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quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Pequena história do autorretrato - parte V

"A arte da pintura", Jan Vermeer, óleo sobre tela, 1666
Retomamos o assunto da história do autorretrato, após uma pausa longa da qual pedimos desculpas.

E com isso, chegamos até Caravaggio, o pintor “maldito”.

CARAVAGGIO

Detalhe de autorretrato
de Caravaggio  (ver abaixo)
A vida de Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610), que manejava a faca como o pincel, é um romance sombrio, diz Yves Calméjane, autor do livro “Histoire de moi”. Por causa disso, sua biografia inspirou o cinema, inclusive com a beleza dramática da luz que ele dava a seus quadros tenebristas.

Debochado, beberrão, briguento, trapaceiro, depravado, assassino e sedutor de mulheres e rapazes, este andarilho das noites a dentro, este solitário permanentemente em fuga, sabia fazer tudo com um pincel na mão e uma tela… E revolucionou a pintura de seu tempo, encontrando a Beleza na escuridão das noites e madrugadas! Ele também pintou seu autorretrato em várias de suas telas.

Mas nada de tranquilos autorretratos! Com Caravaggio, seu rosto apareceu pintado em cabeças cortadas e bocas abertas em gritos. Ele não fez nada como os outros pintores. Escolhia seus modelos nas ruas sujas de Roma entre mendigos, vagabundos e prostitutas. Com seus rostos ele pintou deuses, anjos, santos e virgens, mas guardando-lhes a verdade: suas falhas e sua sujeira. Uma verdade que fará o pintor clássico Nicolas Poussin uivar de desgosto…

Mesmo antes de completar 20 anos de idade, Caravaggio pinta seu rosto na cabeça da Medusa, ser mitológico com cabelos de serpentes. Um pouco antes de morrer aos 39 anos de idade, ele se pinta na cabeça do gigante Golias, cortada pelo pequeno Davi… Era um pobre pintor agoniado… (leia mais sobre Caravaggio aqui)

DIEGO VELÁZQUEZ

Detalhe de autorretrato
em "Rendição de Breda"
(veja abaixo)
Agora chegamos a um outro pintor que revolucionou toda a pintura: o espanhol de Sevilha, Diego Velázquez (1599-1660). O leitor pode saber mais sobre a vida deste grande pintor em outro artigo deste blog (clique aqui). Para este texto, vamos nos concentrar mais nele como um dos pintores que se interessaram em pintar o próprio rosto.

Velázquez era o pintor do rei Felipe IV, na Corte da Espanha do século XVII. Sua pintura “As meninas”, um dos quadros mais famosos do mundo, mostra um Velázquez à esquerda, com a palheta de tintas e pincel à mão, pintando uma tela que não vemos (ou vemos?).

Com 19 anos de idade ele pinta a “Adoração dos magos” onde seu sogro Pacheco é um dos magos idosos, enquanto que ele mesmo, Velázquez, se representa como um outro mago, mais jovem, ajoelhado aos pés de Jesus e da Virgem, que não é outra que sua própria esposa.

Mais tarde, e já na corte do rei, ele pinta o quadro histórico “A rendição de Breda”, a pedido do rei e nele também Velázquez se pinta como uma das testemunhas deste acordo de paz. (leia mais sobre Velázquez aqui)

VERMEER e REMBRANDT

Detalhe de autorretrato
de Vermeer em "O casamenteiro"
(veja abaixo) 
Rembrandt (1606-1669) e Vermeer (1632-1675), dois grandes mestres da pintura holandesa, são contemporâneos porém diferentes em muitas coisas, entre elas, no que diz respeito aos autorretrato. O primeiro foi um dos pintores que mais se autorretratou, enquanto do segundo conhecemos apenas um autorretrato, e de costas…

Vermeer pintou pouco na vida, menos de 40 obras. Quase não sabemos sobre sua vida, não conhecemos nem mesmo quem foram seus mestres, se é que ele teve um… Não deixou nenhum escrito e não teve alunos. Sabemos que ele se converteu ao catolicismo após se casar com Catharina Bolnes e que eles tiveram 15 filhos, sendo que quatro morreram ainda pequenos. Sabemos ainda que ele era membro da Guilda dos pintores de Delft, mas que, para manter sua numerosa família, ele tinha uma espécie de galeria onde comercializava as pinturas de outros pintores. (mais sobre Vermeer aqui)

Graças a alguns metódicos pesquisadores de arte, existe uma chance de que em um de seus quadros Vermeer tenha se pintado de costas.

Vermeer pintou pouco na vida, menos de 40 obras. Quase não sabemos sobre sua vida, não conhecemos nem mesmo quem foram seus mestres, se é que ele teve um… Não deixou nenhum escrito e não teve alunos. Sabemos que ele se converteu ao catolicismo após se casar com Catharina Bolnes e que eles tiveram 15 filhos, sendo que quatro morreram ainda pequenos. Sabemos ainda que ele era membro da Guilda dos pintores de Delft, mas que, para manter sua numerosa família, ele tinha uma espécie de galeria onde comercializava as pinturas de outros pintores.
Graças a alguns metódicos pesquisadores de arte, existe uma chance de que em um de seus quadros Vermeer tenha se pintado de costas. Ou até pode ser que uma figura masculina que aparece em outra pintura seja ele mesmo, já que está vestido com a mesma roupa e o mesmo chapéu que na tela “A arte da pintura”. Na verdade, em um leilão realizado em 1696 em Amsterdam, o catálogo apresentava, entre outras, 21 telas de Vermeer. No terceiro lote esta assim escrito: “Retrato de Vermeer em um interior com diversos acessórios, de uma rara beleza, pintado por ele”. Era o quadro “A arte da pintura”, que atualmente está exposto no Kunsthistoriches Museu de Viena, Áustria. Nesta tela, há um pintor em pleno trabalho.

A moça que aparece nesse quadro, à esquerda, representa Clio, a musa da História, que carrega um trompete e tem na cabeça uma coroa de heras, símbolo da vitória. Também carrega um livro de história. Seria graças a Clio que não nos esquecemos os momentos de glória. Seus olhos vêem uma mesa onde estão postos uma máscara de teatro, uma partitura musical e um caderno de desenho. Ela parece pronta a proclamar que estas artes conheceram tempos gloriosos… Este tempo seria o de antes da revolta religiosa e política contra os Habsbourg que, por Felipe II e seu pai Carlos V, descendiam dos duques de Bourgogne, que eram grandes mecenas das artes.

Nesse quadro, Vermeer realizou uma alegoria onde cada elemento evoca uma ideia. A obra “A arte da pintura” seria então não só um manifesto político, como artístico.

REMBRANDT

Autorretrato de Rembrandt, 1628
Ao contrário de Vermeer, Rembrandt pintou inúmeros autorretratos, da juventude à velhice.

Em seu retrato de 1628, quando estava com 22 anos de idade, Rembrandt resume o que seria sua arte. Este estudo de claro-escuro que caracteriza toda a arte do mestre, já anuncia os profundos autorretratos de sua fase madura. Sobre um fundo luminoso, a cabeça pintada quase em silhueta, iluminada por um raio de luz sobre o lado direito da face escondida também pelos vastos cabelos, surgem na sombra os dois olhos que parecem dialogar com o espectador…

Em 1961, o estudioso dos autorretratos Manuel Gasser observou que, no caso de Rembrandt, os autorretratos "eram um meio dele se conhecer melhor, e no final da vida tomaram a forma de um diálogo interior: um velho homem solitário se comunicando consigo mesmo enquanto pintava”.

Da juventude à velhice, os autorretratos de Rembrandt parecem os de um homem que queria acompanhar os efeitos do passar do tempo em seu próprio rosto… O autorretrato do final de sua vida, além de tudo, é uma verdadeira metáfora do homem e do tempo que ele viveu. (mais sobre Rembrandt aqui)

Abaixo as obras mencionadas:


"David com a cabeça de Golias", Caravaggio, 1609-1610


"Cabeça da Medusa", Caravaggio, óleo sobre tela, 1598
"Adoração dos magos", Diego Velázquez, óleo sobre tela, 1619 
"A rendição de Breda", Diego Velázquez, óleo sobre tela, 1634-35

"As meninas", Diego Velázquez, óleo sobre tela, 1656

"O casamenteiro", Jan Vermeer, óleo sobre tela, 1656
Um dos últimos autorretratos de Rembrandt

Autorretrato de Rembrandt

Autorretrato de Rembrandt

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

A Luz, o princípio da Cor - parte IV - O Vermelho

"A educação de Maria de Médicis", Peter Paul Rubens,
1622-25, óleo sobre tela, Museu do Louvre, Paris
No livro “Le petit livre des couleurs” (“Pequeno livro das cores”), Michel Pastoreau fala sobre a história das cores, como vimos no post anterior, onde começamos com a cor Azul. Neste artigo, vamos fazer um resumo do que ele fala sobre a cor vermelha.

O Vermelho

O Vermelho é uma cor orgulhosa, ambiciosa e sedenta de poder. Uma cor que quer se fazer ver e que se impõe a todas as outras. Nem sempre seu passado foi glorioso, pois há uma face escondida do vermelho, um “mal vermelho”, que causou destruições ao longo do tempo, plena de atos de violência, de crimes e pecados.

O Vermelho é “cor”, acima de tudo. Algumas palavras como “coloratus” em latim e “colorado” em espanhol significam tanto “vermelho” como “colorido”. E na língua russa, a palavra “krasnoï” quer dizer tanto “vermelho” como “belo”. Ou seja, a famosa Praça Vermelha de Moscou também pode ser entendida como Praça Bela. 

Bisão da caverna de Altamira, Espanha -
arte pré-histórica  
Antigamente, o sistema cromático girava em torno da tríade Preto, Branco e Vermelho. O Branco representava o que não tinha cor, o Negro, aquilo que era sujo, e o Vermelho era considerado a única cor.

Um dos motivos do predomínio do Vermelho em nossa cultura desde a mais longínqua antiguidade, diz Pastoreau, deve-se ao fato de que muito cedo o homem começou a fabricar pigmentos vermelhos. Desde o período paleolítico, há 35 mil anos atrás, o ser humano já utilizava o Vermelho, obtido a partir de argilas e terras avermelhadas. Ou seja, a partir de fontes minerais. Mas no Neolítico surgiu a erva Garance, cujas raízes produzem uma cor avermelhada. Ao longo do tempo, começamos a usar pigmentos obtidos a partir de certos metais, como o ferro, o mercúrio, etc. Por causa da facilidade da produção desse pigmento, obtido de diversas fontes, essa cor obteve tanto sucesso desde o início dos tempos.

Desde a Antiguidade já era dado ao Vermelho atributos de poder, tanto na religião quanto na guerra. O deus Marte, os centuriões romanos e até mesmo certos sacerdotes se vestiam nesta cor. Obviamente desde cedo se relacionava o Vermelho com o Sangue e com o Fogo. Desde os princípios do cristianismo, o Fogo Vermelho era símbolo de Vida, e um dos exemplos mais conhecidos dessa simbologia são as línguas de fogo que descem sobre as cabeças do apóstolos no dia de Pentecostes. O sangue vermelho de Cristo é símbolo de salvação.

Mas o Vermelho também tem outro sentido simbólico: é também a Morte, o Inferno, as chamas de Satã, a carne impura, os crimes, o pecado e todas as impurezas. Mas também representa o Amor…


O inseto cochonilha
Na Roma antiga, também se produzia um tipo de vermelho a partir de uma concha encontrada no Mar Mediterrâneo, a “murex”. Como era uma concha rara, obviamente só eram tingidas com esse pigmento as roupas do imperador e dos chefes de guerra. Mas na Idade Média já não era mais possível encontrar essa concha e os tintureiros descobriram uma outra fonte para fabricar um belo pigmento vermelho: os ovos de um inseto conhecido como “cochonilha”, que é parasita de muitas árvores e do qual se extrai o “carmin”, uma variante do vermelho.

"Retrato do Papa Júlio II", Rafael di Sanzio,
1511-12, óleo sobre madeira 
Mas era difícil a produção do carmin a partir dos ovos deste pequeno inseto. Por isso, o preço era alto e somente os senhores das altas classes poderiam usar vestimentas tingidas por esta cor. O Carmin era um vermelho brilhante, luminoso, intenso, observa Michel Pastoreau. Os camponeses só podiam usar roupas vermelhas a partir da Garance, que era mais barato, mas também menos luminosa. Então, a diferença entre as classes sociais já surgia nesse período: havia o Vermelho dos pobres e o Vermelho dos ricos. O Vermelho mais vivo era marca de poder, tanto entre a aristocracia quanto entre os padres da igreja. Por isso, a partir do século XIII e XIV, o papa começa a se vestir de vermelho. Assim como os cardeais…

Mas ao mesmo tempo também se pintava o diabo na cor vermelha! E tudo se acomodava.

Pastoreau lembra a fábula do “Chapeuzinho Vermelho”, que atravessa as noites do tempo sendo contada às crianças desde o ano 1.000! Existem várias interpretações para a cor do chapéu da menina, mas Pastoreau prefere aquela que se liga às três cores dominantes por longo período de tempo: uma menina de chapéu Vermelho, carrega um pote de manteiga Branco e o leva à sua avó que era vestida de Preto. Outras estórias infantis daqueles tempos tinham vários outros exemplos de uso das três cores do sistema antigo, o Branco, o Preto e o Vermelho.

Tintureiros medievais
No mundo dos tintureiros da Idade Média, as licenças para trabalhar com as cores eram divididas: havia aqueles que tinham licença para fabricar o Vermelho, assim como o Amarelo e o Branco; outros tinham licença para fabricar o Azul, assim como o Verde e o Preto. Em alguns lugares a especialização era tanta que em Veneza e Milão, por exemplo, os que fabricavam o Vermelho Garance não podiam fabricar o Vermelho Kermès (extraído dos ovos de cochonilha). Isso era controlado de uma maneira tal que se alguém desobedecia a essas regras sofria um processo. Tintureiros do Azul e do Vermelho viviam em ruas separadas e frequentemente entravam em violentos conflitos, se acusando reciprocamente de poluir os rios. Naquela época a indústria europeia se resumia à indústria têxtil.

Para a Reforma Protestante, o Vermelho era uma cor imoral, pois os protestantes baseavam-se num trecho do Apocalipse que falava de uma besta vinda do mar que era montada pela prostituta da grande Babilônia vestida de vermelho. Por isso, depois do século XVI, nos países protestantes os homens não se vestiam mais de vermelho, com exceção dos cardeais e de certas ordens de cavalaria. Nos meios católicos, as mulheres podiam se vestir de vermelho. As coisas se invertem: antes, o azul era a cor feminina (por causa da Virgem) e o vermelho, masculina, porque era signo de poder e de guerra. Após a Reforma, a cor masculina passa a ser Azul e o Vermelho, a cor das mulheres. Inclusive até o final do século XIX as noivas se vestiam de vermelho no dia do casamento, especialmente as mulheres do povo… O motivo disso é que no dia do casamento a pessoa deve vestir a sua mais bela roupa, e um vestido vermelho era sempre o mais belo. 

Ao mesmo tempo, as prostitutas, durante um longo período de tempo, eram obrigadas a vestir uma peça de roupa vermelha para que fossem logo identificadas. Assim como deviam colocar nas portas de suas casas uma lanterna vermelha… daí a origem das nossas brasileiras “casas da luz vermelha”...

"Rua Mosnier decorada com bandeiras", Edouard Manet, 1878
Mas também o Vermelho foi escolhido como a cor da bandeira do Partido Comunista. Diz Michel Pastoreau que isso se deu em 1789, quando a Assembleia Constituinte francesa decreta que uma bandeira vermelha seria colocada nos cruzamentos das ruas para mostrar que as manifestações públicas estavam proibidas e que a polícia deveria intervir a qualquer momento. Foi então que no dia 17 de julho de 1791 milhares de parisienses se reuniram no Campo de Marte para exigir a destituição de Luís XVI. O prefeito de Paris, Bailly, mandou içar no alto uma grande bandeira vermelha, para que não restasse dúvida de que o povo devia se manter longe das ruas. Mas o povo tomou a praça e a polícia investiu contra os manifestantes, matando mais de 50 pessoas. Por causa disso, numa “surpreendente inversão” simbológica, a mesma bandeira vermelha que era usada para impedir que o povo francês se manifestasse, lavada desta forma pelo “sangue desses mártires”, passou, desde então, a ser o emblema do povo oprimido e da revolução em marcha. “A bandeira vermelha, diz um dos revolucionários franceses, além de ser um símbolo da miséria do povo também é um sinal de ruptura com o passado”.

Michel Pastoreau termina este capítulo sobre a história da cor vermelha dizendo que no domínio do simbólico, nenhum símbolo deixa verdadeiramente de existir ao longo do tempo. Os símbolos duram. Tanto o Vermelho como símbolo de poder no mundo ocidental, quanto o Amarelo dos asiáticos que significam a mesma coisa, atravessaram os séculos, da mesma forma que esta simbologia do vermelho como a cor dos proletários e dos revolucionários em todo o mundo. Era a cor da bandeira da URSS e é a cor da bandeira da China, sob o domínio do Partido Comunista. É a cor da bandeira do Partido Comunista do Brasil, obviamente.

Mas Vermelho também significa, no mundo ocidental, a festa, o natal, o luxo, o espetáculo: as salas de teatro são decorados com cortinas vermelhas. Quando queremos dizer que alguém está “vermelho de cólera”, resgatamos esses símbolos do passado. E também associamos essa cor ao erotismo e à paixão. Mas na vida cotidiana, usamos menos a cor vermelha, em nossos móveis, mobiliários, automóveis, etc. Mas usamos sempre em casos de advertimentos: sinais de trânsito, de proibição, a cruz vermelha ligada à saúde… “Tudo isto deriva da mesma história, a do fogo e do sangue”, diz Pastoreau.

(continua em breve)


"Jovem com copo de vinho", Jan Vermeer, 1660, óleo sobre tela

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

A Luz, o princípio da Cor - parte III - O Azul

"O Rigi azul - lago de Lucerna - por do sol", William Turner, óleo sobre tela, 1842

Continuando nossa pesquisa sobre as cores, vamos destacar aqui um livro bastante interessante sobre a história de cada cor. Infelizmente ele ainda não foi traduzido para o português - pelo menos em edição brasileira - mas em francês seu título é “Le petit livre des couleurs” (“Pequeno livro das cores”), fruto de uma conversa entre o jornalista e escritor Dominique Simmonet com umas das maiores autoridades mundiais quando se trata do tema da Cor: Michel Pastoreau (1947-), historiador, antropólogo e especialista no assunto das cores e dos símbolos, autor de muitos livros sobre o assunto, sobrinho de Claude Lévi-Strauss, antropólogo bem conhecido aqui no Brasil.

Este livro é bastante interessante porque, além de falar da história das cores, faz um apanhado bastante atrativo sobre a simbologia que se esconde atrás de cada cor. Mais recentemente, Michel Pastoreau publicou o livro “História de uma Cor” (publicado no Brasil pela Cosac Naify) onde ele fala do Preto. Também voltaremos a este livro brevemente em outro post.


As 6 cores de Pastoreau
Na introdução do “Le petit livre des couleurs”, escrita por Simmonet, ele explica que as cores não se deixam facilmente aprisionar em categorias e isto tem sido assim desde a Antiguidade. Aristóteles falava de seis cores; Isaac Newton, de sete; para Michel Pastoreau, existem seis cores, não mais. Cito um pequeno texto do jornalista:

Para começar, o tímido Azul, o favorito dos nossos contemporâneos porque ele sabe se fazer consensual. Em seguida, o orgulhoso  Vermelho, sedento de poder, que manipula o sangue e o fogo, a virtude e o pecado. Aqui está o Branco virginal, aquele dos anjos e dos fantasmas, da abstenção e de nossas noites insones. Logo vem o Amarelo do milho, um problema complexo, lutando para aliviar seu status (você deve desculpá-lo, por muito tempo ele foi marcado pela infâmia). Em seguida vem o Verde, também carregando uma má reputação, desonesto e astuto, rei do acaso e dos amores infiéis. Enfim, o suntuoso Preto, que joga um duplo papel, humilde quando austero, arrogante quando elegante…

Mas para Michel Pastoreau existe um segundo nível das cores: Violeta, Rosa, Laranja, Marron e Cinza que seriam cinco “semi-cores”, cujos nomes são ligados a nomes de flores e frutas.

Mas vamos às cores, segundo Pastoreau. Como as informações são muito interessantes, publicarei um resumo do que ele fala, começando pelo Azul.

O Azul


De caráter dócil, disciplinado, sábio, que se esconde na paisagem. O Azul tem algo de consensual no mundo ocidental e está presente no símbolo da União Europeia, além de várias bandeiras de países, incluindo a nossa brasileira. Mas durante muito tempo ficou em segundo plano no reino das cores, inclusive sendo desprezada na antiguidade. Mas foi ganhando valor ao longo do tempo e acabou sendo a unanimidade de hoje, a cor que reina sobre as roupas que usamos, especialmente os jeans. Essa mudança, segundo o antropólogo, ocorreu a partir de 1890. Toda a civilização ocidental de hoje dá primazia ao Azul.

Mas isso não foi sempre assim. O Azul durante milhares de anos não era considerado uma cor e não estava presente “nem nas cavernas paleolíticas e nem neolíticas” (onde se encontram os primeiros desenhos feitos pelo homem). Antigamente só o Preto, o Branco e o Vermelho eram considerados cores, com exceção somente do Egito antigo, onde o Azul significava a esperança na vida do além túmulo.

Um dos motivos pode ter sido o da extrema dificuldade em fabricar a cor Azul naqueles tempos. No Império Romano era a cor dos bárbaros, dos estrangeiros. “Diversos testemunhos o afirmam: ter os olhos azuis, para uma mulher era sinal de má conduta. E para os homens, uma marca ridícula”, afirma Pastoreau. Nos textos gregos antigos não se encontram referências ao azul e isso chegou até a intrigar certos filósofos do século XIX que acreditavam seriamente que os gregos antigos não enxergavam a cor azul…

A rocha lápis-lázuli
Esta situação da cor Azul se estendeu até à Idade Média, segundo o professor. Nesse período, as cores da Liturgia da Igreja se resumiam ao Branco, Preto, Vermelho e Verde. Mas no século XIII tudo muda e esta cor começa a ser reconhecida e mesmo promovida. Uma das fontes principais deste pigmento, vinha de uma pedra, o Lápis-Lázuli, proveniente da Índia e era caríssima.

Mas o reconhecimento dado ao Azul tinha pouco a ver com o processo de fabricação, que era muito difícil. Tem mais a ver com uma mudança profunda na ideias religiosas. Desde essa época, o Deus dos cristãos passou a ter uma relação direta com a Luz. E olhando para o céu a luz parece… Azul! “Pela primeira vez no Ocidente, começamos a pintar os céus de azul - até então eles eram pintados de preto, vermelho, branco ou dourado.” Exatamente no mesmo período a Igreja incentiva o culto à Maria, mãe de Deus, que “habita” o céu, que é azul. Os pintores passaram a pintar Maria com um manto azul.

Mas teve outro fator que influiu para a descoberta do Azul: foi no mesmo período que se começou uma “verdadeira sede” de classificação para todos e tudo: as pessoas começaram a receber nomes de família, tinham seus brasões individuais e as tarefas de trabalho passaram a ser designadas. Era preciso mostrar a diversidade do mundo e isso incluía as cores. Vermelho, Preto e Branco não representavam tudo. Foi nessa época que, além do Azul, o Amarelo e o Verde também entram na classificação das cores. Passamos de uma palheta de 3 cores, para uma de 6. Exatamente a divisão feita por Aristóteles. Em 1.130, quando o abade Suger manda reconstruir a Igreja de Saint Denis, ele mandou colocar vitrais de todas as cores, para “dissipar as trevas interiores” à igreja.

Michel Pastoreau diz que muito antes dos artistas e dos tintureiros, os homens da Igreja foram grandes coloristas. Como muitos deles eram pesquisadores, filósofos, estudiosos não só das ideias espirituais mas da observação do mundo, foram os primeiros a fazer experiências óticas, a estudar o arco-íris. Já falamos de Robert de Grosseteste em nosso primeiro texto sobre as cores. O abade Suger, por exemplo, não tinha dúvida: Cor é Luz. Mas ao contrário dele, São Bernardo, abade de Clairvaux (cidade do interior da França), dizia que a Luz é Matéria e por isso abominável e por isso se deveria preservar as igrejas das cores porque elas servem de distração para os monges e para os fieis, que se afastam de Deus…

Hoje este debate é muito atual, na Física Quântica: a Luz é Onda ou Partícula?

"O Bom Pastor", ost,
Philippe de Champagne, séc. XVII
Desde então, o Azul se espalha por igrejas, obras de arte e começou a ser usado nas roupas. “Se a Virgem se veste de azul, o rei da França também o fará...”. São Luís rei de França foi um dos primeiros reis franceses a adotar a cor azul em sua vestimenta. E toda a aristocracia também. A indústria da tinturaria prospera, aperfeiçoando os pigmentos e nuances de azul…

A economia cresce! Os campos se enchem com a planta conhecida por “guède” ou “pastel” (em nosso continente conhecida como Anil), que dava um colorante excepcional, o Índigo. Foi uma das primeiras empreitadas agro-industriais e certas regiões da Europa enriqueceram com seu plantio: a região de Toulouse, na França, por exemplo, e, na Itália, a Toscana. Era o período do chamado “Ouro Azul”.

Michel Pastoreau conta a anedota de que na região de Estrasburgo, onde predominava a planta “garance” que dá o colorante vermelho, os agricultores fizeram uma verdadeira campanha contra os colegas fornecedores do pigmento azul. Subornaram um mestre vidreiro que fazia vitrais para as igrejas, para que ele representasse o diabo na cor azul, na tentativa de desvalorizar o azul, seu grande concorrente. Foi a primeira batalha entre o Vermelho e o Azul… Me lembro de quando eu era criança, em Caruaru, e existia um folguedo onde meninas enfeitadas com fitas formavam dois cordões: o Azul e o Vermelho. Eu sempre preferia as do Cordão Azul…

Mas a guerra entre essas duas cores foi longa e durou até o século XVIII, diz Pastoreau. No fim da Idade Média, a Reforma Protestante dividiu as cores em dois tipos: as dignas e as indignas. A Reforma, então, instituiu a seguinte palheta de cores: Branco, Preto, Cinza, Marron e Azul.

Neste ponto Michel Pastoreau sugere uma comparação entre dois grandes nomes da pintura: o calvinista Rembrandt, com sua palheta bastante restrita, e Rubens, o católico, que tinha uma palheta muito colorida. Assim como é bom notar - sugere ele - a evolução de Philippe de Champaigne, um pintor francês que enquanto era católico tinha uma palheta bastante colorida e que ficou mais escurecida e também azulada quando ele se tornou jansenista.

Até mesmo as roupas das pessoas passaram por mudanças: era recomendável a todos os homens o uso de vestimentas de cor preta, cinza ou azul. Pastoreau nos indaga: ainda não estamos sob o regime da Reforma, uma vez que aos homens de nosso tempo é recomendado o uso de ternos nessas cores, ou pelo menos mais sobriedade nas cores das roupas masculinas?

"Arlequim pensando", fase azul de Picasso
No século XVIII, o Azul era a cor preferida dos europeus em geral. Em 1720 um farmacêutico de Berlim inventa por acidente o famoso Azul da Prússia, o que vai permitir ao pintores e aos tintureiros uma gama de azuis mais diversificada. Além disso, o Índigo começou a ser importado em grandes quantidades vindo das Antilhas e da América Central, que tinha ainda mais poder de coloração. E acima de tudo, mais barato, porque era fruto do trabalho dos escravos.

O Azul vira moda em todos os lugares. O Romantismo, movimento cultural que surgiu no fim do século XVIII na Alemanha e na Inglaterra, acentuou ainda mais o caráter do Azul. Diz Pastoreau: “Como seus heróis, e o Werther de Goethe, os jovens europeus se vestiam de azul, e a poesia romântica alemã celebra o culto desta cor melancólica”.

E, por fim, a grande invenção da cor azul que surge no ano de 1850: as calças jeans, inventadas em São Francisco, na Califórnia, EUA, por um costureiro judeu, Levi-Strauss. A primeira calça moderna de trabalho.

Foi somente a partir de 1930 que as calças jeans passaram a ser usadas, nos EUA, fora do ambiente de trabalho. Na década de 1960 se tornou símbolo da juventude rebelde. Até mais ou menos o começo da década de 1980, em plena ditadura militar no Brasil, uma publicidade incentivava ainda mais nossos espíritos de rebelião com o jingle genial:

“Liberdade é uma calça velha, 
azul e desbotada 
que você pode usar 
do jeito que quiser! 
Não usa quem não quer!”

Basta olhar para quase todas as pernas, no dia de hoje, incluindo as minhas, para constatar: vestimos todos a mesma e velha calça índigo blue...

"Mulher de azul lendo uma carta", Johannes Vermeer, 1663-46, óleo sobre tela.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A alma do mundo

Gustave Courbet: A onda, óleo sobre tela, 1870
Acabei de ler o texto “Sobre a relação das artes plásticas com a natureza”, do filósofo alemão Friedrich Wilhelm von Schelling (1775-1854). Esse texto foi escrito para seu discurso de entrada na Academia Bávara de Ciências, em Munique, Alemanha, e foi proferido no dia 12 de outubro de 1807. A repercussão do texto foi grande, e até Goethe o felicitou. Schelling foi contemporâneo de Hegel, um dos filósofos que mais escreveu sobre Estética e sobre Arte.


Schelling
Pela atualidade do tema e por descobrir grande convergência entre a visão de Schelling sobre a pintura e minhas próprias convicções pessoais sobre arte Realista, faço abaixo uma tentativa de expor um resumo dessas ideias.


A arte realista busca beber na fonte inesgotável da realidade do mundo, realidade em permanente mudança, buscando ir além das aparências até alcançar o movimento interno que gera a vida. A pintura realista considera que expressar a forma de um objeto ou figura significa também expressar seu movimento interno, sua alma pulsante na alma do artista, num jogo dialético que abrange espaço, tempo, forma, cor, luz, valor, mas também conceito e visão de mundo.


Vale lembrar que a pintura realista sempre esteve presente nas artes plásticas desde tempos imemoriais. No período da Idade Média, incluindo o Renascimento, os artistas eram obrigados - por força das circunstâncias da época (econômicas, políticas, culturais e filosóficas) - a pintar o mundo idealizado do reino celestial com suas figuras de anjos e santos, além de ilustrar as histórias bíblicas e seus diversos personagens. Ticiano e Caravaggio inovaram a pintura de seu tempo, incluindo como modelos pessoas reais (Caravaggio) e uma forma de ver o mundo através do movimento das cores que rompiam as linhas do desenho (Ticiano). Depois deles, gerações de artistas se voltaram para o mundo concreto, para o Real e seu sentido de inesgotabilidade, de permanente mudança e movimento contínuo. Esse Real do qual não se vê mais do que a aparência, que é fugidio, se desnuda para a observação profunda e a contemplação silenciosa dos artistas.


Neste ponto, nos encontramos com Schelling, e com ele prosseguimos.


Logo no começo do seu discurso, ele traça uma diferença entre formas de descrever o mundo. Uma delas é por meio do discurso, da eloquência, da exposição oral. “Mas a arte - diz ele - possui essa vantagem de ser dada visualmente”, apresentando de uma maneira diferente - para os olhos - aquilo que é difícil de ser apreendido por palavras. E neste sentido a arte plástica se torna Poesia, “poesia muda”, como ele acrescenta. Silenciosa, a arte plástica cria um vínculo, uma ponte entre a alma humana e a Natureza, o Real.


O verdadeiro modelo e “fonte primordial” da arte plástica é a Natureza. Mas Schelling aponta os questionamentos que dizem que isso já é feito pela ciência e que há “tantas representações” da natureza quanto “os diferentes modos de vida”. Sim, mas mesmo aí há também diferentes tratamentos para o mesmo tema e isso é o que cria a enorme diferença de visão de mundo a partir das artes plásticas, o que se torna ainda mais claro nos dias atuais.


Schelling já falava daqueles (incluindo pintores) para quem o mundo não passa de um amontoado de eventos e objetos e coisas sem vida, como “uma imagem muda”, “completamente morta”:

“Um esqueleto oco de formas a partir do qual uma imagem igualmente oca
deveria ser transportada para a tela.”


Observa Schelling que esse era o modo rude de ser dos povos antigos e que somente com os gregos é que o mundo pulsante passou a ser visto como tal. E com isso, admitiu-se que “o perfeito está misturado ao imperfeito, bem como o belo àquilo que é destituído de beleza.” Em outras palavras: o mundo como ele é, ou como aparenta ser. Pois também aqui há que se ter mais acuidade: uma coisa é ver as formas do mundo separadas do todo, ou mesmo vazias, abstratas. Outra é enxergar através da forma a sua essência, acessível ao nosso espírito (mente). E Schelling adverte: àquele que enxerga do mundo somente a sua casca “jamais será facultado atingir o processo profundo”.


Mas sem idealização, pois as “formas ideais” estão tão mortas quanto aquelas que parecem sem vida a um observador sem alma. Portanto, é preciso - para apreender o Real - “acrescentar o olho do espírito, para penetrar sua casca e sentir a força que nelas se efetua”. Entenda-se esse “olho do espírito” como o olho da mente. O entendimento, portanto, não é fruto de uma observação passiva de um dado evento ou objeto, mas surge da interação entre a mente que observa (a inteligência) e a coisa observada efetivamente. Este é um tema muito antigo e para o qual Karl Marx também atentou: o mundo objetivo tem precedência sobre as ideias. Mais Schelling:


“... os artistas decerto mantiveram, desde tal época, um certo ímpeto idealista, bem como representações de uma beleza que se eleva acima da matéria, mas tais representações assemelhavam-se às belas palavras que não correspondem aos atos.


Há duas questões a se levar em conta: a beleza presente no conceito emanado da alma e a beleza da forma. O que une esses dois elementos numa pintura? Ele responde: “Se a arte não fosse capaz de estabelecer tal vínculo, tal como o faz a natureza, então, em geral, ela não estaria apta a criar nada.” E ele aponta que o artista que somente foi capaz de tomar como ponto de partida a forma em si, mesmo que tenha alcançado o mais alto refinamento de seu trabalho como pintor, ainda assim sua obra será a expressão do vazio. Pois não é possível CRIAR através “da mera forma”.


“Antes de mais nada, a natureza vem ao nosso encontro de modo hermético e sob uma forma mais ou menos rígida. Assemelha-se à beleza sóbria e serena, que não chama a atenção por meio de sinais gritantes e nem atrai o olhar vulgar. Como podemos fundir, digamos, do ponto de vista espiritual, aquela forma aparentemente rígida a fim de que a força mais clamorosa das coisas flua juntamente com a força de nosso espírito, transformando-as num só molde? Temos que ultrapassar a forma, para, aí então, readquiri-la como algo inteligível, vívido e verdadeiramente sentido. (grifo meu)


Leonardo da Vinci: Dama com arminho,
1485-90
Mais à frente em seu discurso, Schelling felicita aquele pintor que consegue, em seu espírito criador, nos mostrar uma obra em que a atividade consciente do seu espírito se une à força inconsciente presente na Natureza. Complementa: “a arte transfere à sua obra, com a mais elevada claridade do entendimento, aquela realidade inescrutável mediante a qual ela termina por se assemelhar a uma obra da natureza.”


Mas nada disto significa copiar. O filósofo alemão criticava aqueles que apenas copiavam o que viam, com “fidelidade subalterna”: “talvez lhe fosse dado produzir larvas, mas de modo algum obras de arte”, diz ele. Pois o critério para definir uma obra de arte é que ela possua em si aquela dupla união entre a forma e o conceito. Que, diga-se de passagem, vai muito além da simples discussão entre “forma e conteúdo”, temas que despertaram calorosos debates nos últimos cem anos. Em muitas pinturas dos mestres não só chama a atenção a sua qualidade técnica, mas também seu “pensamento”. É o que Schelling afirma, junto com outros estudiosos: “Esse espírito da Natureza, que atua no interior das coisas e fala por meio da forma e da figura como que através de imagens-sentido, decerto deve ser emulado pelo artista, haja vista que só quando este o captura com uma vívida imitação lhe é dado criar algo verdadeiro.”


Pois obras que emergem de uma composição de formas, ainda que belas,
seriam destituídas de toda beleza, já que a única coisa que concede beleza à
obra ou ao seu todo já não pode ser a forma. Trata-se de algo que está além 
da forma; é a essência, o universal, vislumbre e expressão do imanente
espírito da natureza.”


As imitações, inclusive levadas ao nível da ilusão, continua Schelling, sempre aparecerão falsas. “Ao passo que uma obra na qual vigora o conceito, termine por lhe arrebatar com a plena força da verdade, transpondo-o de saída ao mundo legitimamente efetivo”.


Michelangelo: Tondo Doni
Avaliando a evolução histórica da arte, desde sua tenra juventude dos tempos mais remotos até os dias atuais, Schelling destaca que a arte suprime algo que não é, segundo ele, essencial: o Tempo. Não “tempo” no sentido histórico humano, mas no sentido mais amplo do tempo como movimento que não se repete. O tempo daquele instante único capturado pelo pincel do artista e que o torna eterno: o instante em que a leiteira derrama o leite dentro de um recipiente e que foi eternizado por Jan Vermeer; aquele momento em que o velho Tiziano, com o rosto já marcado com os sofrimentos da vida, decidiu pintar seu autorretrato; ou o instante do olhar do filho Titus que foi marcado para sempre numa tela por seu pai Rembrandt; ou o momento de angústia de Gustave Courbet detido por sua participação ativa na Comuna de Paris…


Outra das grandes ideias defendidas por Schelling e que deve sempre nos nortear é a da percepção da totalidade das coisas, tendo consciência de que nada no mundo se encontra em separado. Tudo existe em relação. Eu me relaciono com o mundo em que vivo, sofrendo todo o tempo as influências do tempo presente, com sua cultura pulverizada, que tem pregado, nestes tempos pós-modernos, o reino da individualidade e do particular. A “maioria considera o particular em chave negativa”, diz o filósofo, ou seja, o particular como algo que não é parte do todo. Mas o particular só existe em face da totalidade: “morta e insuportavelmente rígida seria a arte que tencionasse expor a casca vazia ou a limitação daquilo que é individual.”


Jan Vermeer: A leiteira, 1658-1661
Nada pode ser separado de nada, nem o sólido do frágil, nem o determinante do determinado. Uma coisa pressupõe a outra e só pode existir em conjunto. Por isso, mesmo aquilo que não é belo, torna-se belo “mediante a harmonia do todo”. Por outro lado, Schelling faz uma admoestação ao artista: na distribuição do espaço, da luz, da sombra e do reflexo, há que se levar em conta as gradações da beleza, para que o quadro não se revele uma “antinatural monotonia”. Há que se particularizar um ponto da obra em que a beleza plena se destaca. Não é possível dar a todo o conjunto a mesma medida de beleza, mas, como Rafael, saber romper sua regularidade para que a expressão mais bela possa brilhar no centro do quadro. Schelling disse também que o “caráter” de uma pintura é aquilo que se extrai do ritmo interno, da “unidade de múltiplas forças” que agem em conjunto para “lograr uma certa harmonia e uma determinada medida”. Somente é possível criar uma unidade viva “se as forças, levadas à sublevação por meio de alguma causa, saírem do equilíbrio.” É a necessária assimetria que cria vida.


Ou seja: o edifício teórico que sustenta uma boa pintura é pleno de conceitos, de movimentos dialéticos entre o olhar do artista e sua observação do mundo.


Ticiano: Autorretrato, óleo sobre tela, 1550
Isto é fácil? Não, dificílimo! Por isso, essa postura tem sido não somente esquecida, mas deixada de lado pela arte dita contemporânea. Pois é melhor atender ao pragmatismo exigido pelo sistema de artes atual (que inclui o Mercado capitalista), mesmo que para isso seja feita uma mutilação no conjunto da teoria, que vem sendo enriquecida ao longo de toda a história humana. Esquece-se o rico legado teórico que herdamos e que poderia nos levar ao lado e além dos mestres do passado, em troca do utilitarismo pragmático que nada cria, a não ser fumaça. Ou que corta um pedaço do pé, para que caiba no sapato da teoria acadêmica atual...


Mas, diz Schelling, a pintura enobrece, modela as almas ou pelo menos indica o poder da alma que nela existe. Ao criar sua obra, o artista leva ao público observador uma possibilidade de mergulho na unidade do mundo, que eleva e dignifica. Mas que também lhe mostra seu potencial e capacidade de criador de seu próprio mundo. Também podemos lembrar do que pensava seu contemporâneo, o filósofo Hegel, que considerava a obra de arte como o meio privilegiado “através do qual o espírito humano se realiza”.


Ao final do seu discurso, Schelling faz menção a alguns dos grandes mestres do passado:


Rafael: Retrato de Agnolo Doni, 1505-06
- Michelangelo, “aquele espírito gigante”, atraído “pelos fundamentos mais recônditos da forma orgânica e, em especial, da figura humana, ele não evita o assustador, senão que o procura intencionalmente, despertando-o de seu repouso nas obscuras oficinas da natureza”;


- Leonardo da Vinci e Correggio apaziguam a violência inicial e “o espírito da natureza transfigura-se em alma” (entenda-se “espírito da natureza como a vida das coisas”). “A expressão geral dessa alma sensível é o claro-escuro (...) pois aquilo que o pintor põe no lugar da matéria é o escuro; sendo esse o estofo no qual ele deve afixar a fugidia aparência da luz e da alma”;


- Rafael “toma posse do sereno Olimpo e, consigo, conduz-nos da Terra à assembleia dos deuses”. “O florescer da vida perfeitamente formada, o perfume da fantasia e o tempero do espírito exalam, juntos, de suas obras. Ele já não é pintor, mas sim filósofo, sendo, a um só tempo, poeta.”;


Abaixo, destaco algumas questões colocadas por Schelling naquele 12 de outubro de 1807 e que até hoje rondam as cabeças de muitos artistas:


- “Como ainda seria possível contemplarmos essas obras dos antigos mestres, de Giotto ao professor de Rafael, movidos por uma espécie de devoção, inclusive por uma certa predileção, se a fidelidade de seus esforços e a grande seriedade de sua serena e espontânea limitação não nos impusesse respeito e admiração?”;


- “(...) temos de recriar a arte seguindo o mesmo trilho que eles seguiram, mas com nossa própria força, para nos igualarmos a eles.”;


- “Tudo o que cresceu a partir de inícios árduos e pequenos, mas terminou por adquirir vasto poder e altura, tornou-se grande por intermédio do entusiasmo. Isso vale tanto para impérios e Estados quanto para as artes e ciências. Não é porém a força do indivíduo que leva isso a efeito; tal tarefa cabe apenas ao espírito, o qual se espraia pelo todo.”;


- Ao artista, ninguém “pode ajudá-lo, já que ele mesmo deve ajudar-se; tampouco pode ser gratificado com algo que esteja fora de si, pois tudo aquilo que viesse a produzir sem vontade própria tornar-se-ia, de imediato, nulo; justamente por isso ninguém pode comandá-lo ou prescrever-lhe o caminho que deve peregrinar. Se é lamentável que tenha de lutar contra sua época, é tanto mais desprezível se com ela for indulgente.”


- “Apenas uma mudança operada nas próprias ideias é, pois, capaz de erguer a arte de seu esgotamento; somente um novo saber e uma nova crença estariam aptos a incitá-la ao trabalho por meio do qual ela revela, numa vida rejuvenescida, uma opulência semelhante àquela do passado. Com efeito, uma arte exatamente igual, em todas as suas determinações, à arte dos séculos precedentes jamais retornará; pois a natureza nunca se repete. Não haverá um Rafael como aquele de outrora, mas um outro a quem, de maneira particularmente similar, será facultado atingir o vértice da arte. Desde que se atenda àquelas condições básicas, a arte revitalizada mostrará o objetivo de sua determinação, tal como mostrara, em suas primeiras obras, a arte que a antecedeu”.
Rembrandt: Titus, óleo sobre tela, 1655