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segunda-feira, 2 de junho de 2014

O resgate dos valores humanos

Maurício Takiguthi expôs na Galeria Contraponto
Maurício Takiguthi inaugurou o Ateliê e Galeria Contraponto em São Paulo, em março passado, com uma exposição de seus trabalhos de pintura mais recentes. Extremamente dedicado a seu ofício, Takiguthi impressiona não só pela qualidade de sua obra, mas também pela profundidade de seu pensamento. Conversar com ele é um exercício que sempre desafia os mais desatentos a um esforço de concentração um pouco maior do que se precisa para desencadear um diálogo comum. Porque ele “pensa” seu trabalho.

Maurício Takiguthi
Mais uma vez entrevistei esse pintor que tem uma escola aqui em São Paulo, o Ateliê de Arte Realista. Há dez anos atrás, Maurício Takiguthi estava quase sozinho em sua teimosia de ensinar as técnicas da arte figurativa. Dez anos depois já podemos contar com pelo menos meia dúzia de ateliês figurativos em São Paulo, com dezenas de praticantes, entre estudantes e artistas. O mais recentes destes ateliês que por aqui surgiram é o Ateliê Contraponto, do qual faço parte com mais três colegas.

Mas voltemos à nossa conversa com Takiguthi, que tanto insiste no resgate do conhecimento e da tradição, na busca do auto-aperfeiçoamento do artista como um caminho solitário mas comprometido com o que há de mais profundo no conhecimento do próprio ofício. Tudo isto, diz ele, para resgatar valores mais humanistas.

Maurício diz que desde que começou sua formação e seu trabalho como pintor, há uns 28 anos, ainda se mantém basicamente como a mesma pessoa que se coloca diante do mundo como aprendiz: vivendo “cheio de dúvidas, questões, e instigado pela curiosidade de querer entender o que os mestres viam”. Mas acrescenta que não há como medir a plausibilidade deste tipo de desejo, desta ambição. Nunca podemos saber aonde nossos desejos nos levam, mas serve como um motor que nos move e que move o pintor Maurício Takiguthi até hoje “depois de 28 anos de estrada”.

“Continuo insistindo em obter respostas, acrescenta ele. Porque continuo frustrado boa parte do tempo por não tê-las. Porque continuo ‘apanhando’ e, mais importante, porque continuo sentindo tesão pelo realismo que me instiga na esperança de um dia ter acesso”.

Ter acesso ao que?

Aqui podemos buscar apoio no pensamento do filósofo alemão Friedrich Wilhelm von Schelling (1775-1854), que em seu texto “A relação das artes plásticas com a natureza” mostra como o olhar do artista, penetrando no Real, enxerga o mundo através da sua essência, que é acessível ao nosso espírito (mente). E Schelling adverte que aquele que apenas enxerga do mundo a sua casca, a sua superfície, a ele “jamais será facultado atingir o processo profundo”. Enquanto que para o artista que tem consciência de si e de seu papel, sabe o caminho para desvendar as aparências que muitas vezes a realidade toma. Diz Schelling: “Antes de mais nada, a natureza vem ao nosso encontro de modo hermético e sob uma forma mais ou menos rígida. Assemelha-se à beleza sóbria e serena que não chama a atenção por meio de sinais gritantes e nem atrai o olhar vulgar. Como podemos fundir, digamos, do ponto de vista espiritual, aquela forma aparentemente rígida a fim de que a força mais clamorosa das coisas flua juntamente com a força de nosso espírito, transformando-as num só molde? Temos que ultrapassar a forma, para, aí então, readquiri-la como algo inteligível, vívido e verdadeiramente sentido. (grifo meu)

"Ensimesmado I", Takiguthi,
óleo sobre tela
Todos os grandes artistas, desde os da pintura, passando pela literatura, pelo teatro e pela música alcançaram o cerne, a essência do mundo, criando obras seminais que se sobrepõem à nossa concepção de tempo; obras que emocionam pessoas que estão separadas de seus criadores por séculos de distância, que permanecem encantando, gerando pensamentos, inspirando.

E intrigando. Qual é o processo profundo, qual é o caminho que nos leva a este mergulho do qual retornamos como criadores?

Não é uma resposta fácil. Mas um caminho possível é o exercício do ofício ao qual cada um se propôs e é isso o que diariamente Takiguthi ensina a seus alunos. Por sua origem japonesa, ele se reporta muitas vezes aos ensinamentos zen-budistas que dizem que “a prática é que é expressiva”.

“Desse ponto de vista, diz ele, somos algo a partir do que fazemos e não do que dizemos ou acreditamos”. Por isso fica difícil criar qualquer adjetivo que qualifique o sujeito, pois no momento em que uma pessoa se dá uma denominação, por exemplo se chama a si próprio de “artista”, isso cria, segundo Maurício, uma predisposição a que “as palavras comecem a substituir ilusoriamente o que fazemos, obscurecendo a realidade dos fatos e a visão sobre nós mesmos”.

"Ensimesmado V", Takiguthi,
óleo sobre tela
Ou seja: a ideia é fazer ao contrário do que se faz atualmente, onde o poder do discurso é imenso, mas a prática é subestimada. Nas artes contemporâneas, antes da obra há uma retórica altamente hermética sobre ela, o discurso substituindo a coisa concreta. Se sobrepõe o mundo do idealismo mental contra o contato direto com a realidade. O ofício do artista acontecendo prioritariamente no mundo da mente, gerando nebulosidades que, como bem diz o poeta Affonso Romano de Sant’Anna, fazem com que as artes visuais atuais possam melhor ser interpretadas do ponto de vista da psicanálise.

Mas a prática concreta é mais enfática do que qualquer discurso. “Faz sentido, acrescenta Maurício, pois “se somos honestos é porque praticamos atos honestos e não simplesmente porque dizemos aos outros ou temos essa ideia sobre nós mesmos... E em geral a pessoa que se preocupa demais em se autodefinir ou falar de suas qualidades pessoais é que provavelmente está mais ocupada em convencer-se ou convencer ao outro – pela retórica, e não por atos concretos. Pode servir como marketing pessoal, mas não como autoaperfeiçoamento”.

Por isso a “leitura da ação” diz mais do que a definição verbal.

Neste ponto, pergunto a Takiguthi a respeito da temática de sua pintura atual. As figuras que ele pinta são fortes, parecem habitar um lugar entre a vida e a morte, com gestos dramáticos, olhares densos; figuras que parecem nos apontar nossos próprios medos, nos defrontando incomodamente. Ao mesmo tempo, os traços são fluidos, gestuais, gerando movimentos em ondas que parecem todo o tempo nos levar para dentro dos abismos dessas figuras.

Ateliê e Galeria Contraponto
“Diferentemente do que se associa a um realista, eu procuro não ficar na mera imitação da natureza ou atingir qualidades ‘fotográficas’. Não sou adepto da ideia de que o melhor propósito de uma pintura é de parecer com uma fotografia. Quero registrar na tela a minha percepção interna da natureza humana ou, mais relevante para mim, conseguir visualizar minha realidade interior. Muito disso se passa pelo diálogo silencioso com o que faço: a partir da imersão no processo que nem sempre é fácil, dadas as grandes distrações da vida numa metrópole, procuro me debruçar sobre questões intrínsecas da pintura e do desenho.”

Os fundamentos conceituais, os instrumentos técnicos, a prática e a estrutura mental se fundem e combinam num todo complexo e se tornam elementos com os quais ele trabalha para recriar o que ele chama de “etéreo”, que evidencie um certo estado de espírito, ou sensação. “Talvez este seja o resumo do tema da minha vida como pintor: ter a ambição impossível de traduzir essa qualidade invisível por meio de asserções visuais no campo do indizível”.

Ou seja, Takiguthi parece buscar expressar aquele lugar onde o reino das palavras não existe. Resta a sensação, a contemplação, a absorção da alma do artista em contato com a alma do observador, criando um uníssono impossível de traduzir em palavras, porque faz parte daquele espaço onde navega toda a subjetividade humana. Este também é o papel da arte: produzir essa conexão entre o Real e o artista que traduz pictoricamente o que vivenciou, alcançando um timbre possível de ser compreendido por outro ser humano.

- Que relação há entre o que você pinta hoje e o tempo contemporâneo, Maurício? Pergunto a ele.

“Se está falando do tempo contemporâneo enquanto relação entre a postura tradicional e o status quo com sua lógica pós-moderna, que tem a arte como entretenimento, barulho, escândalo ou transgressão... nenhuma!” diz ele. Maurício Takiguthi insiste em se voltar para a arte tradicional que para ele é sinônimo de conhecimento, do caminho solitário do mestre em busca da construção, do sentido dos valores permanentes do ser humano, do resgate da contemplação da arte, da observação seletiva baseada em critérios. Daí sua crítica de que hoje não há espaço para isso, em especial aqui no Brasil.

"Letárgico I", Takiguthi,
óleo sobre tela
Takiguthi explica que o tempo contemporâneo impõe um fluxo interminável de informações, de imediatismo pragmático que força as pessoas a produzir “num ritmo ansioso e alucinado” do qual é difícil escapar. “O que pode ser feito é minimizar seus efeitos pela consciência dessa forte influência quase arrasadora, dada a impossibilidade de o indivíduo simplesmente descolar-se social e culturalmente dessas imposições”, acrescenta.

Mas diz também que a pintura pode desempenhar esse papel que ele chama de “campo de respiro” em outro tipo de ar. “Não o ar viciado e barulhento que exige aceitação acéfala das regras, mas um ar onde o tempo transcorre de maneira diferente, mais desacelerada. Onde o ar, ao invés de ser estritamente racional, calculista, mecânico, previsível, vinculado fortemente às demandas da utilidade, pode assumir uma dimensão intuitiva, voltada para a introspecção e contemplação das coisas visíveis e invisíveis”.

Ele afirma que essa mudança de perspectiva na relação com o tempo e “o deslocamento para estados mentais mais sensoriais”, apazigua o espírito, amplia a sensibilidade. É uma proposta a uma resistência ao modus operandi exigido pela sociedade atual, que exige do ser humano coisas além da sua capacidade, física e mental. Me pergunto se não seria por isso que hoje temos uma sociedade onde se usa tanto remédio para depressão e se faz uso de tantos narcóticos? Esse deslocamento da prioridade aos valores humanos em prol da produção e do consumo não está criando uma sociedade doente, com indivíduos massacrados diariamente em busca da sobrevivência? O esvaziamento de símbolos universais, o corte radical com a tradição histórica perpetrado inclusive por artistas ditos modernos e contemporâneos não estaria nos distanciando cada vez mais de nós mesmos, dos nossos sonhos, da nossa capacidade de criadores do mundo?

Talvez isso dependa da busca novamente do que é essencial, do que não é óbvio atualmente, “das qualidades perenes, universais, que demandam tempo e maturidade para poder visualizar e compreender”, complementa Maurício.

"O louco", Takiguthi,
óleo sobre tela
Neste ponto da conversa, relembro um diálogo que aconteceu entre nós e outros amigos, num sábado à noite no Ateliê Contraponto, quando Maurício disse que está abdicando da possibilidade de ser chamado de “artista”. Aquilo me interessou e logo quis saber o motivo. Takiguthi respondeu:

- “Já faz um tempo que venho constatando a existência de um patrulhamento ideológico, forte mas implícito, em torno das exigências para que uma pessoa seja considerada um artista: que deva estar “antenada” na busca pela próxima tendência (como na moda) - perdendo, assim, a conexão com sua busca interna; que deva ignorar as habilidades do seu campo de atuação (que significa conhecimento prático e técnico); que faça prevalecer a habilidade retórica de convencer o outro de que o que faz é arte, em detrimento do conhecimento em profundidade que lhe permita pensar o que faz ou fazer o que pensa; entre outras. Este patrulhamento serve fundamentalmente para tornar oficial o monopólio da verdade e manter a posse da “aura” artística, tão importante numa sociedade sufocadamente racional”.

Hoje qualquer um pode, ou quer, se dizer “artista”. Mas raríssimos são aqueles que preferem praticar seu ofício, no suor do dia a dia sobre a mesa de desenho, frente ao cavalete, questionando, buscando aprender cada vez mais, se aperfeiçoando como o Demiurgo de Platão, o Grande Artesão, cujo próprio significado está naquele que trabalha, no artífice, no operário manual. Demiurgo, palavra grega que vem de duas outras: demios, significando “o povo” e ourgos, que significa “trabalhador”, aquele que trabalha para que outros aproveitem do produto do seu trabalho em muitas formas.

A atriz Fernanda Montenegro
Fernanda Montenegro, a conhecida atriz brasileira, numa entrevista recente a um canal de televisão ilustrou bem o que o Maurício fala sobre a prática do “ofício”. Disse ela que as pessoas “confundem teatro com liberdades, até com licenciosidades, com realização de sua opção sexual, com glórias, paetês, retrato no jornal, riqueza…” Hoje em dia a deformação já surge, diz ela, nas famosas “celebridades”. E completa: “Todo mundo vira artista hoje em dia, todo mundo pode ser artista… Mas ator não é todo mundo que pode ser!” Ela sugere aos que desejam a glória de ser ator, que desistam, que vão fazer outra coisa da vida. A não ser que se “ficar em tal desassossego que não tem nem como dormir se ficar sem aquilo” então deve tentar. Mas se não houver esse distanciamento em relação ao deslumbramento que hoje a palavra “artista” causa em qualquer um, ela simplesmente solta: “Não é do ramo!”

Pois os que são do “ramo” conhecem a delícia e a dor da prática diária, silenciosa, profunda do ofício. Os que são do “ramo” não projetam nada no futuro, se dispõem unicamente ao aperfeiçoamento de si mesmos como artesãos, seja no teatro, na literatura, na música… e na pintura.

Mas o problema é que o artista de hoje aceita, acrescenta Takiguthi. “Apesar de aparentemente pregar a transgressão como estilo de vida, está mais desesperado em se enquadrar e ser cooptado pelo sistema. Sob a lógica atual, faz de tudo para chocar/entreter o espectador para poder existir artisticamente. Cultua o ego ao tentar virar celebridade, abre mão do comprometimento sincero com a obra, para transformá-la numa extensão do próprio umbigo e vitrine de si mesmo. Defende verborragicamente a todo custo a auto-imagem que cria de si como artista/celebridade, por uma via afetada, ególatra e arrogante. Caça desesperada e exclusivamente a fama, a reputação e os interesses mercadológicos. O seu foco concentra-se nos aspectos extrínsecos à sua prática e, certamente, quer ser maior do que faz”.

"Genealogia", Takiguthi,
óleo sobre tela
Foi num dia em que refletia sobre isso que Maurício Takiguthi se viu “esgotado” com esse estado de coisas. Ao ver como a palavra “Arte” se encontra atualmente tão contaminada - assim como outras palavras - é que ele recorreu a uma frase de uma música de Raul Seixas e decretou para si mesmo: “Pára este mundo que eu quero descer!”

Com isto, ele disse que prefere simplesmente seguir outro caminho aonde possa se manter fiel ao ofício do pintor e desenhista realista. Isto como reação contra a busca do reconhecimento, da autorização “do outro” para o que faz, “autorização” dada hoje somente por instituições artísticas, legitimadores da arte como críticos, curadores e senhores do mercado de arte. Ele prefere exercer seu ofício solitário “com simplicidade, leveza, serenidade e liberdade, sem idealizações ou ideologias descartáveis”.

Essa busca, esse retorno à ideia de “ofício” para Maurício Takiguthi é a reafirmação do compromisso harmonioso e silencioso com o processo do trabalho. E complementa:

- “É materializar uma inversão radical nos valores: no lugar da “aura”, a realidade concreta do cotidiano; no lugar do glamour, o trabalho árduo; no lugar da retórica, a sinceridade e a sensibilidade para algo existente.  Enfim, é só isso que eu desejo ardentemente hoje em dia: quero respeitar meu ofício, reverenciar a prática, dedicar toda a atenção e energia aos seus elementos intrínsecos para compreender a sua essência, sob o rigor da excelência”.

Voltando-se para seu ofício, o artesão escuta, vê melhor o que faz e o que vê. Estabelece “uma interação sensível com um mundo complexo e infinito, onde pequenas revelações e insights cotidianos fazem muito sentido”, finaliza ele.

"Cárcere", Takiguthi,
óleo sobre tela

terça-feira, 12 de novembro de 2013

O pensamento do artista Álvaro Cunhal

Álvaro Cunhal
“A arte é uma expressão do Belo e o artista um seu criador”. Assim Álvaro Cunhal começa o seu ensaio “A Arte,  o Artista e a Sociedade”, publicado em junho de 1996, pela Editorial Caminho, de Lisboa, Portugal. Líder revolucionário do povo português, membro do Partido Comunista, Álvaro Cunhal foi também um pensador da Arte e um artista. No ensaio em questão, ele aborda uma série de temas muito relevantes não só dentro do campo artístico, mas também no âmbito da filosofia, da cultura, da sociedade.


Álvaro Barreirinhas Cunhal nasceu em Coimbra, Portugal, em 10 de novembro de 1913. O centenário de seu nascimento tem tido muitas comemorações em Portugal neste ano.

Logo no começo do ensaio, Cunhal dedica todo um capítulo ao tema do Belo na arte, um conceito que tem sido estudado longa e profundamente ao longo da história, desde os filósofos gregos, passando pelos pensadores da Idade Média, os do Renascimento, do Iluminismo, da filosofia alemã, entre os quais se destacam Hegel e Schelling. Álvaro Cunhal diz que, a respeito do Belo, há muito mais perguntas do que respostas. Desde sempre se busca estabelecer que critérios podemos utilizar para considerar bela alguma coisa, inclusive critérios dentro do “conhecimento científico” que também tem tentado estabelecer uma origem “objetiva, fixa e imutável do Belo”.


Um dos muitos desenhos que ele fez
na prisão, por causa de suas convicções
comunistas
Mas Cunhal também diz que alguns outros filósofos “pretenderam conformar o conceito às coisas”, procurando saber como surge essa qualidade da Beleza nas coisas. Questiona ele: “Coisas ‘belas’ onde, para quem, para que classe, em que época, em que país?” Por trás desse questionamento, sua visão de que conceitos como estes não são absolutos no tempo, espaço e lugar. Como queria, por exemplo, Diderot, o pensador francês da Enciclopédia que mais tarde foi forçado a rever suas opiniões em suas “ulteriores críticas de arte”. E como pensava também Charles Darwin que, segundo Cunhal, em uma obra anterior à sua Origem das Espécies, considerava a beleza como uma “qualidade objetiva inalterável, fixa, universal e eterna das coisas”. Mas em seu livro mais conhecido, e posterior, Darwin admitiu que “a ideia do Belo não é inata e nem inalterável”.


Mas, diz Cunhal, mesmo assim essas teorias - por vezes tomadas como verdades absolutas - trazem “elementos válidos de reflexão”. Há obras de arte de valor estético universal e incontestável, que ultrapassam séculos, milênios. Ultrapassam inclusive as mais “profundas transformações sociais”, pois continuam sendo reconhecidas em seu valor. Pois há valores comuns nas coisas belas, enfatiza ele. O ser humano reage com agrado a determinados eventos e acontecimentos, com traços da reação “dos seus sentidos e das suas emoções que perduram e ultrapassam as épocas históricas”. Por isso, a beleza das coisas existe em íntima interação com a alma humana, que as aprecia. Diz Cunhal: “Beleza é um critério e um juízo humano”. Pois o mundo é belo PARA quem o observa.

Mesmo na filosofia idealista, continua o artista português, quando se fala do Belo se fala em relação à realidade. A invocação do sobrenatural por trás do Belo é feita em geral pelas religiões, procurando encontrar uma origem sobrenatural do Belo absoluto. Da filosofia escolástica, sabemos que a Beleza estava diretamente relacionada com a divindade e os filósofos cristãos deram até uma definição do Belo como ligado ao Bem e à Verdade, acrescentando uma conotação moral ao conceito.

Pintura em óleo sobre tela, Álvaro Cunhal



Mas voltando ao ensaio de Álvaro Cunhal. Numa linha de investigação oposta à idealista, o pensamento materialista “investiga a ligação do Belo com a sociedade e a sua evolução. Aponta a experiência histórica da relatividade da definição” do Belo. Essa visão materialista busca localizar a apreciação do Belo nas várias épocas históricas, nas diversas sociedades e culturas, nas circunstâncias objetivas do mundo. Diversas coisas, por serem úteis, tornaram-se belas, acrescenta. O ser humano, ao fabricar seus instrumentos de trabalho, suas moradias, seus meios de locomoção, seus ambientes, vem buscando não só aperfeiçoá-los, do ponto de vista técnico, mas também torná-los belos. Por outro lado, a arte surge como uma criação humana que dá prazer à alma:

“Seja qual for a origem que se lhe atribua, a noção do Belo é um elemento essencial do valor estético. A outra, é a beleza criada pelo homem. O artista é um criador de beleza.”


Outro "desenho da prisão"
Álvaro Cunhal diz também que complexidade, contradição e controvérsia também estão presentes quando se definem os elementos do valor estético. Ao longo do tempo, filósofos, críticos e artistas também mudam os valores estéticos de obras de arte, mesmo que haja aquelas que atravessam os séculos sendo admiradas por todos. E muitas vezes eles entram em confronto de ideias sobre valores estéticos de determinados períodos. Uma dessas grandes controvérsias tem acontecido em volta da questão “forma x conteúdo”. Muitos artistas levam mais em conta os processos formais de uma obra de arte. Outros, além da forma, também se preocupam com o “conteúdo” de seu trabalho, ou seja, que ele expresse a mensagem que ele quer transmitir, que provoque reação e sentimentos nos outros e na sociedade da qual faz parte. Muitas vezes, destaca Cunhal, os primeiros radicalizaram sua posição em defesa da forma, diminuindo o sentido e o significado do que faziam; e os segundos, por seu lado, menosprezando a forma, consideraram o conteúdo - a “mensagem” - como único valor a ser levado em conta.


Mas considerar a “forma” como valor estético é uma tautologia, diz ele, pois a forma em si já é beleza criada pelo artista. Só que o valor estético não pára aí: ele também se acha presente “naquilo que a obra de arte transmite, na mensagem que conduz, nos sentimentos que provoca”. Ambos - forma e conteúdo - são, juntos, elementos integrantes do valor artístico. E dá um exemplo:


Desenho de Álvaro Cunhal, na prisão
“Só um dogmatismo ideológico primário pode pretender que a mensagem de liberdade não é um elemento integrante do valor estético da 5ª Sinfonia ou da 9ª Sinfonia de Beethoven, a mensagem humanista no valor estético da Ressurreição de Tolstoi, a mensagem da história de libertação de um povo nos murais de Rivera e de Siqueiros.”


Ao longo desse longo ensaio de 203 páginas, ricamente ilustrado com imagens de obras de arte e de inúmeros exemplos que Álvaro Cunhal, em seu pródigo conhecimento sobre arte, retirou da pintura, da escultura, mas também da literatura, do teatro e da música, ele vai traçando um longo raciocínio sobre o papel da arte e do artista no mundo.


Vale muito a pena a leitura desse ensaio, assim como mais comentários sobre os diversos aspectos abordados por ele, coisa que pretendo ir fazendo, pela riqueza de temas que Álvaro Cunhal levanta. Por exemplo, dizendo que o que faz o entusiasmo e a entrega plena à criação por parte do artista vem de um “apelo interior”, pois isso tudo, mais do que uma opção de vida, é uma “vontade natural irreprimível” de criar, “um gosto, uma alegria”. Quem é artista sabe do que Álvaro Cunhal está falando…


Para finalizar este primeiro artigo sobre o ensaio “A Arte, o Artista e a Sociedade”:


“Arte é liberdade. É imaginação, é fantasia, é descoberta e é sonho. É criação e recriação da beleza pelo ser humano e não apenas imitação da beleza que o ser humano considera descobrir na realidade que o cerca.”

Álvaro Cunhal, óleo sobre tela

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A alma do mundo

Gustave Courbet: A onda, óleo sobre tela, 1870
Acabei de ler o texto “Sobre a relação das artes plásticas com a natureza”, do filósofo alemão Friedrich Wilhelm von Schelling (1775-1854). Esse texto foi escrito para seu discurso de entrada na Academia Bávara de Ciências, em Munique, Alemanha, e foi proferido no dia 12 de outubro de 1807. A repercussão do texto foi grande, e até Goethe o felicitou. Schelling foi contemporâneo de Hegel, um dos filósofos que mais escreveu sobre Estética e sobre Arte.


Schelling
Pela atualidade do tema e por descobrir grande convergência entre a visão de Schelling sobre a pintura e minhas próprias convicções pessoais sobre arte Realista, faço abaixo uma tentativa de expor um resumo dessas ideias.


A arte realista busca beber na fonte inesgotável da realidade do mundo, realidade em permanente mudança, buscando ir além das aparências até alcançar o movimento interno que gera a vida. A pintura realista considera que expressar a forma de um objeto ou figura significa também expressar seu movimento interno, sua alma pulsante na alma do artista, num jogo dialético que abrange espaço, tempo, forma, cor, luz, valor, mas também conceito e visão de mundo.


Vale lembrar que a pintura realista sempre esteve presente nas artes plásticas desde tempos imemoriais. No período da Idade Média, incluindo o Renascimento, os artistas eram obrigados - por força das circunstâncias da época (econômicas, políticas, culturais e filosóficas) - a pintar o mundo idealizado do reino celestial com suas figuras de anjos e santos, além de ilustrar as histórias bíblicas e seus diversos personagens. Ticiano e Caravaggio inovaram a pintura de seu tempo, incluindo como modelos pessoas reais (Caravaggio) e uma forma de ver o mundo através do movimento das cores que rompiam as linhas do desenho (Ticiano). Depois deles, gerações de artistas se voltaram para o mundo concreto, para o Real e seu sentido de inesgotabilidade, de permanente mudança e movimento contínuo. Esse Real do qual não se vê mais do que a aparência, que é fugidio, se desnuda para a observação profunda e a contemplação silenciosa dos artistas.


Neste ponto, nos encontramos com Schelling, e com ele prosseguimos.


Logo no começo do seu discurso, ele traça uma diferença entre formas de descrever o mundo. Uma delas é por meio do discurso, da eloquência, da exposição oral. “Mas a arte - diz ele - possui essa vantagem de ser dada visualmente”, apresentando de uma maneira diferente - para os olhos - aquilo que é difícil de ser apreendido por palavras. E neste sentido a arte plástica se torna Poesia, “poesia muda”, como ele acrescenta. Silenciosa, a arte plástica cria um vínculo, uma ponte entre a alma humana e a Natureza, o Real.


O verdadeiro modelo e “fonte primordial” da arte plástica é a Natureza. Mas Schelling aponta os questionamentos que dizem que isso já é feito pela ciência e que há “tantas representações” da natureza quanto “os diferentes modos de vida”. Sim, mas mesmo aí há também diferentes tratamentos para o mesmo tema e isso é o que cria a enorme diferença de visão de mundo a partir das artes plásticas, o que se torna ainda mais claro nos dias atuais.


Schelling já falava daqueles (incluindo pintores) para quem o mundo não passa de um amontoado de eventos e objetos e coisas sem vida, como “uma imagem muda”, “completamente morta”:

“Um esqueleto oco de formas a partir do qual uma imagem igualmente oca
deveria ser transportada para a tela.”


Observa Schelling que esse era o modo rude de ser dos povos antigos e que somente com os gregos é que o mundo pulsante passou a ser visto como tal. E com isso, admitiu-se que “o perfeito está misturado ao imperfeito, bem como o belo àquilo que é destituído de beleza.” Em outras palavras: o mundo como ele é, ou como aparenta ser. Pois também aqui há que se ter mais acuidade: uma coisa é ver as formas do mundo separadas do todo, ou mesmo vazias, abstratas. Outra é enxergar através da forma a sua essência, acessível ao nosso espírito (mente). E Schelling adverte: àquele que enxerga do mundo somente a sua casca “jamais será facultado atingir o processo profundo”.


Mas sem idealização, pois as “formas ideais” estão tão mortas quanto aquelas que parecem sem vida a um observador sem alma. Portanto, é preciso - para apreender o Real - “acrescentar o olho do espírito, para penetrar sua casca e sentir a força que nelas se efetua”. Entenda-se esse “olho do espírito” como o olho da mente. O entendimento, portanto, não é fruto de uma observação passiva de um dado evento ou objeto, mas surge da interação entre a mente que observa (a inteligência) e a coisa observada efetivamente. Este é um tema muito antigo e para o qual Karl Marx também atentou: o mundo objetivo tem precedência sobre as ideias. Mais Schelling:


“... os artistas decerto mantiveram, desde tal época, um certo ímpeto idealista, bem como representações de uma beleza que se eleva acima da matéria, mas tais representações assemelhavam-se às belas palavras que não correspondem aos atos.


Há duas questões a se levar em conta: a beleza presente no conceito emanado da alma e a beleza da forma. O que une esses dois elementos numa pintura? Ele responde: “Se a arte não fosse capaz de estabelecer tal vínculo, tal como o faz a natureza, então, em geral, ela não estaria apta a criar nada.” E ele aponta que o artista que somente foi capaz de tomar como ponto de partida a forma em si, mesmo que tenha alcançado o mais alto refinamento de seu trabalho como pintor, ainda assim sua obra será a expressão do vazio. Pois não é possível CRIAR através “da mera forma”.


“Antes de mais nada, a natureza vem ao nosso encontro de modo hermético e sob uma forma mais ou menos rígida. Assemelha-se à beleza sóbria e serena, que não chama a atenção por meio de sinais gritantes e nem atrai o olhar vulgar. Como podemos fundir, digamos, do ponto de vista espiritual, aquela forma aparentemente rígida a fim de que a força mais clamorosa das coisas flua juntamente com a força de nosso espírito, transformando-as num só molde? Temos que ultrapassar a forma, para, aí então, readquiri-la como algo inteligível, vívido e verdadeiramente sentido. (grifo meu)


Leonardo da Vinci: Dama com arminho,
1485-90
Mais à frente em seu discurso, Schelling felicita aquele pintor que consegue, em seu espírito criador, nos mostrar uma obra em que a atividade consciente do seu espírito se une à força inconsciente presente na Natureza. Complementa: “a arte transfere à sua obra, com a mais elevada claridade do entendimento, aquela realidade inescrutável mediante a qual ela termina por se assemelhar a uma obra da natureza.”


Mas nada disto significa copiar. O filósofo alemão criticava aqueles que apenas copiavam o que viam, com “fidelidade subalterna”: “talvez lhe fosse dado produzir larvas, mas de modo algum obras de arte”, diz ele. Pois o critério para definir uma obra de arte é que ela possua em si aquela dupla união entre a forma e o conceito. Que, diga-se de passagem, vai muito além da simples discussão entre “forma e conteúdo”, temas que despertaram calorosos debates nos últimos cem anos. Em muitas pinturas dos mestres não só chama a atenção a sua qualidade técnica, mas também seu “pensamento”. É o que Schelling afirma, junto com outros estudiosos: “Esse espírito da Natureza, que atua no interior das coisas e fala por meio da forma e da figura como que através de imagens-sentido, decerto deve ser emulado pelo artista, haja vista que só quando este o captura com uma vívida imitação lhe é dado criar algo verdadeiro.”


Pois obras que emergem de uma composição de formas, ainda que belas,
seriam destituídas de toda beleza, já que a única coisa que concede beleza à
obra ou ao seu todo já não pode ser a forma. Trata-se de algo que está além 
da forma; é a essência, o universal, vislumbre e expressão do imanente
espírito da natureza.”


As imitações, inclusive levadas ao nível da ilusão, continua Schelling, sempre aparecerão falsas. “Ao passo que uma obra na qual vigora o conceito, termine por lhe arrebatar com a plena força da verdade, transpondo-o de saída ao mundo legitimamente efetivo”.


Michelangelo: Tondo Doni
Avaliando a evolução histórica da arte, desde sua tenra juventude dos tempos mais remotos até os dias atuais, Schelling destaca que a arte suprime algo que não é, segundo ele, essencial: o Tempo. Não “tempo” no sentido histórico humano, mas no sentido mais amplo do tempo como movimento que não se repete. O tempo daquele instante único capturado pelo pincel do artista e que o torna eterno: o instante em que a leiteira derrama o leite dentro de um recipiente e que foi eternizado por Jan Vermeer; aquele momento em que o velho Tiziano, com o rosto já marcado com os sofrimentos da vida, decidiu pintar seu autorretrato; ou o instante do olhar do filho Titus que foi marcado para sempre numa tela por seu pai Rembrandt; ou o momento de angústia de Gustave Courbet detido por sua participação ativa na Comuna de Paris…


Outra das grandes ideias defendidas por Schelling e que deve sempre nos nortear é a da percepção da totalidade das coisas, tendo consciência de que nada no mundo se encontra em separado. Tudo existe em relação. Eu me relaciono com o mundo em que vivo, sofrendo todo o tempo as influências do tempo presente, com sua cultura pulverizada, que tem pregado, nestes tempos pós-modernos, o reino da individualidade e do particular. A “maioria considera o particular em chave negativa”, diz o filósofo, ou seja, o particular como algo que não é parte do todo. Mas o particular só existe em face da totalidade: “morta e insuportavelmente rígida seria a arte que tencionasse expor a casca vazia ou a limitação daquilo que é individual.”


Jan Vermeer: A leiteira, 1658-1661
Nada pode ser separado de nada, nem o sólido do frágil, nem o determinante do determinado. Uma coisa pressupõe a outra e só pode existir em conjunto. Por isso, mesmo aquilo que não é belo, torna-se belo “mediante a harmonia do todo”. Por outro lado, Schelling faz uma admoestação ao artista: na distribuição do espaço, da luz, da sombra e do reflexo, há que se levar em conta as gradações da beleza, para que o quadro não se revele uma “antinatural monotonia”. Há que se particularizar um ponto da obra em que a beleza plena se destaca. Não é possível dar a todo o conjunto a mesma medida de beleza, mas, como Rafael, saber romper sua regularidade para que a expressão mais bela possa brilhar no centro do quadro. Schelling disse também que o “caráter” de uma pintura é aquilo que se extrai do ritmo interno, da “unidade de múltiplas forças” que agem em conjunto para “lograr uma certa harmonia e uma determinada medida”. Somente é possível criar uma unidade viva “se as forças, levadas à sublevação por meio de alguma causa, saírem do equilíbrio.” É a necessária assimetria que cria vida.


Ou seja: o edifício teórico que sustenta uma boa pintura é pleno de conceitos, de movimentos dialéticos entre o olhar do artista e sua observação do mundo.


Ticiano: Autorretrato, óleo sobre tela, 1550
Isto é fácil? Não, dificílimo! Por isso, essa postura tem sido não somente esquecida, mas deixada de lado pela arte dita contemporânea. Pois é melhor atender ao pragmatismo exigido pelo sistema de artes atual (que inclui o Mercado capitalista), mesmo que para isso seja feita uma mutilação no conjunto da teoria, que vem sendo enriquecida ao longo de toda a história humana. Esquece-se o rico legado teórico que herdamos e que poderia nos levar ao lado e além dos mestres do passado, em troca do utilitarismo pragmático que nada cria, a não ser fumaça. Ou que corta um pedaço do pé, para que caiba no sapato da teoria acadêmica atual...


Mas, diz Schelling, a pintura enobrece, modela as almas ou pelo menos indica o poder da alma que nela existe. Ao criar sua obra, o artista leva ao público observador uma possibilidade de mergulho na unidade do mundo, que eleva e dignifica. Mas que também lhe mostra seu potencial e capacidade de criador de seu próprio mundo. Também podemos lembrar do que pensava seu contemporâneo, o filósofo Hegel, que considerava a obra de arte como o meio privilegiado “através do qual o espírito humano se realiza”.


Ao final do seu discurso, Schelling faz menção a alguns dos grandes mestres do passado:


Rafael: Retrato de Agnolo Doni, 1505-06
- Michelangelo, “aquele espírito gigante”, atraído “pelos fundamentos mais recônditos da forma orgânica e, em especial, da figura humana, ele não evita o assustador, senão que o procura intencionalmente, despertando-o de seu repouso nas obscuras oficinas da natureza”;


- Leonardo da Vinci e Correggio apaziguam a violência inicial e “o espírito da natureza transfigura-se em alma” (entenda-se “espírito da natureza como a vida das coisas”). “A expressão geral dessa alma sensível é o claro-escuro (...) pois aquilo que o pintor põe no lugar da matéria é o escuro; sendo esse o estofo no qual ele deve afixar a fugidia aparência da luz e da alma”;


- Rafael “toma posse do sereno Olimpo e, consigo, conduz-nos da Terra à assembleia dos deuses”. “O florescer da vida perfeitamente formada, o perfume da fantasia e o tempero do espírito exalam, juntos, de suas obras. Ele já não é pintor, mas sim filósofo, sendo, a um só tempo, poeta.”;


Abaixo, destaco algumas questões colocadas por Schelling naquele 12 de outubro de 1807 e que até hoje rondam as cabeças de muitos artistas:


- “Como ainda seria possível contemplarmos essas obras dos antigos mestres, de Giotto ao professor de Rafael, movidos por uma espécie de devoção, inclusive por uma certa predileção, se a fidelidade de seus esforços e a grande seriedade de sua serena e espontânea limitação não nos impusesse respeito e admiração?”;


- “(...) temos de recriar a arte seguindo o mesmo trilho que eles seguiram, mas com nossa própria força, para nos igualarmos a eles.”;


- “Tudo o que cresceu a partir de inícios árduos e pequenos, mas terminou por adquirir vasto poder e altura, tornou-se grande por intermédio do entusiasmo. Isso vale tanto para impérios e Estados quanto para as artes e ciências. Não é porém a força do indivíduo que leva isso a efeito; tal tarefa cabe apenas ao espírito, o qual se espraia pelo todo.”;


- Ao artista, ninguém “pode ajudá-lo, já que ele mesmo deve ajudar-se; tampouco pode ser gratificado com algo que esteja fora de si, pois tudo aquilo que viesse a produzir sem vontade própria tornar-se-ia, de imediato, nulo; justamente por isso ninguém pode comandá-lo ou prescrever-lhe o caminho que deve peregrinar. Se é lamentável que tenha de lutar contra sua época, é tanto mais desprezível se com ela for indulgente.”


- “Apenas uma mudança operada nas próprias ideias é, pois, capaz de erguer a arte de seu esgotamento; somente um novo saber e uma nova crença estariam aptos a incitá-la ao trabalho por meio do qual ela revela, numa vida rejuvenescida, uma opulência semelhante àquela do passado. Com efeito, uma arte exatamente igual, em todas as suas determinações, à arte dos séculos precedentes jamais retornará; pois a natureza nunca se repete. Não haverá um Rafael como aquele de outrora, mas um outro a quem, de maneira particularmente similar, será facultado atingir o vértice da arte. Desde que se atenda àquelas condições básicas, a arte revitalizada mostrará o objetivo de sua determinação, tal como mostrara, em suas primeiras obras, a arte que a antecedeu”.
Rembrandt: Titus, óleo sobre tela, 1655