas sem interrupção desde 40 mil anos atrás até hoje, pelos aborígenes! Eles continuam a pintar como seus ancestrais, observa o professor. Entre eles, o ensinamento é transmitido por via oral e através das pinturas rituais feitas em cascas de árvores, onde eles representam seus grandes mitos, que eles chamam de “Sonhos”. Esses mitos têm sido pintados ou gravados também sobre paredes rochosas há 40 mil anos!

Naquela região é muito frequente a representação das mãos humanas, uma forma de comunicação com os espíritos, diz Calméjane. São feitos por homens, mulheres e crianças, enquanto que a maior parte das outras pinturas é feita exclusivamente pelos homens. Mulheres e crianças se expressam, então, fazendo traços e pinturas com as próprias mãos, usando-as como estêncil.

Mas essa prática de pintar as mãos se estende por muitos outros lugares do mundo. Na Argentina, por exemplo, tem a Cueva de las Manos Pintadas. Na França, ela está presente nas cavernas Cosquer e Chauvet. No norte da África e na Indonésia se encontram figuras de mãos - negativas ou positivas - pintadas. E Yves Calméjane afirma: “são uma espécie de testemunha de que o homem a partir daí (13 mil anos) começa a tomar consciência de si”.

Descobertas mais recentes, em 1992, na ilha de Borneo, na Indonésia, feitas pela equipe coordenada pelos espeleólogos e arqueólogos Luc-Henri Fage e Jean-Michel Chazine, trouxeram à luz surpreendentes pinturas pré-históricas. Encontraram centenas dessas mãos pintadas em negativo.

Pintura pré-histórica na serra da Capivara, Piauí
Aqui no Brasil, as pinturas e gravuras mais antigas, que chegam a ter 12.000 anos, foram encontradas no Parque Nacional da Serra da Capivara, região de São Raimundo Nonato (Piauí). São desenhos e esboços de animais, pessoas, plantas e objetos. Muitas vezes mostram cenas da vida cotidiana e cerimônias de culto. Mas podemos encontrar arte rupestre em diversos outros lugares no Brasil.

Nessa região próxima ao município piauiense de São Raimundo Nonato, vem ocorrendo importantes pesquisas arqueológicas e antropológicas sobre as origens do homem americano, especialmente sob a coordenação da pesquisadora Niède Guidon. Ela nasceu em 1933, em São Paulo, e se formou em História Natural pela USP. Estudou arqueologia na Sorbonne de Paris. Desde 1963 ela sabia da existência de um sítio arqueológico no Piauí e a partir de 1973 ela passou a trabalhar na região. Em 1986 ela fundou lá na região o Museu do Homem Americano, da qual é ainda diretora.

Serra da Capivara, Piauí
Nessas pesquisas arqueológicas, Niède encontrou pinturas feitas em pedras, ossos, pedaços de cerâmica, ferramentas, além das encontradas nas paredes de pedra das montanhas da região. Usando o método do carbono 14 para datar alguns ossos humanos lá encontrados, ela e outros pesquisadores chegaram à conclusão de que eles tinham 12 mil anos de idade.

Nossos antepassados brasileiros tinham também seus artistas e, convivendo no mesmo período (o madaleniano de 13 mil anos a.C) que os outros humanos espalhados em diversas regiões do planeta, começaram a desenhar e a pintar mais frequentemente a figura humana. Sejam em forma de estatuetas, sejam em forma de gravura, desenho ou pintura, os artistas registraram esse salto evolutivo da humanidade.

Podemos dizer – ao observar essas manifestações do homem da pré-história – que a arte não era algo à parte das outras atividades da vida de então. Ela tinha um lugar e um papel fundamental. Muito provavelmente as manifestações artísticas do homem ao longo da história dos últimos 50 mil anos vêm cumprindo um papel primordial em nossa evolução intelectual assim como em nosso processo civilizacional. 

"Bouquet de mãos", localizada no teto a 7 metros de altura, descoberta por Luc-Henri Fage e Michel Chazine,
na ilha de Borneu, com idade de 12 mil anos a.C.

A Vinícius de Moraes


Porque hoje o poeta Vinícius de Moares faria 99 anos... E porque ele sonhava um mundo mais bonito, viva Vinícius, viva a Poesia, viva a Arte!

MUNDO MELHOR

Vinícius de Moraes


Você que está me escutando 
É mesmo com você que estou falando agora 
Você que pensa que é bem 
Não pensar em ninguém 
E que o amor tem hora 
Preste atenção, meu ouvinte 
O negócio é o seguinte 
A coisa não demora 
E se você se retrai 
Você vai entrar bem, ora se vai 

Conto com você, um mais um é sempre dois 
E depois, mesmo, bom mesmo, é amar e cantar junto 
Você deve ter muito amor pra oferecer 
Então pra que não dar o que é melhor em você? 
Venha e me dê sua mão 
Porque sou seu irmão na vida e na poesia 
Deixa a reserva de lado 
Eu não estou interessado em sua guerra fria 
Nós ainda havemos de ver 
Uma aurora nascer 
Um mundo em harmonia 
Onde é que está a sua fé 
Com amor é melhor, ora se é

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Como pintar um quadro de 11 mil euros

François Cluzet e Omar Sy, atores do filme
Neste final de semana, às vésperas das eleições municipais, fui assistir ao filme “Intocáveis”, dos diretores franceses Eric Loredano e Olivier Nakache.

É um belo filme, do começo ao fim. A história, tocante. Conta como Driss, um senegalês morador da periferia de Paris, consegue um emprego de “tomador de conta” de um rico aristocrata, Phillipe, que ficou tetraplégico após uma queda de parapente. O filme é baseado na história real entre o milionário Phillipe Pozzo di Borgo e seu acompanhante, o argelino Abdel Sellou.

O papel desempenhado pelo ator Omar Sy, que morou na periferia de Paris assim como seu personagem Driss, traz à tona algumas reflexões. Em primeiro lugar, como se trata de uma história de amizade onde se cria uma profunda relação de confiança entre dois homens de duas classes tão distintas, o grau de humanidade implícita nessa história é muito comovente. De um lado, um negro pobre, que mora com a mãe e irmãos num pequeno cubículo de um bairro da periferia. Sua mãe é faxineira em prédios de escritórios. Seu irmão mais novo, traficante. Ele próprio, passou uma temporada no presídio por alguma infração cometida anteriormente. Do outro, um homem rico, branco, que mora num apartamento imenso e luxuosamente decorado, mas que está tetraplégico e depende, assim, completamente dos cuidados de Driss.

O filme mostra, todo o tempo, as diferenças entre o mundo de Phillipe – o dos ricos – e o mundo de Driss e sua família – os pobres.

Não indo muito longe na interpretação, me atenho ao que mais me interessa desse roteiro. Além das evidentes diferenças entre os dois mundos, o filme também mostra como existe uma lacuna muito grande dentro da cultura e da arte, que também opera uma separação de classes. Intencionalmente ou não, o filme ridiculariza a prática cultural burguesa: a arte contemporânea é um embuste, uma forma a mais de investimento financeiro; as sessões de ópera e música clássica, para platéias da elite “bem-arrumada” são, aos olhos de Driss, pura chatice; os poemas que Phillipe (François Cluzet) costuma recitar, ele também ridiculariza. A educação que o menino pobre e negro recebeu em sua escola não é a mesma educação refinada do patrão Phillipe: o acesso à literatura, a museus, a recitais de música, a assimilação dos símbolos da tradição cultural e artística ocidental passaram bem longe da cultura “aprendida” por Driss na rua, nos guetos, na luta pela sobrevivência.

Há uma cena em que Driss acompanha Phillipe a uma galeria onde está havendo uma exposição de arte contemporânea. Os dois param diante de uma tela em branco, com uma mancha vermelha de tinta jogada na tela. Phillipe diz que aquilo lhe transmite calma. Driss, gozador do modo de vida do patrão, lhe garante que poderia fazer melhor do que aquilo. Uma atendente se aproxima e anuncia o valor do quadro: mais de 40 mil euros! Driss não se conforma como alguém pode pagar tão caro por uma tela branca manchada de tinta. O mesmo que dizer que o mundo burguês de Phillipe tem também códigos culturais guiados pelo valor monetário. Nesse mundo onde as regras de etiqueta tornam tudo uma perfeita chatice, os valores subjetivos e as relações humanas estão também submetidos ao poder do dinheiro. Driss parece mostrar a Phillipe que em seu mundo falta naturalidade, espontaneidade e, num certo sentido, profundidade e sinceridade nas relações.

Mas Driss resolve pintar um daqueles quadros. Se vale tanto assim, não custa tentar. Phillipe, que já se divertia com esse ajudante que ia contra as regras de seu mundo em todos os momentos, resolve sugerir a um amigo, rico como ele, que comprasse o quadro de Driss por 11 mil euros. O amigo, um investidor, não se arrisca a perder um provável grande negócio. Enquanto isso, Driss e Phillipe se divertem. E nós, na platéia, nos divertimos com o ridículo desses signos burgueses que incluem a chamada arte contemporânea. Que não diz nada, não significa nada. Mas vale muito dinheiro!

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Uma homenagem a Eric Hobsbawm

Eric Hobsbawm
Morreu hoje, 1 de outubro, o historiador Eric Hobsbawn. Era uma figura das mais célebres do marxismo britânico, tendo produzido uma rica obra que ajudou na formação de dezenas de milhares de pessoas ao redor do mundo, dentro da visão marxista da história.

Sua história de vida é das mais ricas: era criança ainda em Viena quando Freud (o pai da psicanálise) já era famoso, estudou em Berlim nos últimos dias da República de Weimar, depois estudou em Londres e se tornou militante do Partido Comunista Britânico. Foi também crítico de Jazz, professor convidado em uma Universidade da Califórnia (EUA) justamente no período em que havido surgido o movimento hippie.

Hobsbawm era um marxista apaixonado. Em sua autobiografia "Franco-atirador", ele descreveu a última manifestação do Partido Comunista alemão na legalidade, da qual ele participou, em Berlim, no dia 25 de janeiro de 1933: "Assim como o sexo, a  única atividade que combina experiência corporal a uma emoção intensa elevada ao mais alto grau é a participação em uma manifestação de massas num momento de grande exaltação política". Ou seja, é essa sensação de se sentir um ser ativo, um agente da História.

Mas minha homenagem a este grande pensador da humanidade é a de traduzir aqui um pequeno trecho de seu artigo "Sexe, symboles, vêtements et socialisme", justamente no ponto em que ele analisa a grande figura feminina presente no centro do quadro de Eugène Delacroix, "A Liberdade guiando o povo".

Diz Hobsbawm: 


"Começaremos por esta que deve ser a mais famosa das pinturas revolucionárias, mesmo que seu autor não tenha sido tão famoso quanto sua obra: quero falar de "A Liberdade guiando o povo" de Delacroix (1831). O tema é conhecido de todos: uma moça com os seios à mostra, com um boné frígio na cabeça e, segurando uma bandeira, atravessa os corpos empilhados sobre a barricada enquanto que a seguem outros homens armados e vestidos de forma característica. 
Muito se explorou sobre este tema. Mas de qualquer maneira, a forma na qual os contemporâneos dele interpretaram este quadro não deixa dúvida: para eles, esta Liberdade não tinha nada de uma figura alegórica, mas se tratava de uma mulher bem real (provavelmente inspirada na heroína Marie Deschamps, cujas façanhas deram a Delacroix a ideia da pintura), uma mulher do povo, pertencente ao povo, orgulhosa de  pertencer ao povo:
"É uma mulher forte com poderosos seios,
com voz rouca, encantadoramente dura
Quem...
Ágil e marchando com passos largos
Gosta do grito do povo..."          
(Barbier, "A curadora")
Balzac a via como uma camponesa: "a pele sombria, ardente, a imagem mesma do povo". Orgulhosa e insolente (sempre segundo Balzac), ela representava a antítese exata da imagem da mulher burguesa. Por outro lado, como não deixam de sublinhar seus contemporâneos, ela era uma mulher sexualmente liberada. Barbier, cujo poema "A curadora" foi fonte de inspiração para Delacroix, vai até inventar toda a história de sua emancipação sexual. Ela:
"Que não possui amor senão pelo seu povo
que não cede seu largo flanco
a não ser às pessoas fortes como ela"
após ter, "criança da Bastilha", excitado o mundo inteiro, cansada de seus primeiros amantes, segue as bandeiras (de Napoleão) e uma "capitã de 20 anos", finalmente retorna,
"Sempre bela e nua
Com uma echarpe de três cores"
para ajudar seu povo a vencer os "Três Gloriosos".
(...)
A novidade da "Liberdade" de Delacroix é, portanto, esta identificação da imagem da mulher nua com uma verdadeira mulher do povo, emancipada, e que joga um papel ativo, como uma dirigente do movimento dos homens. De quando data precisamente essa nova imagem revolucionária? Esta é uma questão que compete aos historiadores da arte responder.  Para nós, observamos duas coisas. Primeiro, por sua natureza concreta ela rompe com o papel de simples alegoria que era ordinariamente atribuída às figuras femininas; agora ela conserva a nudez, nudez que o pintor não procura jamais dissimular e que os críticos perceberam. Esta mulher não está lá para inspirar nem para representar: ela AGE. 
Em seguida, ela se distingue claramente como uma mulher combatente da Liberdade, diferente daquela que a iconografia tradicional descrevia, onde o melhor exemplo é Judith que, assim como David, representava a luta do fraco contra o forte. Diferentemente desses dois heróis, a "Liberdade" de Delacroix não está só e não tem nada de fraca. Muito ao contrário, ela encarna toda a força concentrada do povo invencível. 
"O cerco de Saragossa", de David Wilkie, 1828
Mas ela, enquanto ser sexual, se separa da virginal Joana D'Arc, por exemplo. Se trata de uma mulher jovem, nem mãe nem esposa - pelo menos podemos supor isso. Podemos medir o contraste desta imagem revolucionária e seu equivalente não-revolucionário, comparando o quadro de Delacroix com uma outra obra que lhe é quase contemporânea, "Le siège de Saragosse" (O cerco de Saragossa), de David Wilkie (1828). Nesta, vemos uma heroína bem real, inteiramente vestida, mas numa postura alegórica, com um camponês de dorso nu agachado perto dela. O quadro é um episódio das guerras pré-napoleônicas. 
Ora, Byron que lhe descreve em "Childe Harold", exprimindo toda a sua admiração pelos combatentes espanhois, insiste no fato de que a "Fille de Saragosse" não está postada fora dos limites disso que os homens, do alto de sua superioridade, avaliam ser um comportamento convencional para uma mulher: "Portanto as moças da Espanha não são uma raça de Amazonas, mas mulheres experientes em todos os encantos do amor". E ele busca uma explicação para esse heroísmo pouco feminino: ela está sendo simplesmente leal a seu marido morto. Seus atos manifestam a "ferocidade de uma pomba". 
Estamos, então, bem longe da "Liberdade".
É a revolução de 1830 que constitue - parece - o ponto culminante dessa imagem da Liberdade como uma moça jovem ativa, emancipada e aceita como dirigente pelos homens, ressaltando-se que o tema ainda era popular em 1848, provavelmente por causa da influência de Delacroix sobre os outros pintores. Ela surge, assim, sempre nua em seu boné frígio, inclusive na "Liberdade sobre as barricadas" de Millet (Jean-François), apesar de que o contexto já tinha se modificado. Mesma coisa nos esboços de Daumier, "L'émeute" (O motim). Por outro lado, as raras representações da Comuna e da Liberdade que datam de 1871 são em geral mostradas nuas (como o desenho de Rops) ou os desenhos descobertos (depois). 
O papel notoriamente ativo cumprido pelas mulheres durante a Comuna de Paris, inspirou artistas de outros países que usaram como símbolo para ilustrar essa revolução os traços de uma mulher não-alegórica (ou seja, nua) e manifestadamente militante. A tendência a representar o conceito revolucionário de liberdade ou de república através de uma mulher nua ou, mais frequentemente, com os seios descobertos, continuou a existir. Desta forma, a famosa estátua da República, do communard (membro da Comuna) Dalou, na Place de la Nation (em Paris), apresenta o seio nu. Deveria haver uma pesquisa mais vigorosa para verificar se a exposição dos dois seios (ou de um só) se associava sempre à revolta ou, em sua falta, à polêmica, como pode ser o caso de um desenho feito na época do "Caso Dreyfus" (janeiro de 1898) onde vemos uma Marianne jovem e virginal, com um seio nu, protegida de um monstro por uma matrona Justiça com armas na mão, com esta legenda: "A Justiça: Não tenha medo da besta. Eu estou aqui!"
Emblema da Sociedade dos Carpinteiros
londrinos
Mas, por outro lado, Marianne, a República institucionalizada, aparece, doravante, normalmente vestida, mesmo que ligeiramente, apesar de suas origens revolucionárias. É de novo o reino da decência. E pode ser também o da mentira, na medida em que a nudez caracteriza em princípio a figura alegórica e feminina da Verdade - sempre frequente, notadamente nas caricaturas que foram feitas sobre o "Caso Dreyfus". 
Nua ela permanece na iconografia do respeitável movimento trabalhista britânico, como vemos no emblema da "Amalgamated Society of Carpenters and Joiners" (sociedade dos carpinteiros e marceneiros unidos) de 1860, antes que a moral vitoriana se impusesse.
(...)
Tais imagens são particularmente significativas na medida em que, de um lado, elas têm um lugar evidente em todo o então jovem movimento socialista que elabora sua própria iconografia e, por outro, (...) se inspira na imagerie revolucionária francesa, onde a Liberdade de Delacroix procede igualmente".
"A Liberdade guiando o povo", de Eugène Delacroix, 1831, Museu do Louvre, Paris, França

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O registro das cidades pelos desenhistas urbanos

Vista de Delft, de Jan Vermeer, 1660-61, óleo sobre tela, 96,5 x 177,5 cm, Cabinet Royal de Peinturesm La Haye
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Artigo publicado originalmente na Revista Princípios n. 120, setembro de 2012
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Há dois anos, tomei conhecimento a respeito dos desenhistas urbanos reunidos no site com o título Urban Sketchers. São pessoas que começam a se agrupar, em vários lugares do mundo, simplesmente para fazer desenhos de observação de suas cidades, ou das cidades por onde passam em suas viagens. Reunidos anualmente já no III Simpósio Internacional, que este ano aconteceu na República Dominicana, eles começaram um movimento de interação, de troca de experiências, juntando gente das mais diferentes línguas para se encontrarem numa mesma linguagem: a dos que desenham suas cidades e suas experiências pessoais com elas.

Aqui no Brasil, após o II Simpósio Internacional de Lisboa, foi criado o movimento – e o site – dos desenhistas urbanos brasileiros, numa iniciativa de Eduardo Bajzek, João Pinheiro e Juliana Russo, três artistas com anos de experiência na arte do desenho de observação. Por enquanto, esse movimento está mais concentrado em São Paulo, mas vários Estados brasileiros já possuem algum correspondente desenhista urbano. A intenção desse grupo – do qual também faço parte – é poder abarcar todos os Estados com pelo menos uma pessoa como correspondente desenhista. Nossa ideia é organizar encontros estaduais, regionais e nacional dos desenhistas urbanos.

Desenho meu no Pátio do Colégio, 2012
Mas o grupo é ainda maior do que os Urban Sketchers. Em várias cidades do Brasil e do mundo, pessoas – individualmente ou em grupo – tem desenhado o cotidiano de suas ruas, bairros e cidades, a partir da observação direta, seja nas ruas ou em ambientes internos como bares, bibliotecas, casas, livrarias, shows, teatros, parques. São desenhos que contam a história das cidades e das pessoas que moram nelas, ajudando a dar um olhar mais humano para essas aglomerações onde convivem milhares, senão milhões de pessoas.

Mas essa forma de prática artística não é uma novidade. Somente para dar dois exemplos: o pintor holandês Jan Vermeer (1632-1675) registrou em sua pintura a cidade holandesa de Delft, por volta de 1660. Essa pintura de Vermeer (acima), além de deixar um registro daquele tempo, inspirou o escritor francês Marcel Proust, que dedicou uma parte do seu livro Em Busca do tempo Perdido a falar sobre essa obra que o apaixonava. Um segundo exemplo mais próximo de nós é o do artista francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), que viveu 15 anos aqui no Brasil, integrando a Missão Francesa, e fez dezenas de desenhos e aquarelas enquanto percorria os Estados fazendo registros da costa brasileira, das casas, das paisagens da mata nativa, assim como retratos de índios, negros e brancos em seu cotidiano. Debret registrou até mesmo as festas e tradições populares, deixando uma rica documentação sobre um período histórico brasileiro que já se perdeu no tempo.

Três desenhistas urbanos de São Paulo

Para tornar este artigo um pouco mais rico, resolvi conversar com três grandes desses “croquiseiros” urbanos que moram e trabalham nessa grande metrópole brasileira, uma cidade onde todos os números tendem a cifras enormes: milhões de carros trafegam pelas ruas, milhões de pessoas se deslocam diariamente de casa para seus locais de trabalho, centenas de bairros formam esta cidade, com milhares de ruas, milhões de casas, milhares de pessoas se cruzando em suas avenidas...

Carla Caffé

Obra de Carla Caffé para a exposição
"A(e)rea Paulista", na Sala Funarte e na
passagem subterrânea da Rua da Consolação
A primeira que entrevistei foi a arquiteta Carla Caffé, formada pela FAU-USP no início da década de 1990, que foi também diretora de arte do filme “Central do Brasil”, além de outros filmes e peças de teatro. Carla mantém um ateliê em São Paulo, onde desenvolve diversos projetos de desenho, assim como de arquitetura e direção de arte.

Carla Caffé tem 47 anos e começou a desenhar na rua desde cedo. Ela mesma conta que desde os tempos de colégio já andava com seu caderno de desenho e até mesmo quando estava esperando pelo ônibus “era um convite para rabiscar” o que via à sua volta. “Eu tinha mais vontade de desenhar na rua do que em casa”, diz ela.

Foi fazer Arquitetura já “com a perspectiva de que não seria arquiteta”, mas com a intenção de aproveitar essa formação acadêmica para que pudesse continuar desenhando. Mas ela diz gostar muito da Arquitetura pois aprendeu muito como pensar a partir de seus conceitos: espacialidade, proporcionalidade, circulação, lógica...

Mas uma das experiências mais marcantes que Carla Caffé teve no início de sua carreira de desenhista urbana, foi a de ter conhecido uma cidade como Nova York, quando foi acompanhar a Companhia de Teatro Ópera Seca. Ela complementa: “Nos intervalos do trabalho, eu saia para desenhar nos museus. Mas as ruas de New York são mais interessantes que os museus, então passei a desenhar nas ruas como forma de conhecer e absorver o lugar. Um desenho de investigação, de registro. Nessa época sonhava em ser Corto Maltese, ou melhor Hugo Pratt, desenhista de Corto que viajava desenhando as estórias em Quadrinhos”. Ela tomou gosto por isso e não parou mais de desenhar, quando voltou a São Paulo.

Desenho de Carla Caffé
E me contou que sempre se interessou pelo tema do Urbano, pela vida urbana, que a fascina “assim como um gesto arquitetônico”. “Saio nas ruas e os pensamentos que me invadem geralmente são questões urbanas. Por ora estou muito envolvida com a questão da mobilidade urbana”, acrescenta ela, que aponta que esse movimento de incentivo ao uso cada vez maior das bicicletas nas cidades podem “desenhar” cidades mais humanas.

Pergunto a Carla como ela vê esse tipo de registro de observação das cidades por onde passa? E ela diz que acha muito importante, porque “o que o desenho registra é diferente do registro fotográfico. O desenho tem a questão de permanência, da escuta, um tempo diferente de um clique. Com o desenho você também pode aproximar, afastar, inverter, costurar, pode moldar a paisagem de acordo com o seu coração.” E complementa dizendo que a Arte é parte intrínseca de sua vida, uma “forma de sanidade”, lembrando o que diz a artista Louise Bourgeois. Para Carla Caffé, viver numa cidade tão grande como São Paulo e poder desenhá-la é uma forma de “dar um sentido a tudo isso, a essa passagem pelo plano terrestre"

Carla Caffé publicou, em 2009, um livro com desenhos que ela fez da Avenida Paulista em São Paulo, pela Editora Cosac&Naify.

Hugo Paiva

Depois de Carla, me dirigi a outro arquiteto também formado pela FAU, neste ano de 2012. Seu nome é Hugo Alves Paiva, de apenas 29 anos de idade, mas que já projeta grandes planos como desenhista urbano para sua vida.

Sketch de Hugo Paiva do centro de São Paulo
O sonho de Hugo é poder fazer uma longa viagem ao redor do mundo com um sketchbook (caderno de desenho) nas mãos. Em sua recente experiência acadêmica, Hugo teve que apresentar um trabalho de conclusão de curso que ele voltou para o desenho urbano. Passou por várias cidades brasileiras, de São Luís do Maranhão a Fortaleza, no Ceará, além de outras cidades, registrando o que via em seu caderno de desenho. O resultado disso ele colocou num livro que conta toda essa experiência como uma espécie de solitário peregrino desenhador das ruas. De São Paulo especialmente, onde mora.

Hugo conta que começou a desenhar antes mesmo de saber escrever. “Minhas primeiras referências relacionadas ao “drama”, que mais tarde eu redescobriria nos quadros de Rembrandt, ou nos edifícios de Frank Lloyd Wright de uma forma muito mais intensa; ou aos feitos heroicos muito melhor construídos nas epopeias de Ulisses ou Hércules, foram os programas vespertinos de super heróis japoneses, como o Jaspion ou Changeman. A emoção que eu tinha ao ver os gigantes daqueles programas infantis em conflito, que hoje me lembram os gigantes magistralmente pintados por Goya, de certa forma me acompanham até os dias de hoje. Sempre tento passar este sentimento aos trabalhos que faço.”

Desenho de Hugo Paiva
Ele diz que resolveu seguir pela carreira da Arquitetura por causa de seu interesse relacionado aos edifícios que, desde sua infância, o impressionavam pela grandiosidade e imponência. “Porém, apesar de ter em mente a responsabilidade social que temos como profissionais dessa área, como o problema latente de moradias, ou mesmo o crescimento desordenado de nossas cidades a cada dia mais doentes, acabei me reaproximando de questões mais relacionadas ao desenho e à percepção da imagem da cidade”, ele diz.

Como eu, Hugo Paiva faz parte do movimento dos Urban Sketchers brasileiro e sai para desenhar nas ruas de São Paulo, ou sozinho, ou unido ao nosso grupo que se reúne mensalmente em algum canto de São Paulo para desenhar. E acrescenta: “Apesar de ter feito alguns desenhos e croquis durante os exercícios propostos pela faculdade, foi no ano de 2010 que comecei a realizar essa atividade de uma forma mais sistematizada. Frequento o ateliê do pintor Mauricio Takiguthi há algum tempo, e durante as conversas nas aulas, surgiu a ideia de sair e desenhar pelas ruas. O arquiteto Eduardo Bajzek, também aluno do Takiguthi, já tinha experiência em fazer registros urbanos e me passou muito do que eu atualmente sei. Após alguns encontros, os desenhos começaram a se suceder de forma natural.”

Desenho de Hugo Paiva
Nessa relação com outros artistas, Hugo considera muito importante essa troca de experiências, as possibilidades de diálogo que se abrem. “Sair pelas ruas e desenhar, muda de sentido a cada momento. Mas basicamente, o prazer está em, através das ferramentas do desenho, traduzir os sentimentos dos lugares, além do desafio de registrar a dança das luzes no ambiente urbano.”

Hugo acrescenta que o ato de desenhar na cidade “nos coloca na condição de estrangeiros ao nos recortarmos da realidade” e que fazer isso em cidades diferentes “nos coloca duplamente nessa situação”. Ele cita o escritor algeriano Albert Camus que disse que isso “amplifica nossa percepção, faz com que observemos as coisas de uma forma muito mais intensa. Assim como Eugène Delacroix – continua Hugo – que viu em Marrocos muitos motivos dos quadros que viria a pintar, desenhar em outras cidades nos traz a experiências muito intensas”.

João Pinheiro

O terceiro artista que escolhi para entrevistar sobre o tema, é o ilustrador João Pinheiro. Sua história de vida, sua formação, seu caminho como desenhista, é diferente dos dois artistas anteriores, mas o desejo que o move é o mesmo que nos move a todos os que gostamos de registrar aquilo que vemos em nossas cidades.

Desenho de João Pinheiro
João Pinheiro tem 31 anos e mora na Zona Leste de São Paulo. “Até os meus 15 anos esse foi o meu mundo conhecido, minha Macondo, onde vi e aprendi a maior parte do que sei da vidinha da gente”, diz ele.

Desde criança, João se interessou pelos desenhos das revistas em quadrinhos: “desenhava em folhas de sulfite, direto com caneta Bic, sem esboço, e depois colava as folhas e fazia a capa com cartolina”, conta ele. Aos 13 anos se matriculou em dois cursos na Oficina Cultural Alfredo Volpi, que fica no bairro de Itaquera, que “felizmente funciona até hoje”. Naquela época, 1994, ele começou a aprender os fundamentos do desenho e da pintura: anatomia, perspectiva, movimento e também a escrever roteiros e todo processo de criação de uma história em quadrinhos.

Foi através do professor de pintura, Jair Glass, que João Pinheiro conheceu a história do pintor Alfredo Volpi. “Na época, lembro que não gostei muito das suas pinturas, mas fiquei encantado com a sua história. Parecia um romance. Um operário que virou pintor. Um pintor de paredes que pintou sua primeira obra de arte numa caixa de charutos e que mais tarde seria consagrado com o prêmio de melhor pintor nacional na segunda Bienal de São Paulo em 1953. Uma bela história. Depois de ouvi-la, pensei: ‘Quando crescer eu quero ser pintor ou desenhista ou algo mais ou menos por aí. Enfim, sei que quero trabalhar com desenho’”.
Mas sua primeira experiência com desenho de observação na rua aconteceu quando o professor o levou para desenhar uma igreja numa ruazinha perto da oficina. Eles eram 15 alunos. E João diz que esse “foi um dos dias mais felizes da minha vida e a primeira vez que fiz um desenho de observação na rua”.

Desenho de João Pinheiro
Aos 19 anos, João Pinheiro ingressou na Faculdade Paulista de Artes para cursar Artes Plásticas e voltou a fazer desenhos de observação diariamente. Seu caderno de desenho, a partir de então, nunca mais saiu de sua mochila.

Inicialmente ele desenhava como exercício, fazia esboços, anotava ideias que mais tarde pudessem ser utilizadas em pinturas ou ilustrações. “Com o tempo, depois de preencher alguns cadernos, explorar novos temas, percebi que os desenhos que eu fazia de observação tinham evoluído, meu traço tinha melhorado e eu tinha tomado gosto por observar”, acrescenta. E conta que atualmente seu trabalho pessoal está concentrado, quase que em sua totalidade, nos cadernos e nos desenhos de observação.

E afirma que o desenho de observação direta nas ruas, para ele “significa tudo o que aprendi até hoje, minha melhor escola”. E completa dizendo que sabia de antemão que tinha descoberto um caminho e não um fim, “porque o desenho urbano não tem fim”. Através da observação da cidade João Pinheiro diz que aprendeu muito, mas também viu com isso que há muito ainda o que aprender, sempre.

João Pinheiro tem predileção por desenhar pessoas no metrô, nos ônibus, assim como a arquitetura antiga e excêntrica da cidade, os postes elétricos, as árvores. “Gosto, principalmente, dos locais não turísticos, como periferias, locais abandonados e deteriorados pelo tempo”, complementa.

Essa ideia de carregar um caderno de desenho para onde quer que se vá, de desenhar nele e anotar ideias que surgem em plena área pública é uma ideia muito bonita, diz João. “Fico contente em saber que tantas pessoas hoje em dia compartilham dessa minha paixão, aliás, um número cada vez maior”.

E se pergunta: “O que essas pessoas estão fazendo? Registrando suas vidas? Tentando ver além da camada grosseira da nossa percepção comum? Registrando seu tempo? Anotando lembranças? Treinando o seu desenho? Criando arquivos de paisagens na mente? Transformando o olhar para as futuras gerações? Certamente tudo isso e muito mais.”

Desenho meu na Estação da Luz
Assim como para Hugo Paiva, João Pinheiro diz que desenhar o cotidiano é um “exercício de sentir-me um estrangeiro em minha própria terra e com isso conseguir ver as coisas cotidianas por outro prisma, completamente novo, além do superficialmente conhecido.” Quando se desenha algo que se vê diariamente pelo caminho, sejam pessoas ou lugares conhecidos, é como se os estivesse vendo pela primeira vez, é como se começasse a entendê-los. E João aponta que essa prática do desenho torna a pessoa cada vez mais criativa, lembrando-se do que disse o arquiteto e paisagista James Richards: “Não há melhor maneira de alimentar a criatividade do que desenhar”.

Esse universo do desenhista das ruas e cidades é parte do grande universo da arte, que mobiliza as pessoas há séculos. João Pinheiro lembrou uma frase do diretor de cinema russo Andrei Tarkovski que escreveu em seu livro Esculpindo o tempo: “De qualquer modo, fica perfeitamente claro que o objetivo de toda arte – a menos, por certo, que ela seja dirigida ao ‘consumidor’ como se fosse uma mercadoria – é explicar ao próprio artista, e aos que o cercam, para que vive o homem, e qual é o significado da sua existência. Explicar às pessoas a que se deve sua aparição neste planeta, ou, se não for possível explicar, ao menos propor a questão.”

João Pinheiro é o autor, roteirista e ilustrador, da HQ Kerouak, publicada em 2011 pela Devir Editora, além de diversos livros de ilustração infantil, entre os quais o mais recente: uma adaptação do conto O Espelho de Machado de Assis para a linguagem dos quadrinhos, com roteiro do poeta e escritor Jeosafá Gonçalves.
Desenho de João Pinheiro, uma rua da zona leste de São Paulo
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