segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Indústria cultural ou variedade?

Foto referente ao filme "Quero ser John Malcovitch"
No último dia 17 de setembro, o jornal português “Avante!”* publicou um artigo de autoria de Manuel Augusto Araújo, arquiteto e crítico de arte português, intitulado “Tempo de antena cultural”. Como concordo com suas opiniões expressas nesse texto, tomei a liberdade de editá-lo e adaptá-lo à nossa realidade brasileira, que não é muito diferente; talvez seja mesmo pior do que a portuguesa, em termos de descaso das autoridades em relação à problemática da Cultura.

Manuel começa seu artigo criticando o atual governo português, que se deixa levar pela exaltação do mercado financeiro, “o que não desresponsabiliza os artistas, os produtores culturais que concorrem para esse estado de coisas actual. Degrada a cultura nos seus múltiplos sentidos de afirmação da condição humana e da transformação da vida. O que não é compaginável com a sedução pelo dinheiro”.

Ele critica profundamente as políticas culturais baseadas nas regras do Mercado Financeiro. “O que anteriormente tinha um forte vínculo com o saber, a transmissão do saber e do saber-fazer na cultura e na ciência, hoje são achas na fogueira da promoção. O fundamental, o que interessa é vender, vender a qualquer preço”.

No nosso caso brasileiro, estamos passando por uma fase, há décadas, de supremacia das políticas que favorecem as indústrias culturais e suas culturas massificadas. Nossos governos, incluindo o atual, derramam bilhões de reais para manterem os sinais de televisão da péssima Rede Globo, por exemplo, que leva seus padrões de vida, de pensamento, de estilo para todas as regiões do nosso país. Estamos atravessando uma fase que provavelmente nos levará a uma standardização da nossa tão rica e variada cultura brasileira. A uniformidade cultural - já falei isso aqui há algum tempo atrás - é a morte da cultura!

Banda de pífanos de Caruaru
Ver a questão cultural como mais uma forma de agregar mais dinheiro aos bolsos dos já ricos agentes do Mercado Financeiro é o que tem sido a realidade do que vivemos. Mesmo que os agentes públicos atuais neguem esta forma de ver as coisas, mesmo assim não vemos acontecer de serem tratados no mesmo patamar o último espetáculo dançante de Cláudia Raia e os músicos da Banda de Pífano de Caruaru. Se o Estado brasileiro pouco se importa atualmente em incentivar de norte a sul do Brasil as ricas e variadas manifestações culturais do nosso povo, acontece que isto continuará sendo feito por quem quer ter lucro, ou seja, apostando na mais nova dupla sertaneja que gere milhões, porque dar incentivo aos brincantes do Bumba meu Boi da Maioba de São Luís do Maranhão não interessa ao Mercado.

Diz Manuel, muito bem dito: “Para quem detém poder na área da cultura, as manifestações culturais são instrumentos de promoção publicitária dos bens culturais. Uma visão que não se distingue da dos departamentos comerciais, do marketing de qualquer empresa, actue ou não actue no campo da produção de bens culturais”.

Ele continua apontando a visão de mercado que tem seu foco no lucro e não na promoção do saber:

Uma instalação de uma edição qualquer
da Bienal de Arte de Veneza
Bienais de artes, festivais literários, colóquios, exposições, lançamento de livros e discos, e o que a imaginação do mercado endrominar, que se multipliquem não com qualquer objectivo cultural mas a bem da promoção publicitária, da venda do «produto» independentemente do valor efectivo”.

“A cultura é vista como um enorme circo iluminado por um sol enganador em que a omnipresente linguagem dos mercados esvazia de significado da cultura, do que é cultural na diversidade da transmissão e aquisição de saberes”.

Diz mais:

“O direito à cultura reduz-se ao direito dos consumidores de escolher um livro, um filme, ir a um concerto, de visitar museus ou exposições de que perdeu o norte nos catálogos de farta oferta em que deliberadamente se confunde o que é entretenimento, padronizado por indústrias que exploram um gosto médio sem espessura, que não obrigam nem incentivam qualquer reflexão, com as da criação artística e cultural que promovem e incentivam a transmissão e a produção de conhecimento”.

Na minha área - a das artes plásticas - por exemplo, nós que não temos um marchand, um agente qualquer do mercado de arte, ficamos à mingua em nossos ateliês, felizes que somos de vender um quadro a cada seis meses, ou de expor nas paredes de algum restaurante, que é o que restam aos artistas que vivem de fora do mercado. Pior do que isso, é a apropriação do Mercado Capitalista sobre o estilo da arte que se quer impor como prática, a tal da “arte contemporânea” que se limita à arte de conceito, à videos, à instalações, à pinturas sem sentido. Eu e mais tantos outros pintores, fazemos arte contemporânea simplesmente porque somos contemporâneos! Estamos vivos e bem vivos! A arte figurativa retoma um grande fôlego nos tempos atuais. Mas no Brasil não há um incentivo à variedade da produção artística, há o artista-standard que agrada aos agentes de Mercado. Em geral, eles são produzidos na ECA-USP e FAAP, em São Paulo, e na Escola do Parque Lage, no Rio. Essas escolas produzem para o Mercado. E prestam um grande desserviço à arte brasileira, quando espalham ideias do tipo “desenhar não é mais preciso”. 

Isso sem falar no fato de que as artes plásticas se converteram em um dos melhores produtos para aqueles que precisam lavar dinheiro. Traficantes e corruptos de todos os tipos têm investido muito dinheiro no chamado "mercado de arte".

Bumba-meu-boi do Maranhão
Mas o Estado brasileiro também se demitiu em promover a cultura e os artistas que não passam pelo crivo da indústria cultural. Parece que em Portugal também, como afirma o crítico Manuel Augusto: “A primeira das muitas causas de não poder haver qualquer expectativa desse género é a demissão do Estado em promover a cultura, nomeadamente através do serviço público de rádio e televisão, meios que tinha a obrigação de utilizar. Em linha com essa demissão, estão os critérios de atribuição de subsídios à criação artística e cultural que deveriam privilegiar a descentralização cultural e não os de uma suposta valorização da produção artística nacional nos mercados internacionais com critérios mais que duvidosos”.

Ele continua criticando essa política de incentivo a uns poucos e de descaso a muitos artistas. “Veja-se o apoio concedido à dupla João Louro/Maria do Corral (artistas portugueses contemporâneos), que se inscrevem na grande farsa que é a arte contemporânea, que tanto deslumbram Barreto Xavier e no apoio recusado à XVII Festa do Teatro/Festival Internacional de Teatro de Setúbal, com significativas diferenças de custos em euros, a bitola da Secretaria de Estado da Cultura, para se perceber os não desígnios culturais da governação”.

“As palavras-chave dessas políticas ditas culturais são mercado e promoção”. 

No nosso caso, repito: a falta de política cultural do governo brasileiro permite que ela seja feita e colocada em prática por quem quer gerar e obter lucro com a produção artística e cultural. O resultado, que já vem ocorrendo há décadas, é uma cultura brasileira que se empobrecerá na direção de uma uniformidade cultural, imposta pela indústria cultural. Não queremos um Brasil standardizado culturalmente! Queremos um Brasil rico culturalmente, com sua cultura variada em seus quatro cantos!

O que Manuel Araújo critica lá, criticamos cá. Nós, produtores culturais, além de tudo somos obrigados a não limitar nossa ação ao que produzimos, mas - para que não morramos como artistas - a promover nós mesmos nossas obras. “Há uma fé ilimitada que todas as acções de promoção, desde que esse seja o objectivo primordial, são boas, não interessando se são excelentes ou medíocres”, diz ele. “Todos sabem, menos os governantes e seus agentes, que promover a mediocridade cultural tem o efeito de amplificar a mediocridade (grifo meu). Legitimar a mediocridade até se atingir o ponto de não retorno da ausência, do vazio cultural, no aniquilamento da qualidade, empurrando os cidadãos para a iliteracia cultural, o que os amputa da capacidade do exercício da cidadania”.

“A afirmação e a convicção de que «a cultura» gera lucro, o ex-libris da Economia da Cultura e dos enormes equívocos das indústrias culturais e criativas, onde se confundem, sem inocência, actividades industrializadas de entretenimento com actividades sem lucro financeiro. Legitima os critérios da economia do dinheiro, os interesses dos patrocinadores, a contabilidade dos públicos.”

E como o capitalismo é um sistema que se baseia no lucro puramente, vai transformando o mundo num imenso depósito de bens de consumo e transformando a todos em consumidores. Mas nós somos mais do que consumidores neste mundo de meudeus! Somos todos diferentes, e esta é nossa riqueza! Somos seres humanos, cada um com cada cara, cada cor, cada história de vida...


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* Jornal Avante!, órgão do Partido Comunista Português

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

A poeira do Tempo - final

Máscaras da Commedia dell'Arte
Enquanto François Villon (1431-1463) (ver final do post anterior) escrevia seus poemas de morte ("Balada dos Tempos Perdidos", "Balada dos Enforcados" e outros) no final da Idade Média, na Itália foram se gestando as sementes dos futuros teatros populares e de improvisação, como a Commedia dell'Arte (leia mais aqui). Atores populares iam encenando textos numa linguagem mais próxima do povo, como reação à comédia erudita literária, que o povo não compreendia, de autores como Maquiavel, Ariosto, etc.

O personagem Polichinelo
  • Este teatro popular nascido no século XVI na Itália, especialmente em Veneza, retomava os conceitos do Carnaval, a festa onde se permitia comer carne e aproveitar os prazeres da vida, antes que chegasse a Quaresma, os 40 dias onde se lembra a morte de Cristo; enquanto seus personagens se escondiam atrás de máscaras, iam passando e repassando as intrigas reais e inventadas da sociedade local, arrancando risadas ou choro do populacho que se reunia em torno destes atores, os primeiros improvisadores, que podemos ver também como os antecessores dos nossos cantadores nordestinos e de nosso MC’s… 
  • Naqueles tempos também havia as rinhas de atores, as disputas e querelas, como ocorre com os repentistas do nordeste e com as atuais rinhas de MC's nas periferias de São Paulo...
  • Os personagens da Commedia dell'Arte usavam máscaras, ou tinham seu rosto pintado de branco, como Pedrolino, que na França ficou conhecido como Pierrot. Este era o mais triste dos personagens, com uma lágrima desenhada sob um dos olhos. Arlequim, que disputava com Pierrot o amor de Colombina, tem em seu nome uma origem que vem de duas culturas: ou deriva de Hellequin (chefe dos diabos no teatro medieval francês) ou de Eln Köining (chefe dos gnomos da cultura escandinava). Já Polichinelo, teria tido um nascimento um tanto estranho, pois teria aparecido num berço ao lado de um gato preto e uma ave de agouro, como se também descendesse do diabo... 
Tudo isso recolhido do rico imaginário popular que vinha desde a Alta Idade Média... E atravessou os tempos, como podemos ver a seguir.

"Inferno", pintura de
Hieronymus Bosch, cerca de 1490
  • Mas, ainda no século XVI, exatamente em 1517, é encenada pela primeira vez a peça “Auto da Barca do Inferno”, do português Gil Vicente. Os personagens discutem com o Diabo, comandante de uma das três barcas, e com o Anjo, comandante de outra, em qual delas vão entrar. No final, a maioria entra mesmo é na Barca do Inferno. Nesta peça, Gil Vicente tece duras críticas à sociedade da época.
Enquanto isso, na pintura abundavam registros de reflexão ascética de santos, eremitas, mártires ou monges contemplativos, como São Jerônimo, Maria Madalena, São Francisco de Assis, Santo Antão, etc. Vi inúmeros quadros pintados com cenas envolvendo estes santos, em minha viagem à Espanha deste ano.

É deste período também o surgimento deste ícone universal que é a imagem da Morte com um manto negro, portando uma foice com a qual vai ceifando vidas. É esta imagem que surge no baralho de Tarôt sob o número 13, o número do azar. Que, acrescenta Luís Calheiros, propõe como reflexão ao consultante um questionamento sobre “vícios e defeitos, propõe o arrependimento, o desprendimento, o aperfeiçoamento e a transformação radical e superação de tudo o que está ultrapassado, obsoleto e decadente”.

Enquanto o mundo se expandia, no começo do século XVI também nascia o Brasil.

Valeria a pena uma profunda pesquisa, Brasil a dentro, de como essas ideias nos atingiram em cheio desde os primeiros movimentos de construção do nosso país. Devagar, estou iniciando uma pesquisa em direção a isto, o que levará muito tempo, anos talvez. Mas a título de elucubrações iniciais, fico pensando na construção da nossa cultura baseada nestas três fontes distintas: aqueles europeus, os nossos indígenas e os africanos (sobre o assunto, Darcy Ribeiro escreveu o livro "O povo brasileiro"). Cada qual com sua cosmologia, sua visão de mundo, de vida e de morte.

Xilogravura do artista popular
pernambucano J. Borges,
"A briga da onça com a serpente"
De vida e de morte foi feita a nossa história. Nossos índios foram sendo dizimados ao longo dos séculos. Nossos afro-descendentes, para usar um termo atual, ainda não saíram de todo da Senzala porque a Casa Grande teima em não permitir… As tentativas de resistência, em nossa história, foram abatidas à bala, como aconteceu com a Canudos de Antonio Conselheiro, com Zumbi dos Palmares…

Estamos revivendo os períodos de maior violência da história da cultura brasileira, nestes tempos de 2015. De um lado, a perene vida difícil dos pobres nas periferias do Brasil - são “quase todos pretos”, como canta Caetano Veloso. São eles as maiores vítimas das redes de tráfico de drogas, pois por séculos de descaso de políticas públicas tornam-se reféns, e mesmo colaboradores dos verdadeiros bandidos. A expectativa de vida nas favelas e nas periferias das grandes cidades só diminui, por conta da violência policial e do tráfico de drogas. Em 2014, as pesquisas apontam que a violência da Polícia Militar cresceu 111%. Em 2015 deve ser muito maior, pois de uma vez só a PM de São Paulo matou 19 pessoas recentemente em Osasco. Segundo dados do mapa da violência no Brasil, um jovem negro tem 139% a mais de chance de ser morto na rua do que um jovem branco. 

A morte impera na vida dos moradores de periferia no Brasil. Passa a ser até “natural”, faz “parte da vida”, como podemos ler - ou ouvir - nas canções de rappers e MC’s como Emicida, Criolo, Sabotage…

“No pé que as coisas vão, Jão
Doidera, daqui a pouco,
resta madeira nem pros caixão.
Era neblina, hoje é poluição
Asfalto quente queima os pés no chão
Carros em profusão, confusão
Água em escassez, bem na nossa vez!
Assim não resta nem as barata...
Injustos fazem leis, e o que resta procês?
Escolher qual veneno te mata!

Pois somos tipo passarinhos
Soltos a voar dispostos a achar um ninho
Nem que seja no peito um do outro” 

(do rapper Emicida, "Passarinhos")

Cena do filme "Que horas ela volta?"
A morte ronda cada vez mais de perto as nossas vidas, sejamos ou não moradores das periferias. Todos somos vítimas da violência, é certo! Mas a Casa Grande não se incomoda se a Foice da Morte se restringir às favelas, aos pretos, aos pobres. A Casa Grande tem gerado campanhas de ódio, tem treinado aprendizes de fascistas como "justiceiros", tem batido freneticamente suas panelas enquanto de suas bocas escorrem babas de ódio contra os aeroportos e aviões repletos de gente pobre viajando, contra os filhos da empregada e do porteiro do prédio se formando nas mesmas universidades que seus filhos (saudações ao belo filme "Que horas ela volta?" de Ana Muylaert!). Para a Casa Grande, a Senzala deve se ligar de que seu lugar é onde sempre foi desde que o Brasil é Brasil: na sua inferioridade de classe.

Vanitas, vanitatum et omnia vanitas...

No nordeste - no meu - meu conterrâneo João Cabral de Melo Neto já impingira na cara do Brasil o poema onde conta o que acontecia naquele agreste ardente com as vidas ceifadas pela seca, pela fome, pelas injustiças sociais, da qual são vítimas todos os severinos do nordeste, “Morte e vida severina”:

“Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta”.

Severinos migraram para São Paulo ao longo de décadas. E moram, em sua maioria, nas mesmas favelas mortíferas de hoje. A saga do poema de João Cabral, que se passa em Pernambuco, pode muito bem ser replicada nas ruelas estreitas e tortas das Quebradas de São Paulo:

“— E foi morrida essa morte, irmão das almas,
essa foi morte morrida ou foi matada?

— Até que não foi morrida, irmão das almas,
esta foi morte matada, numa emboscada.

— E o que guardava a emboscada, irmão das almas,
e com que foi que o mataram, com faca ou bala?

— Este foi morto de bala, irmão das almas,
mais garantido de bala, mais longe vara.

— E quem foi que o emboscou, irmãos das almas,
quem contra ele soltou essa ave-bala?

— Ali é difícil dizer, irmão das almas,
sempre há uma bala voando, desocupada”.

Belo-triste encontro semiótico entre a ave-bala de João Cabral e as balas-passarinhos de Emicida...

"Os retirantes", pintura de Candido Portinari
E em ressonância com João Cabral, Candido Portinari pinta um dos mais representativos quadros desta tragédia, “Os Retirantes”. Tintas carregadas no escuro, corpos deformados, verdadeiros espectros humanos, mal se sustentam em seus próprios pés, enquanto aves de rapina fazem seus vôos rasantes aguardando o trabalho da Morte…

E Ariano Suassuna escreve seu “Auto da Compadecida”, onde narra o drama do nordeste, misturando elementos da cultura popular, como a literatura de cordel, com o catolicismo barroco do nosso povo. A peça já começa com o enterro de um cachorro. O que nos leva, por livre associação, à Baleia, a cadela do conto de Graciliano Ramos que trata exatamente de… vida e morte: “Vidas secas”.

Mas em Suassuna ainda, lembramos que o último ato da peça traz o julgamento dos que foram mortos pelo capanga Severino de Aracaju, que também foi morto por uma facada de João Grilo. No alto de tudo, a Compadecida, Nossa Senhora - aquela que também habitava os altares e o imaginário medieval como a Alentadora, a Mãe que se compadece dos pecadores e os leva à salvação. Depois que a morte fez seu trabalho...

Ainda em nossa literatura, o grande romance nacional “Grande sertão, veredas”, de Guimarães Rosa, nada mais é do que a confissão do começo ao fim do capanga Riobaldo que viveu e viu a morte de perto, assim como pressentia o “Tinhoso” com quem fez um pacto, mas não impediu que fosse morta a sua amada Diadorim. Neste romance, Guimarães Rosa mostra como era a vida nos sertões brasileiros, a luta de vida e morte dos caboclos em suas taperas, ameaçados por jagunços armados por fazendeiros. 

"A Roda da Fortuna", Edward Burne Jones
“Viver é muito perigoso”, repete Riobaldo o tempo inteiro… “Porque aprender a viver é que é o viver mesmo... Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e abaixa... “

Finalizando, porque é preciso por um fim a um assunto sem fim…

Há poucos anos atrás, o poeta Afonso Romano de Sant’Anna disse, sobre nossos tempos e nossa arte atual: desde a obra mítica do urinol de Marcel Duchamp, vem se falando na morte da arte. Na década de 1980, Francis Fukuyama, pensador norte-americano neoliberal, apregoou a morte da História. 

“Falou-se muito de morte no século XX, sem esquecer o banho de sangue provocado pelas duas guerras mundiais mortíferas”, reflete ele. Pensemos na bomba de Hiroshima e Nagasaki que deixaram rastros de “crianças mudas, telepáticas”, como disse outro poeta, Vinícius de Moraes. 

Neste sentido, complementa Afonso Romano habitamos um cemitério onde a teoria perambulou como um zumbi entre o sentido e o não sentido, e teorizar sobre a morte de certas categorias, e mesmo de ideias, parece que explica um pouco o caos contemporâneo”.

Enquanto isso as madames e suas panelas areadas, plenas de vaidade, se agarram às suas marcas carésimas, a seus mitos consumistas, a seus sonhos ilusórios, a seu vazio de classe. Se vendo ameaçadas, blindam seus carros, suas casas, seus filhos, suas vidas…

E nos agarramos - todos - ao consumismo frenético de bens necessários e desnecessários vendidos pela propaganda, que diariamente gesta novas formas de vender coisas cada vez mais e em mais larga escala... “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade…” soam em “lúgubres responsos” os sinos do Eclesiastes, ainda mais atual em 2015.

Mas a Roda da Fortuna continua seu giro “separando implacavelmente os poderosos, que tudo possuem, dos expoliados que nada têm de seu, morrendo igualmente todos, e tudo deixando”, diz o professor português. Quem tem muito, muito deixa; nada, os que nada possuem.

"Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no sexto dia e sim no sétimo", diz o poema "Dia da criação" de Vinícius de Moraes...

E pra finalizar e por via das dúvidas: Senhor, livrai-nos de todo o mal, amém!

"Fast food", vanitas, fotografia de Laurent Meynier, 2014

terça-feira, 22 de setembro de 2015

A poeira do Tempo - 2

São Jerônimo em seu escritório,
Jan Van Eyck, 1442
A palavra Vanitas vem diretamente da frase bíblica “Vanitas vanitatum et omnia vanitas” (Ec.1:2 - “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”.)

A pintura mais antiga de Vanitas é o retrato de São Jerônimo, um santo intelectual, doutor da Igreja, onde lembra "ao homem de carne e osso que ele não é nada face ao poder aniquilador do tempo”. Um desses primeiros retratos foi pintado pelo flamengo Jan Van Eyck, a quem se atribui a invenção da tinta a óleo. Esta pintura pertence atualmente ao Institute of Arts of Detroit, EUA. Ela foi a base para muitas outras que foram feitas nos séculos seguintes, usando o mesmo tema e o mesmo São Jerônimo, por diversos artistas como Antonelo de Messina, Carpaccio, Lourenzo Lotto, Petrus Christus e muitos outros. Incluindo o mestre alemão Albrecht Dürer, que o pintou em 1521.

Mas Vanitas tem uma “dupla filiação ideológica”, afirma Calheiros. “Por um lado, dos círculos humanistas centro-europeus e italianos dos séculos XV e XVI, revisitadores das antigas alegorias “memento mori” dos latinos clássicos (sendo a mais conhecida o mosaico de Pompeia); e por outro lado, da atmosfera intelectual e religiosa de Leyden, bastião calvinista, que condena com severidade puritana tudo o que é considerado excessivamente hedonista e mundano”. Do lado da Contra Reforma e seu fervor religioso, também era importante enfatizar a inevitabilidade da morte, a reflexão sobre as vaidades das coisas terrenas, a efemeridade da vida.

Mosaico antigo de Pompeia
Mas em Pompeia antiga, aponta o professor português, o século I da nossa Era já imprimira em mosaico a representação da tête de mort, o crânio humano. No século XV começaram a aparecer as primeiras pinturas com este tema: “memento mori”, “dança macabra” e “vanitas” surgiam com espécies de legendas pintadas nas telas, como esta abaixo do pintor Jan Gossaert que inscreveu em latim em seu “Díptico de Carondelet” (1517): “Aquele que considera sempre a proximidade da morte, aceita facilmente tudo” (“Facile contemnit omnia qui se semper cogitat moriturum”). 

Foi algo assim que influenciou, mais tarde, o ceticismo metafísico de Caravaggio que gostava deste lema: “Perdida a Esperança, perde-se o medo”.
 
"Díptico de Carondelet",  Jan Gossaert, 1517
O grande mestre alemão Albrecht Dürer também pintou seu “memento mori”, por volta de 1528, ano de sua morte. Escreveu embaixo de sua caveira: “Não existe nenhum escudo que vos possa defender da morte; quando chegar a vossa vez morrereis, crede em mim”.

"Memento mori", Albrecht Dürer
A partir da segunda metade do século XVII o gênero “Vanitas” se consagra. David Bailly, pintor da Escola de Leyden, fará em 1651 uma grande composição com seu auto-retrato onde segura um segundo retrato seu nas mãos, mais "envelhecido" em uma maravilhosa Vanitas, onde aparecem objetos pessoais e coisas de seu trabalho de artista, como um desenho colado na parede (esta imagem abre o post anterior).

Muitos pintores flamengos e dos países-baixos irão produzir variadas Vanitas. Na França, o tema foi introduzido pela importante comunidade flamenga de Saint-Germain de Prés. O tema é mais raro na Itália, aparecendo, contudo, na obra de Salvatore Rosa e Giuseppe Recco.

Na Espanha, o pintor Antonio de Pereda y Salgado pintará várias Vanitas. A mais conhecida é "O sonho do cavaleiro" (veja abaixo), feito por volta de 1670, que apresenta um homem adormecido sentado em uma cadeira, a cabeça apoiada na mão. O resto da composição apresenta uma variedades de objetos: livros, partituras, uma pistola, um globo, uma couraça e braçais de armadura, flores, jóias, cartas de jogar, moedas, uma máscara, um livro aberto, uma vela apagada, um relógio e dois crânios, (um frontal, muito iluminado, e o outro visto por baixo, “da mesma forma que vem representado nas gravuras do tratado do anatomista Andrea Vesallius em “De Humani Corporis Fabrica”, de 1568”, observa Luís Calheiros). O anjo, no centro da tela, estende uma legenda que diz: “Aeterne pingit ito vola et accidit” (“A glória eterna esvai-se como um sonho”). 

E tudo isto relacionado à famosa peça de Calderón de la Barca, "La Vida es Sueño", cujo trecho destaco aqui:

“Sueña el rey que es rey, y vive
con este engaño mandando,
disponiendo y gobernando;
y este aplauso, que recibe
prestado, en el viento escribe,
y en cenizas le convierte
la muerte, ¡desdicha fuerte!
¿Que hay quien intente reinar,
viendo que ha de despertar
en el sueño de la muerte?

Sueña el rico en su riqueza,
que más cuidados le ofrece;
sueña el pobre que padece
su miseria y su pobreza;
sueña el que a medrar empieza,
sueña el que afana y pretende,
sueña el que agravia y ofende,
y en el mundo, en conclusión,
todos sueñan lo que son,
aunque ninguno lo entiende.

Yo sueño que estoy aquí
destas prisiones cargado,
y soñé que en otro estado
más lisonjero me vi.
¿Qué es la vida? Un frenesí.
¿Qué es la vida? Una ilusión,
una sombra, una ficción,
y el mayor bien es pequeño:
que toda la vida es sueño,
y los sueños, sueños son.”


"O fim da glória do mundo", Juan de Valdés Leal
Outro pintor espanhol que se voltou para o tema de Vanitas foi Juan de Valdés Leal. A mim, pelo pouco que conheço da cultura espanhola, o tema de Vanitas com certeza atrairia a atenção dos angustiados espanhois. Em minha viagem a Sevilha (maio de 2015), vi de perto muitas pinturas que giram em torno deste assunto. Valdés Leal - contemporâneo de Velázquez - pintou as Alegorias “Finis gloriae mundi” (Fim das glórias mundanas) e “In ictu oculi” (Um abrir e fechar de olhos) em 1672 para a Igreja do Hospital da Caridade de Sevilha, onde admoestava a todos sobre a caducidade dos bens materiais e a brevidade da vida terrena. Francisco de Zurbaran, outro pintor espanhol sevilhano, também trabalhou no tema.

"Três crânios", Paul Cézanne
Nos tempos mais modernos, Vanitas retorna à pintura com Paul Cézanne ("Três crânios"), com Georges Braque ("Crânio, colar e crucifico", 1938) e Pablo Picasso ("Crânio com alho francês e vasilhas de cozinha", 1942).

Assim como Vanitas, a arte se voltou para outros símbolos desta mesma temática mais “escatológica”, vamos dizer assim. Muitos pintores se voltaram para temas como os "Apocalipses", os "Juízos Finais", as "Danças Macabras" e os "Triunfos da Morte", as "Procissões de Esqueletos e Condenados", as "Mascaradas da Morte", as "Três idades e a Morte", as "Degradações dos últimos tempos", etc. Estes foram temas que marcaram a Alta Idade Média e os primórdios do Renascimento.

E os primórdios do Capitalismo, o sistema econômico e político que se baseia na propriedade privada, na geração de lucros e na acumulação de riquezas. Vale lembrar que a Igreja Católica, grande acumuladora de bens, exortava seus fiéis a fugir da riqueza e das vaidades do mundo. Mas quando surgiu a Reforma Protestante, os Calvinistas incentivaram seus seguidores à prosperidade econômica, coisa que fez com que países como a Holanda, por exemplo, se desenvolvesse como centro comercial e financeiro ainda naquela época.

Podemos dizer que o capitalismo nasceu em um tempo em que o tema da morte era o espectro que pairava de forma enfática sobre todas as cabeças… Capitalismo e morte, irmãos siameses. Sistema que lucra inclusive com as guerras que produz, com as indústrias armamentistas que produz, e que produz a imagem atual mais marcante sobre a morte: a foto do garotinho sírio Alyan Kurdi. Esta imagem ao lado queimará nossas retinas durante ainda muitas décadas... Não consigo olhar para ela sem as lágrimas saltarem dos meus olhos...

Mas, voltando àquele tempo passado, as cidades foram devastadas pela Peste, as ações sanitárias e médicas eram insuficientes, a subnutrição e a falta de higiene potencializavam ainda mais os temas apocalípticos e as pregações do final dos tempos. Além de tudo, as guerras, que se espalhavam e eram medidas utilizadas no processo de construção da história europeia, marcada profundamente pela morte. Sem falar nas duas guerras grandes do século XX...

Os cidadãos e cidadãs que viviam naqueles tempos - e pouco, porque a vida humana durava em média 30 ou 40 anos - eram conscientes da realidade que ia ceifando vidas, “dizimando milhões de ‘almas’ de todas as classes e idades, sem exceções nem contemplações, aceitando no seu seio maldito a igual dignidade de mortais que existe na mais desvairada diversidade da espécie humana, que nos une a todos, para lá de todas as diferenças - credo, ideal, tradição cultural, nação, etnia, tribo, clã, casta, linhagem, classe (condição social), raça, sexo, idade, idiossincrasias, loucuras, excessivas normalidades…”, diz Luís Calheiros.

Detalhe de "O Inferno e o Dilúvio",
Hieronymus Bosch
Tempos em que as pessoas despertavam logo cedo para o sentimento trágico da vida, “para a amarga pena que é o viver diário”. E também despertavam, segundo Calheiros, para o sentimento da individualidade, da solidão irrepetível de cada um, separado e diferente do outro, separado da noção de coletividade. O sujeito humano se vê jogado sozinho nas armadilhas do mundo, nos porões das fábricas, nas longas filas para receber seu quinhão de salário, em longas jornadas diárias de trabalho exaustivo, sentindo o peso pesado da existência nessas condições…

Isso casava muito bem com as reflexões sobre a finitude da vida, sobre os mistérios de mundos reais e imaginários; a vida sob a batuta do medo e da esperança da salvação eterna, já que a vida terrena não salvava de nada… 

O poema sagrado de Dante Alghieri, a “Divina Comédia”, já tinha surgido no século XIV, levando seus leitores a um périplo pelo Inferno, Purgatório e Paraíso. Hieronymus Bosch, o grande pintor holandês da tragicidade da vida, já pintara seu “Julgamento final” no final do século XV. Assim como Pieter Brueghel, o Velho, mostrou o “Triunfo da Morte” em seu célebre quadro.

O tema da “Dança macabra” ou “Dança da Morte” também reinava no final da Idade Média e mostrava, na Literatura, na Pintura, na Escultura, na Gravura e na Música que a morte atingia a todos indistintamente. Os grandes mestres da velha escola alemã se voltavam para este assunto: Mathias Grünewald, Lucas Cranach, Nicholas Manoel Deutsch, Hans Baldung Grien ou Joaquim Patinir. 

Isto muito tempo antes do movimento Expressionista Alemão que retomou estes temas da tragicidade da vida, como Edward Munch, Egon Schielle, Georges Grosz, Kathe Kollwitz e Max Beckmann.

E, mais uma vez, os espanhois: os pintores tenebristas do século XIX espanhol José Gutierres Solana e Ignácio Zuloaga, com sua pintura sombria, ao revés da pintura iluminada de seu contemporâneo Joaquín Sorolla.

Paralelamente, a alma do povo tinha sua própria iconografia do tema da morte, que se multiplicava em cantos, estórias, práticas religiosas, imaginário em torno das penas do inferno e do purgatório, dos diabos e da morte, das almas penadas, dos espíritos que apareciam, das ameaças de outros espíritos malignos, dos exorcismos, das possessões…

Vale lembrar também do tema da moda naquela época e que inspirou o poeta francês François Villon: o tema do "Ubi sunt", um termo latino que significa "onde estão?". Onde estão as riquezas de outrora? A beleza de outrora? A juventude de outrora? Em seu poema "Balada dos tempos perdidos", ele repete o verso

"Mais où sont les neiges d'antan?" ("onde estão as neves de antanho?")

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"O sonho do cavalheiro", Antonio de Pereda
Vanitas, Philippe de Champaigne, 1671
Vanitas do pintor australiano, falecido em 2012, Kevin Best: "Natureza-morta infinita"
"Madalena com as duas chamas", Georges de la Tour