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sexta-feira, 29 de maio de 2015

Só em Sevilha

Vista de parte da cidade de Sevilha, com o rio Guadalquivir
Minha última noite em Sevilla, após descansar da visita e das emoções do dia, foi passear pelas ruelinhas do casco antiguo, como se fala por aqui. E ver a noite chegar, trazendo aquela meia lua que aparece de lado contrário no meu Brasil, espelhada.

Sevilla nunca mais sairá do meu coração! Foram cinco dias muito intensos aqui e a viagem poderia terminar hoje, 27 de maio, porque já encontrei a resposta que vim procurar nesta viagem. E Sevilla me deu-a! Agora preciso trabalhar! Pintar!

Caminhei até cansar pelo labirinto das ruas estreitas e belas. Passei de novo pela Calle de la Góngora, onde se diz que nasceu e cresceu Velázquez, pra agradecer e me despedir. A noite começava a descer sobre a cidade, e as pessoas jantavam nos restaurantes pequenos em cantos de pequenas praças. De repente, um som me chamou a atenção, uma voz feminina cantando uma música que eu conhecia. Andei naquela direção e vi um casal jovem cantando... samba! Samba! "Tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor, se hoje pra você eu sou espinho, espinho não machuca a flor..." Parei, sorrindo, ouvindo, cantando junto. Quando terminaram, me aproximei e perguntei de onde eles eram, porque não eram brasileiros! Eram italianos, viveram na Bahia, adoram samba e agora cantam samba pelo mundo! Depositei dois euros na caixinha deles e segui meu percurso.

Vista da torre Giralda de dentro do
pátio do Alcazar
Sentei-me um pouco no parque do bairro Santa Cruz, o Jardim de Murillo (em homenagem a Sebastian Murillo, um dos pintores locais). Minha alma não cabia dentro do meu corpo. Uma felicidade imensa tinha tomado conta de mim e o samba foi só um pequeño regalo da vida. As coisas já vinham se delineando quando eu fui ao Museu do Prado, semana passada, me sentindo doente, corpo moído, amigdalite se instalando. Mas tinha parado diante de algumas pinturas que me trouxeram novas informações. Incrível como a cada vez que vamos a estes grandes museus e vemos estas grandes obras, um olhar novo surge! Por isso não posso deixar de viajar! Cada vez a gente se aprofunda mais!

Eu tinha visto lá um certo tratamento para as áreas de sombra com valor intenso, alguns até bem saturados. Nada de terras, opacidades. Apenas tratamento com os valores das cores, variação das temperaturas, etc. Bom, isto eu já sabia, mas as variações possíveis destes conceitos são infinitas! No museu Sorolla de novo me impressionou sua luz, como já falei.

Mas vir para Sevilla, ver esta luz que brilha aqui...! Posso arriscar em dizer que há muita semelhança de luminosidade entre a Andaluzia e o Brasil! O sol brilha! No verão, aqui faz 40 graus! As cores estouram nas fotos! As casas, as ruas, as pessoas, o rio Guadalquivir, os barcos... Tudo em valor alto!

Velázquez! Velázquez!... Sorolla! Sorolla!...

Mas eles são tão diferentes! Mas eles são tão iguais!

Depois que voltar a Madrid, neste sábado, volto ao Museu do Prado para rever o que vi e terminar de entender o que comecei. Ficarei lá o tempo que precisar para registrar o que for possível agora.

Como dormir depois deste dia? Quase não dormi! As idéias estavam dançando dentro do meu cérebro. E ainda tinha que acordar às cinco para pegar o trem às 6:40 na estação, em direção a Granada. Em direção à Alhambra de Granada.

Luciano, um amigo do Brasil, tinha me lembrado que em Sevilla viveu mais de dez anos meu conterrâneo, poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto. João Cabral escreveu dois livros de poesia sobre Sevilla. Um verso de uma delas resume tudo o que passei aqui:

"Só em Sevilha o corpo está
com todos os sentidos em riste,
sentidos que nem se sabia,
antes de andá-la, que existisse."



























sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Vanitas: a vida é passageira e o tempo urge

Vanitas, de Jacob de Gheyn, 1603

“Nesta cova em que estás, com palmos medida
é a conta menor que tiraste em vida.
É de bom tamanho, nem largo e nem fundo
é a parte que te cabe deste latifúndio”.
(Chico Buarque)





O tema da morte, representada por uma caveira, surgiu muito cedo na arte europeia da história mais recente, por volta do século XIII. Conhecida como VANITAS, era uma categoria especial de arte que sugeria que a existência terrestre é vazia, vã, cheia de sofrimento e que a vida humana não era tão importante, no fim das contas.

Este tema foi bastante popular na época da arte barroca, especialmente na Holanda. Diversos artistas, entre eles Holbein, trabalharam com este tema.

Essa denominação tem como origem o livro bíblico do Eclesiastes, do Velho Testamento, que diz em um certo trecho: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”. Traduzido como Vanitas, significa literalmente “sopro rápido, efêmero” e a mensagem que traz é a de que devemos meditar sobre a natureza passageira e vã do mundo e da vida humana, a inutilidade dos prazeres diante da morte que nos espia de perto.

 Vanitas, de Pieter van Steenwyck, séc. XVII
Esse tipo de pintura foi essencial para o surgimento da natureza-morta como gênero. Desde a época clássica de Grécia e Roma, por mais de mil anos o tema da representação pictórica de elementos como frutas, verduras, utensílios variados, etc, tinham sumido da pintura. A arte do período bizantino não utilizava esse tema. Na Idade Média, esses objetos só figuravam na pintura (em um grupo de pessoas, ou alguma outra situação) porque tinham algum sentido. No caso de Vanitas, todos os objetos ali representados são símbolos da fragilidade humana, da brevidade da vida, do tempo que passa e da morte. Em meio a todos os objetos que representavam essas ideias, a caveira era a mais recorrente. Em qualquer situação, ela poderia estar presente: no saber, na ciência, na riqueza, nos prazeres, na beleza...

Vanitas denuncia a relatividade do conhecimento e a vaidade humana diante do tempo que foge, e da morte que se aproxima.

A primeira pintura da história da arte ocidental dentro do tema seria a do pintor Jacob de Gheyn, de 1603. No período do Renascimento, que enfatizava o humanismo, esse tema foi bastante utilizado nas artes em geral. Tinha um papel moralizante e utilizado pelos cristãos sob formas e intenções diversas ao norte e ao sul da Europa, tanto por católicos como por protestantes. 

Pintura de
Charles Allan Gilbert, 1892
Mesmo que ele tenha antecipado a natureza-morta, ela só aparece como gênero independente no século XVII. É bom lembrar que Caravaggio (1571-1610) foi um dos primeiros a trazer o tema da natureza-morta para a pintura de seu tempo, pelo que foi criticado por seus contemporâneos que o acusavam de pintar temas “parados”, segundo Roberto Longhi (leia mais aqui). Também pintou caveiras em alguns de seus quadros, como em "São jerônimo escrevendo".

Em seu livro Arte e Beleza na Estética Medieval, Umberto Eco diz que na Idade Média havia um esforço dos cristãos em deslocar a contemplação da natureza para a contemplação da beleza da alma, citando o exemplo dos monges cistercienses (São Bernardo era um deles) que contrapunham a beleza interior à exterior, uma celeste e a outra terrena. Segundo essa filosofia, a beleza terrena é fugaz, como a flor que dura uma primavera e o corpo humano que envelhece.

Foi o período, conhecido inclusive na literatura, do tema do UBI SUNT, tema maior da Idade Média, que se perguntava: onde estão os grandes do tempo passado, as cidades belas do passado, as riquezas dos orgulhosos, as obras dos poderosos? Tudo acaba.

Ilustração de
Johann Caspar Lavaters,
1775
 
Na França, o poeta-bandido François-Villon escreveu o poema "Balada das damas dos tempos de outrora" ("Ballade des dames du temps jadis"), onde, ao final de cada estrofe, ele perguntava repetidamente: "mais où sont les neiges d'antan?" (onde estão as neves de antanho?) 

Dentro dessa forma de pensar, o caminho era buscar a beleza interior que não morre, porque a alma seria eterna.

Muito se pintou e se escreveu sobre o tema da morte, na arte ocidental, em todos os países. Mas para não ir muito longe, recordemos um poema do brasileiro João Cabral de Melo Neto: "Morte e Vida Severina".

Podemos dizer que este poema é um tema de Vanitas adaptado à situação do nordestino que vive pouco, pois morre de pobreza ou na luta pela terra. Abaixo um trecho do poema, que depois foi adaptado para uma canção por Chico Buarque de Holanda, "Funeral de um Lavrador", citada no início deste post:

Morte e Vida Severina:
Desenho para o filme de animação feito pelo cartunista
Miguel Falcão, que adaptou a obra de João Cabral

“ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO   
UM DEFUNTO NUMA REDE,   
AOS GRITOS DE "Ó IRMÃOS DAS ALMAS!   
IRMÃOS DAS ALMAS! NÃO FUI EU   
QUEM MATEI NÃO!"   

   — A quem estais carregando,   
irmãos das almas,   
embrulhado nessa rede?   
dizei que eu saiba.   
— A um defunto de nada,   
irmão das almas,   
que há muitas horas viaja   
à sua morada.   
— E sabeis quem era ele,   
irmãos das almas,   
sabeis como ele se chama   
ou se chamava?   
— Severino Lavrador,   
irmão das almas,   
Severino Lavrador,   
mas já não lavra.   
— E de onde que o estais trazendo,   
irmãos das almas,   
onde foi que começou   
vossa jornada?   
—  Onde a caatinga é mais seca,   
irmão das almas,   
onde uma terra que não dá   
nem planta brava.   
— E foi morrida essa morte,   
irmãos das almas,   
essa foi morte morrida   
ou foi matada?   
— Até que não foi morrida,   
irmão das almas,   
esta foi morte matada,   
numa emboscada.   
—  E o que guardava a emboscada,   
irmão das almas   
e com que foi que o mataram,   
com faca ou bala?   
— Este foi morto de bala,   
irmão das almas,   
mas garantido é de bala,   
mais longe vara.   
— E quem foi que o emboscou,   
irmãos das almas,   
quem contra ele soltou   
essa ave-bala?   
— Ali é difícil dizer,   
irmão das almas,   
sempre há uma bala voando   
desocupada.   
— E o que havia ele feito   
irmãos das almas,   
e o que havia ele feito   
contra a tal pássara?   
— Ter um hectares de terra,   
irmão das almas,   
de pedra e areia lavada   
que cultivava.   
— Mas que roças que ele tinha,   
irmãos das almas   
que podia ele plantar   
na pedra avara?   
— Nos magros lábios de areia,   
irmão das almas,   
os intervalos das pedras,   
plantava palha.   
— E era grande sua lavoura,   
irmãos das almas,   
lavoura de muitas covas,   
tão cobiçada?   
— Tinha somente dez quadras,   
irmão das almas,   
todas nos ombros da serra,   
nenhuma várzea.

(...)"

E abaixo a pintura de Candido Portinari, Os retirantes, grandiosa expressão do tema da morte:


Os retirantes, de Candido Portinari