quinta-feira, 3 de julho de 2014

Salvador Dalí não foi só artista

"Figuras tumbadas en la arena", 1926, Salvador Dali - exposta no CCBB-Rio
Está em exposição no Rio de Janeiro, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) 29 pinturas e mais 80 desenhos, gravuras, fotografias e documentos do artista espanhol Salvador Dalí. Esta é a maior mostra deste artista já feita no Brasil e traz trabalhos seus desde os anos 1920 até seus últimos trabalhos. A partir do próximo mês de setembro, a exposição virá para São Paulo e estará aberta ao público no Instituto Tomie Ohtake em Pinheiros.


Salvador Dali
Essas obras foram escolhidas entre as do período surrealista do pintor e a ideia dos organizadores é que o público possa ver sua evolução artística através das diferentes influências que ele foi recebendo, não só técnicas como ideológicas. Do período de formação como pintor estão as obras “Retrato del padre y casa Es Llander”, de 1920 e “Autorretrato cubista” de 1923. Da fase surrealista são “Monumento imperial a mujer-niña”, de 1929, “El sentimiento de velocidad”, de 1931, “Figura y drapeado en un paysage”, de 1935) e “Paysage pagano medio”, esta de 1937. Mas há também outras obras e desenhos, como as ilustrações para o livro “Dom Quixote de La Mancha”, de Miguel de Cervantes, e “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carrol.

Estas obras vieram para cá cedidas pela Fundação Gala-Salvador Dalí, de Figueras, pelo Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofía, de Madri, e o Museu Salvador Dalí, da Flórida.

É uma exposição importante num ano em que o Brasil promove a grande celebração mundial que é a Copa do Mundo. E assim como os altos números produzidos pela Copa, os valores envolvidos nesta mostra também são altíssimos. O Instituto Tomie Ohtake há 5 anos negocia esta exposição no Brasil, que tem um custo de 9 milhões de reais, captados via lei Rouanet. O valor das obras está estimado em 170 milhões de dólares. Pois Dalí é, além de tudo, uma moeda muito rentável. Nos últimos 20 anos suas exposições em diversos países chegaram a movimentar 60 milhões de euros, segundo o jornal O Globo.


"La perseverancia de la memoria", 1931
Com toda a máquina que move o sistema atual do mercado de arte, apenas a Fundação Gala-Salvador Dalí faturou em 2012 15 milhões de euros! Entre os anos de 2001 e 2012 mais de cinco milhões de pessoas no mundo viram exposições de Dalí.

Mas… nem todo mundo gosta da obra de Salvador Dalí. Nem todo mundo gosta da figura de Dalí. Mesmo assim, há que se reconhecer que sua obra surrealista o coloca no cânone da arte mundial e que diversos de seus quadros pertencem ao imaginário coletivo, como o famoso quadro “La perseverancia de la memoria” de 1931, com aqueles relógios derretendo ao sol.

Do meu universo pessoal faz parte um outro quadro, o “Cristo de San Juan de la Cruz”, que me fazia viajar para o céu atrás da escuridão que ocupava todo o fundo da cruz de onde pendia um Cristo crucificado que parecia habitar uma dimensão fora da nossa. Aquele entardecer misterioso, com suas montanhas longínquas, faziam sonhar minha mente de adolescente católica e de algum modo me ancorava em algum dos meandros da minha imaginação…


"Cristo de San Juan de la Cruz"
Eu gosto dessas pinturas surrealistas que parecem tocar o manto fluido de algum outro mundo. Porque eu gosto de saber dos mistérios da vida, dos espaços sombrios do mundo, das cavernas, das tempestades, do mar agitado, das profundezas das montanhas, do vento gelado, dos trovões ensurdecedores, dos relâmpagos, terremotos e furacões. As revoluções - naturais e humanas - me causam espanto e encanto. Os desastres naturais me fascinam. Adoro saber que uma onda gigantesca varreu tudo o que encontrou pela frente ou que um enorme tufão causou destruições gigantes. Os grandes e pequenos movimentos do mundo criam uma atitude de reverência em mim, porque isso também prova a eterna capacidade de criação e de recriação que possuímos, nós e o mundo. Quantas vezes precisei me recriar… E agora mais uma vez!

A contemplação da Natureza - a natureza verde e a Natureza do mundo - abre essas portas para o que de Real há por trás da superfície das coisas. O que é o Real? Aquele instante em que nos deparamos com uma perda muito grande em nossas vidas e que nos silencia? Como em momentos em que vejo minha vida ser movimentada por algum mecanismo que foge ao meu controle e eu olho para o mundo com um olhar como se tudo se agigantasse diante de mim e se magnificasse em formas estranhas que me assustam? Como quando eu sou forçada a enxergar a minha miudeza diante da vida e me conformar com meu pequeno tamanho diante das imensidões ao meu redor?


"Cesta de pães", 1926
Pronto, acabei de mergulhar mais uma vez no “Cristo de San Juan de la Cruz”! Voltemos.

Salvador Dalí é uma figura estranha, incômoda; inclusive seu aspecto físico, que sempre me pareceu o de um louco. Participar do Movimento Surrealista muito provavelmente o transformou nessa imagem mas ele mesmo fazia questão de ser mesmo esse ser esquisito.

O Surrealismo foi um movimento artístico surgido no começo do século XX, na França, e teve como um de mentores o poeta André Breton. O termo “surrealismo”, que seria traduzido como “algo acima da realidade”, foi cunhado por um outro poeta francês, Guillaume Apollinaire, em 1917. Ela apareceu pela primeira vez como subtítulo da peça de teatro “As tetas de Tiresias”, de Apollinaire.

Mas os artistas que abraçaram essa corrente estética se diziam seguidores de pensadores e artistas do passado, como o filósofo pré-socrático Heráclito e os escritores franceses Marquês de Sade e Charles Fourier. Na pintura, eles consideravam como um dos primeiros surrealistas o pintor holandês do século XV, Hieronymus Bosch, que pintou naquela época quadros como “Jardim das Delícias” e “O carro de feno”. Mas o ponto de estopim do Surrealismo no século XX foi o movimento dadaísta, que o antecedeu.

Salvador Dalí nasceu em 11 de maio de 1904, em Figuera, na Espanha. Quando tinha 12 anos, numa viagem a Cadaqués com os pais, conheceu a pintura de Ramon Pichot, um artista que viajava muito a Paris, porque na época esta cidade era o centro da arte no mundo. Pichot conheceu o talento do menino e orientou seu pai a lhe matricular numa escola de pintura. Dalí teve como primeiro mestre  Juan Nuñez.

Em 1922, Salvador Dalí se muda para Madrid e vai estudar na famosa Real Academia de Belas Artes de San Fernando, que conheci pessoalmente em 2013, em minha viagem a Madrid. Foi morar numa residência estudantil. Já nessa época, fazia pinturas de inspiração cubista, o que atraiu a atenção de dois artistas espanhois como Federico Garcia Lorca e Luiz Buñuel, o futuro diretor de cinema surrealista. A partir de 1924, Dalí também começou a fazer ilustrações para livros.


"Composicion surrealista de figura invisibles",
presente na mostra do CCBB-RJ
Em 1926 foi expulso da Real Academia por se negar a fazer os exames finais de seu curso de pintura. Teria dito que não havia naquela escola nenhum professor que pudesse avaliá-lo… Seu quadro “Cesta de pão” (acima), pintado para seu exame final na Real Academia, mostra como ele dominava a técnica da pintura acadêmica. Foi a Paris, onde conheceu Pablo Picasso. Dalí pintava, então, desde obras mais acadêmicas até aquelas onde se notava claramente a influência dos movimentos vanguardistas da época. Mas antes disso, ele havia estudado a obra de Zurbarán, Bronzino, Rafael, Vermeer, Velázquez…

Em 1929, colaborou na produção do filme “O cão andaluz” de seu amigo Luiz Buñuel, filme que já dava as primeiras mostras do imaginário surrealista. No mesmo ano conheceu sua futura esposa, Gala, uma imigrante russa que era 11 anos mais velha que ele. Se casaram em 1934 e viveram juntos toda a vida.

Salvador Dalí já pertencia então ao movimento dos Surrealistas que se reuniam no bairro parisiense de Montparnasse. A grande maioria dos artistas surrealistas dessa época já se declaravam de esquerda. O mundo de então fervilhava. A I Guerra Mundial havia matado milhões de seres humanos, a primeira guerra capitalista pelo domínio do mundo. Em 1917 na Rússia, os comunistas chegaram ao poder numa revolução soviética que mudaria a face do Leste Europeu, e influenciaria o mundo inteiro. Na Alemanha, o período entre guerras trazia muita fome, medo, desemprego. Os primeiros sinais do fascismo e do nazismo iam se gerando…


"La maxima velocidad de la madona de Rafael",
na mostra do CCBB-RJ
Mas… qual era a posição de Dalí, em meio a isso tudo? Ele não comungava com os ideais socialistas da maioria de seus amigos, como Pablo Picasso, André Breton e Luiz Buñuel, além de outros. Breton, por exemplo, o acusou de simpático às ideias nazistas. Dalí continuava se dizendo “apolítico” e defendendo que a arte deve ser “apolítica”. Num momento em que a maioria dos artistas e intelectuais europeus começavam a denunciar publicamente o regime nazi-fascista alemão, Dalí se negou a fazer isso. Este e outros motivos fizeram com que ele fosse expulso do movimento em 1934.

Mas Dalí começou a receber os louros de sua carreira. Um rico capitalista inglês, Edward James, investiu no artista comprando inúmeras de suas obras, emprestando-lhe dinheiro e o apresentando ao público londrino. Dalí começou a ficar muito atraído por dinheiro, e em 1939 seu ex-amigo André Breton lhe nomeou de “Avida Dollars”, criticando sua paixão por dinheiro.

Quando a II Guerra começou, Dalí e Gala se mudaram para os EUA, onde viveram durante oito anos. Ele retomou seu contato com a religião católica. Em 1949, mudou-se de vez para a Espanha, passando a viver na região da Catalunha. O fato de Dalí ter resolvido ir morar na Espanha em plena ditadura franquista, revoltou novamente seus ex-companheiros, assim como diversos setores progressistas europeus.


Salvador Dali
Diversos estudiosos espanhois, inclusive na atualidade, como é o caso de Antonio Martínez, expõem a público a relação de amizade que unia Salvador Dalí a um dos ditadores mais cruéis da Europa: Francisco Franco. Dalí foi um dos intelectuais espanhois que desde o começo apoiaram Franco na Guerra Civil. Quando de seu retorno à Espanha após a temporada nos EUA, Salvador Dalí não escondia sua admiração pela figura do general. Essa relação de amizade entre os dois culminou na entrega da Gran Cruz de Isabel la Católica, prêmio concedido pelo governo de Franco a Salvador Dalí. Em troca, em 1972 Dalí doou ao Estado espanhol, ainda sob o governo de Franco, uma grande parte de sua obra. Dalí chegou a qualificar publicamente a Franco como “un santo, un místico, un ser extraordinário”...

Que diríamos disso tudo? Jogamos fora a obra com o artista? Talvez não. Mas não deixa de ser incômodo saber que enquanto milhões de espanhois viviam na miséria e sob um regime de medo imenso, sem liberdade absolutamente nenhuma, e quando milhares de pessoas eram presas e assassinadas pelo governo fascista, um artista fazia olhos cegos para tudo isto e não vacilava em se deixar fotografar ao lado de um dos maiores ditadores do século XX?

Há como separar o homem do artista? Salvador Dalí não foi só artista. Se alinhou nas posições contrárias às da maioria dos intelectuais e artistas de seu tempo. Viu o massacre do seu povo, enquanto aplaudia o autor dos massacres. Surrealismo? Excentrismo? Irresponsabilidade de um espírito egóico?

Talvez esse mesmo espírito ainda flane nos tempos atuais. Colocar o ego acima do coletivo pode ser bom para a auto-estima pessoal, mas pode levar o artista a lugares escabrosos...

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Anders Zorn, o pintor realista sueco



Autorretrato
Anders Leonard Zorn é um pintor de origem sueca, nascido em 18 de fevereiro de 1860. 
Sua pintura a óleo e suas aquarelas são compostas de paisagens sobre a vida no campo, de retratos e nus, e também mostram sua forma especial de representar a água. Ele é, junto com Carl Larsson, o pintor mais popular da Suécia.

Anders Zorn passou sua infância numa fazenda perto da cidade de Mora. Sua família tinha uma vida simples no campo, e isto marcou sua vida e sua obra, como mostram as numerosas obras que descrevem a vida camponesa na Suécia. Ele também fez vários quadros de sua mãe e de sua avó, a quem era muito apegado. Seu pai, Leonhard Zorn, um cervejeiro alemão, conheceu sua mãe durante uma viagem dele à Uppsala. Ela engravidou, mas Anders Zorn jamais viu seu pai. Foi criado pela mãe e avós maternos.

Em 1872, quando seu pai morreu, ele herdou uma pensão em dinheiro que lhe permitiu ir estudar na Academia Real de Belas Artes de Estocolmo. Inicialmente ele aprendeu a técnica da escultura em madeira. Imediatamente ele se interessou pela aquarela e muito cedo ele se tornou um prodígio de aquarelista em meio aos que frequentavam a academia. A sua tela “De luto” foi selecionada, entre outras, para a apresentação anual da Academia.
De luto, Anders Zorn, aquarela, 1880

Insatisfeito com o conservadorismo da Academia de Belas Artes, Anders Zorn a abandona em 1885 e sai em viagem pela Espanha, Paris e Londres. Nesses lugares, ele realiza diversos retratos em aquarela, nas quais chama a atenção para seu domínio técnico.

Casa-se em 1885, na Suécia, com Emma Lamm e viajam juntos para Constantinopla e Alger. Ele sempre observa a água dos mares por onde passava. Depois eles retornam à Suécia, e Zorn constroi uma casa na cidade de Mora, onde nasceu. 

Em 1889, ele foi a Paris participar da Exposição Universal daquele ano, mesmo período em que o Impressionismo começa a ser reconhecido como uma grande forma de pintura. Sua obra passa a ser bastante apreciada na França, para onde ele volta regularmente. Em 1906 ele expõe em Paris 166 quadros, e teve uma grande aceitação por parte de críticos e do público.

Nos últimos anos de sua vida, ele se dedica novamente à escultura e à gravura. Anders Zorn faleceu em Estocolmo, no dia 22 de agosto de 1920.

......................................

Algumas de suas pinturas:






Gravura de Anders Zorn




quarta-feira, 11 de junho de 2014

Vera França modelo vivo

Vera França posando para retrato no ateliê de Maurício Takiguthi
Há mais de 50 anos Vera França, que completa 73 anos de idade este ano, posa como modelo vivo para artistas pintores, escultores, desenhistas. O Ateliê Contraponto está recebendo o “Projeto Vera França Modelo Vivo” idealizado por Jair Diniz, que inclui quatro sessões com a modelo posando, seguida de exposição de trabalhos inspirados em dona Vera. Dia 30 de julho será aberta a exposição com uma homenagem festiva dos artistas paulistanos à sua modelo mais antiga.
A modelo Vera França
Vera França é pernambucana de nascimento, nascida em Afogados da Ingazeira. Um de seus primeiros empregos foi em um parque de diversões em Salvador, Bahia, como bailarina de can-can. Tinha uns 19 anos, diz ela. Um belo dia foi convidada a posar como modelo em uma escola de Belas Artes na capital baiana. Assim começou uma carreira que já dura cerca de 52 anos.
De Salvador, Vera França veio para São Paulo onde, na época, havia uma carência grande de pessoas que posassem para os artistas. Chegou aqui em abril de 1966 e foi morar no quarto de empregada do apartamento do artista Flávio de Carvalho. Ajudava na casa e posava para ele, que na época morava na avenida Ipiranga. Através dele, foi apresentada a diversos outros artistas e com isso sua carreira como modelo vivo foi crescendo. Foi com esta profissão que Vera criou suas duas filhas e hoje ajuda a criar seus netos.
As sessões com modelo vivo são fundamentais para qualquer pessoa que desenha, pinta, grava, esculpe. Artistas plásticos, designers, ilustradores, sketchers, gravadores e escultores sabem o quanto é importante o estudo da anatomia do corpo humano, o estudo dos movimentos, do gestual, das direções, das proporções, para sua evolução individual nas artes visuais. São momentos ricos de aprendizado e por isso é tão importante que existam modelos como Vera França.
Auguste Rodin trabalhando em seu ateliê
Por isso, tantos artistas ao longo da história devem tanto a essas pessoas que se dispõem a posar para eles! Podemos afirmar que grande parte das obras de arte que conhecemos deve-se a estas inúmeras pessoas que se postaram quietos – ou em movimento – à frente de cavaletes e mesas de trabalho dos artistas.
Lucien Freud, por exemplo, quase nunca pintava sem um modelo vivo à sua frente, assim como Auguste Rodin, o escultor. Caravaggio, para a grande maioria de seus quadros, teve modelos, entre seus conhecidos, posando para ele. John Singer Sargent, Joaquin Sorolla, Diego Velázquez, Degas, Gustave Courbet – a lista é imensa! – construíram grandes obras de arte a partir do estudo do corpo de modelos que posaram para eles. Podemos afirmar que nenhum grande artista pode abdicar da prática do desenho ou pintura com modelo vivo.
Desenhar, esculpir ou pintar uma pessoa posando amplia altamente o repertório pessoal do artista com traços, com massas, com valores, com tonalidades, com espaços, com proporções, com gestos, com expressão.
Por isso é tão importante essa homenagem a Vera França, que já possou para inúmeros artistas, ateliês, faculdades de arte. Ela já possou na Pinacoteca, no Centro Cultural, no Sesc. Desde 1966 vem ajudando artistas em seu trabalho de criação e em seus estudos.
No Ateliê Contraponto serão feitas quatro sessões de modelo vivo, com Vera França posando. Em seguida, no dia 30 de julho, haverá a abertura da exposição de trabalhos produzidos a partir dessas poses. Os artistas também farão uma homenagem a esta senhora de 72 anos que é parte viva do trabalho artístico com modelos vivos produzido em São Paulo há mais de 50 anos.
--------------------------------------------------
A programação no Ateliê Contraponto é esta:

- hoje, dia 11 primeira sessão de modelo vivo com dona Vera
- dia 25 de junho, segunda sessão
- 19 e 26 de julho - sábados - sessões de modelo vivo
- dia 30 de junho - abertura da exposição de trabalhos com o tema "Vera França" e homenagem festiva à modelo.

Para participar desta homenagem, basta se inscrever pelo e-mail contato@ateliecontraponto.com.br

Cena do filme "L'artiste et sont modèle", de Fernando Trueba, produção França e Espanha, 2013

segunda-feira, 2 de junho de 2014

O resgate dos valores humanos

Maurício Takiguthi expôs na Galeria Contraponto
Maurício Takiguthi inaugurou o Ateliê e Galeria Contraponto em São Paulo, em março passado, com uma exposição de seus trabalhos de pintura mais recentes. Extremamente dedicado a seu ofício, Takiguthi impressiona não só pela qualidade de sua obra, mas também pela profundidade de seu pensamento. Conversar com ele é um exercício que sempre desafia os mais desatentos a um esforço de concentração um pouco maior do que se precisa para desencadear um diálogo comum. Porque ele “pensa” seu trabalho.

Maurício Takiguthi
Mais uma vez entrevistei esse pintor que tem uma escola aqui em São Paulo, o Ateliê de Arte Realista. Há dez anos atrás, Maurício Takiguthi estava quase sozinho em sua teimosia de ensinar as técnicas da arte figurativa. Dez anos depois já podemos contar com pelo menos meia dúzia de ateliês figurativos em São Paulo, com dezenas de praticantes, entre estudantes e artistas. O mais recentes destes ateliês que por aqui surgiram é o Ateliê Contraponto, do qual faço parte com mais três colegas.

Mas voltemos à nossa conversa com Takiguthi, que tanto insiste no resgate do conhecimento e da tradição, na busca do auto-aperfeiçoamento do artista como um caminho solitário mas comprometido com o que há de mais profundo no conhecimento do próprio ofício. Tudo isto, diz ele, para resgatar valores mais humanistas.

Maurício diz que desde que começou sua formação e seu trabalho como pintor, há uns 28 anos, ainda se mantém basicamente como a mesma pessoa que se coloca diante do mundo como aprendiz: vivendo “cheio de dúvidas, questões, e instigado pela curiosidade de querer entender o que os mestres viam”. Mas acrescenta que não há como medir a plausibilidade deste tipo de desejo, desta ambição. Nunca podemos saber aonde nossos desejos nos levam, mas serve como um motor que nos move e que move o pintor Maurício Takiguthi até hoje “depois de 28 anos de estrada”.

“Continuo insistindo em obter respostas, acrescenta ele. Porque continuo frustrado boa parte do tempo por não tê-las. Porque continuo ‘apanhando’ e, mais importante, porque continuo sentindo tesão pelo realismo que me instiga na esperança de um dia ter acesso”.

Ter acesso ao que?

Aqui podemos buscar apoio no pensamento do filósofo alemão Friedrich Wilhelm von Schelling (1775-1854), que em seu texto “A relação das artes plásticas com a natureza” mostra como o olhar do artista, penetrando no Real, enxerga o mundo através da sua essência, que é acessível ao nosso espírito (mente). E Schelling adverte que aquele que apenas enxerga do mundo a sua casca, a sua superfície, a ele “jamais será facultado atingir o processo profundo”. Enquanto que para o artista que tem consciência de si e de seu papel, sabe o caminho para desvendar as aparências que muitas vezes a realidade toma. Diz Schelling: “Antes de mais nada, a natureza vem ao nosso encontro de modo hermético e sob uma forma mais ou menos rígida. Assemelha-se à beleza sóbria e serena que não chama a atenção por meio de sinais gritantes e nem atrai o olhar vulgar. Como podemos fundir, digamos, do ponto de vista espiritual, aquela forma aparentemente rígida a fim de que a força mais clamorosa das coisas flua juntamente com a força de nosso espírito, transformando-as num só molde? Temos que ultrapassar a forma, para, aí então, readquiri-la como algo inteligível, vívido e verdadeiramente sentido. (grifo meu)

"Ensimesmado I", Takiguthi,
óleo sobre tela
Todos os grandes artistas, desde os da pintura, passando pela literatura, pelo teatro e pela música alcançaram o cerne, a essência do mundo, criando obras seminais que se sobrepõem à nossa concepção de tempo; obras que emocionam pessoas que estão separadas de seus criadores por séculos de distância, que permanecem encantando, gerando pensamentos, inspirando.

E intrigando. Qual é o processo profundo, qual é o caminho que nos leva a este mergulho do qual retornamos como criadores?

Não é uma resposta fácil. Mas um caminho possível é o exercício do ofício ao qual cada um se propôs e é isso o que diariamente Takiguthi ensina a seus alunos. Por sua origem japonesa, ele se reporta muitas vezes aos ensinamentos zen-budistas que dizem que “a prática é que é expressiva”.

“Desse ponto de vista, diz ele, somos algo a partir do que fazemos e não do que dizemos ou acreditamos”. Por isso fica difícil criar qualquer adjetivo que qualifique o sujeito, pois no momento em que uma pessoa se dá uma denominação, por exemplo se chama a si próprio de “artista”, isso cria, segundo Maurício, uma predisposição a que “as palavras comecem a substituir ilusoriamente o que fazemos, obscurecendo a realidade dos fatos e a visão sobre nós mesmos”.

"Ensimesmado V", Takiguthi,
óleo sobre tela
Ou seja: a ideia é fazer ao contrário do que se faz atualmente, onde o poder do discurso é imenso, mas a prática é subestimada. Nas artes contemporâneas, antes da obra há uma retórica altamente hermética sobre ela, o discurso substituindo a coisa concreta. Se sobrepõe o mundo do idealismo mental contra o contato direto com a realidade. O ofício do artista acontecendo prioritariamente no mundo da mente, gerando nebulosidades que, como bem diz o poeta Affonso Romano de Sant’Anna, fazem com que as artes visuais atuais possam melhor ser interpretadas do ponto de vista da psicanálise.

Mas a prática concreta é mais enfática do que qualquer discurso. “Faz sentido, acrescenta Maurício, pois “se somos honestos é porque praticamos atos honestos e não simplesmente porque dizemos aos outros ou temos essa ideia sobre nós mesmos... E em geral a pessoa que se preocupa demais em se autodefinir ou falar de suas qualidades pessoais é que provavelmente está mais ocupada em convencer-se ou convencer ao outro – pela retórica, e não por atos concretos. Pode servir como marketing pessoal, mas não como autoaperfeiçoamento”.

Por isso a “leitura da ação” diz mais do que a definição verbal.

Neste ponto, pergunto a Takiguthi a respeito da temática de sua pintura atual. As figuras que ele pinta são fortes, parecem habitar um lugar entre a vida e a morte, com gestos dramáticos, olhares densos; figuras que parecem nos apontar nossos próprios medos, nos defrontando incomodamente. Ao mesmo tempo, os traços são fluidos, gestuais, gerando movimentos em ondas que parecem todo o tempo nos levar para dentro dos abismos dessas figuras.

Ateliê e Galeria Contraponto
“Diferentemente do que se associa a um realista, eu procuro não ficar na mera imitação da natureza ou atingir qualidades ‘fotográficas’. Não sou adepto da ideia de que o melhor propósito de uma pintura é de parecer com uma fotografia. Quero registrar na tela a minha percepção interna da natureza humana ou, mais relevante para mim, conseguir visualizar minha realidade interior. Muito disso se passa pelo diálogo silencioso com o que faço: a partir da imersão no processo que nem sempre é fácil, dadas as grandes distrações da vida numa metrópole, procuro me debruçar sobre questões intrínsecas da pintura e do desenho.”

Os fundamentos conceituais, os instrumentos técnicos, a prática e a estrutura mental se fundem e combinam num todo complexo e se tornam elementos com os quais ele trabalha para recriar o que ele chama de “etéreo”, que evidencie um certo estado de espírito, ou sensação. “Talvez este seja o resumo do tema da minha vida como pintor: ter a ambição impossível de traduzir essa qualidade invisível por meio de asserções visuais no campo do indizível”.

Ou seja, Takiguthi parece buscar expressar aquele lugar onde o reino das palavras não existe. Resta a sensação, a contemplação, a absorção da alma do artista em contato com a alma do observador, criando um uníssono impossível de traduzir em palavras, porque faz parte daquele espaço onde navega toda a subjetividade humana. Este também é o papel da arte: produzir essa conexão entre o Real e o artista que traduz pictoricamente o que vivenciou, alcançando um timbre possível de ser compreendido por outro ser humano.

- Que relação há entre o que você pinta hoje e o tempo contemporâneo, Maurício? Pergunto a ele.

“Se está falando do tempo contemporâneo enquanto relação entre a postura tradicional e o status quo com sua lógica pós-moderna, que tem a arte como entretenimento, barulho, escândalo ou transgressão... nenhuma!” diz ele. Maurício Takiguthi insiste em se voltar para a arte tradicional que para ele é sinônimo de conhecimento, do caminho solitário do mestre em busca da construção, do sentido dos valores permanentes do ser humano, do resgate da contemplação da arte, da observação seletiva baseada em critérios. Daí sua crítica de que hoje não há espaço para isso, em especial aqui no Brasil.

"Letárgico I", Takiguthi,
óleo sobre tela
Takiguthi explica que o tempo contemporâneo impõe um fluxo interminável de informações, de imediatismo pragmático que força as pessoas a produzir “num ritmo ansioso e alucinado” do qual é difícil escapar. “O que pode ser feito é minimizar seus efeitos pela consciência dessa forte influência quase arrasadora, dada a impossibilidade de o indivíduo simplesmente descolar-se social e culturalmente dessas imposições”, acrescenta.

Mas diz também que a pintura pode desempenhar esse papel que ele chama de “campo de respiro” em outro tipo de ar. “Não o ar viciado e barulhento que exige aceitação acéfala das regras, mas um ar onde o tempo transcorre de maneira diferente, mais desacelerada. Onde o ar, ao invés de ser estritamente racional, calculista, mecânico, previsível, vinculado fortemente às demandas da utilidade, pode assumir uma dimensão intuitiva, voltada para a introspecção e contemplação das coisas visíveis e invisíveis”.

Ele afirma que essa mudança de perspectiva na relação com o tempo e “o deslocamento para estados mentais mais sensoriais”, apazigua o espírito, amplia a sensibilidade. É uma proposta a uma resistência ao modus operandi exigido pela sociedade atual, que exige do ser humano coisas além da sua capacidade, física e mental. Me pergunto se não seria por isso que hoje temos uma sociedade onde se usa tanto remédio para depressão e se faz uso de tantos narcóticos? Esse deslocamento da prioridade aos valores humanos em prol da produção e do consumo não está criando uma sociedade doente, com indivíduos massacrados diariamente em busca da sobrevivência? O esvaziamento de símbolos universais, o corte radical com a tradição histórica perpetrado inclusive por artistas ditos modernos e contemporâneos não estaria nos distanciando cada vez mais de nós mesmos, dos nossos sonhos, da nossa capacidade de criadores do mundo?

Talvez isso dependa da busca novamente do que é essencial, do que não é óbvio atualmente, “das qualidades perenes, universais, que demandam tempo e maturidade para poder visualizar e compreender”, complementa Maurício.

"O louco", Takiguthi,
óleo sobre tela
Neste ponto da conversa, relembro um diálogo que aconteceu entre nós e outros amigos, num sábado à noite no Ateliê Contraponto, quando Maurício disse que está abdicando da possibilidade de ser chamado de “artista”. Aquilo me interessou e logo quis saber o motivo. Takiguthi respondeu:

- “Já faz um tempo que venho constatando a existência de um patrulhamento ideológico, forte mas implícito, em torno das exigências para que uma pessoa seja considerada um artista: que deva estar “antenada” na busca pela próxima tendência (como na moda) - perdendo, assim, a conexão com sua busca interna; que deva ignorar as habilidades do seu campo de atuação (que significa conhecimento prático e técnico); que faça prevalecer a habilidade retórica de convencer o outro de que o que faz é arte, em detrimento do conhecimento em profundidade que lhe permita pensar o que faz ou fazer o que pensa; entre outras. Este patrulhamento serve fundamentalmente para tornar oficial o monopólio da verdade e manter a posse da “aura” artística, tão importante numa sociedade sufocadamente racional”.

Hoje qualquer um pode, ou quer, se dizer “artista”. Mas raríssimos são aqueles que preferem praticar seu ofício, no suor do dia a dia sobre a mesa de desenho, frente ao cavalete, questionando, buscando aprender cada vez mais, se aperfeiçoando como o Demiurgo de Platão, o Grande Artesão, cujo próprio significado está naquele que trabalha, no artífice, no operário manual. Demiurgo, palavra grega que vem de duas outras: demios, significando “o povo” e ourgos, que significa “trabalhador”, aquele que trabalha para que outros aproveitem do produto do seu trabalho em muitas formas.

A atriz Fernanda Montenegro
Fernanda Montenegro, a conhecida atriz brasileira, numa entrevista recente a um canal de televisão ilustrou bem o que o Maurício fala sobre a prática do “ofício”. Disse ela que as pessoas “confundem teatro com liberdades, até com licenciosidades, com realização de sua opção sexual, com glórias, paetês, retrato no jornal, riqueza…” Hoje em dia a deformação já surge, diz ela, nas famosas “celebridades”. E completa: “Todo mundo vira artista hoje em dia, todo mundo pode ser artista… Mas ator não é todo mundo que pode ser!” Ela sugere aos que desejam a glória de ser ator, que desistam, que vão fazer outra coisa da vida. A não ser que se “ficar em tal desassossego que não tem nem como dormir se ficar sem aquilo” então deve tentar. Mas se não houver esse distanciamento em relação ao deslumbramento que hoje a palavra “artista” causa em qualquer um, ela simplesmente solta: “Não é do ramo!”

Pois os que são do “ramo” conhecem a delícia e a dor da prática diária, silenciosa, profunda do ofício. Os que são do “ramo” não projetam nada no futuro, se dispõem unicamente ao aperfeiçoamento de si mesmos como artesãos, seja no teatro, na literatura, na música… e na pintura.

Mas o problema é que o artista de hoje aceita, acrescenta Takiguthi. “Apesar de aparentemente pregar a transgressão como estilo de vida, está mais desesperado em se enquadrar e ser cooptado pelo sistema. Sob a lógica atual, faz de tudo para chocar/entreter o espectador para poder existir artisticamente. Cultua o ego ao tentar virar celebridade, abre mão do comprometimento sincero com a obra, para transformá-la numa extensão do próprio umbigo e vitrine de si mesmo. Defende verborragicamente a todo custo a auto-imagem que cria de si como artista/celebridade, por uma via afetada, ególatra e arrogante. Caça desesperada e exclusivamente a fama, a reputação e os interesses mercadológicos. O seu foco concentra-se nos aspectos extrínsecos à sua prática e, certamente, quer ser maior do que faz”.

"Genealogia", Takiguthi,
óleo sobre tela
Foi num dia em que refletia sobre isso que Maurício Takiguthi se viu “esgotado” com esse estado de coisas. Ao ver como a palavra “Arte” se encontra atualmente tão contaminada - assim como outras palavras - é que ele recorreu a uma frase de uma música de Raul Seixas e decretou para si mesmo: “Pára este mundo que eu quero descer!”

Com isto, ele disse que prefere simplesmente seguir outro caminho aonde possa se manter fiel ao ofício do pintor e desenhista realista. Isto como reação contra a busca do reconhecimento, da autorização “do outro” para o que faz, “autorização” dada hoje somente por instituições artísticas, legitimadores da arte como críticos, curadores e senhores do mercado de arte. Ele prefere exercer seu ofício solitário “com simplicidade, leveza, serenidade e liberdade, sem idealizações ou ideologias descartáveis”.

Essa busca, esse retorno à ideia de “ofício” para Maurício Takiguthi é a reafirmação do compromisso harmonioso e silencioso com o processo do trabalho. E complementa:

- “É materializar uma inversão radical nos valores: no lugar da “aura”, a realidade concreta do cotidiano; no lugar do glamour, o trabalho árduo; no lugar da retórica, a sinceridade e a sensibilidade para algo existente.  Enfim, é só isso que eu desejo ardentemente hoje em dia: quero respeitar meu ofício, reverenciar a prática, dedicar toda a atenção e energia aos seus elementos intrínsecos para compreender a sua essência, sob o rigor da excelência”.

Voltando-se para seu ofício, o artesão escuta, vê melhor o que faz e o que vê. Estabelece “uma interação sensível com um mundo complexo e infinito, onde pequenas revelações e insights cotidianos fazem muito sentido”, finaliza ele.

"Cárcere", Takiguthi,
óleo sobre tela

segunda-feira, 26 de maio de 2014

O ofício da Arte II

O violino de Ingres, autor desconhecido, século XIX

Em maio de 1989 a editora Parsifal Ediciones, da Espanha, publicou pela primeira vez em língua espanhola o livro “El mensaje de Igor Strawinsky”, escrito por Théodore Stravinsky, filho do compositor russo.

Este livro me veio às mãos num momento em que o tema do ofício diário do artista tem surgido em conversas com o pintor Maurício Takiguthi, um dos maiores defensores do exercício diário do trabalho do pintor, do desenhista. Concordo completamente com ele: muitos mestres, de todas as áreas das artes, já apontaram que o resultado de seu trabalho - sua obra de arte - deve-se a infindáveis estudos, dias e anos a fio. Uma obra de arte não surge do dia para a noite.

Assim também encontrei neste livro do pintor Thédore Stravinsky - que fala sobre seu pai, o músico - um exemplo do artista dedicado a seu trabalho.

“A arte postula a comunhão, e compartilhar com os outros
o gozo que o artista mesmo experimenta
é para ele uma necessidade imperiosa.” 
(Igor Stravinsky)

Retrato de Igor Stravinsky, 1958
Litografia feita por Theodore Stravinsky
“A música parece a Stravinsky antes de tudo como ‘um elemento de comunhão com o próximo e com o Ser’". Assim começa o texto de Théodore, que discorre um pouco mais sobre a necessária comunicação entre o artista e o seu público. Um compositor, diz ele, tem suas aspirações próprias, suas alegrias, seus sofrimentos, suas feridas. Um artista de verdade sente necessidade natural da prática do seu ofício. Como exemplo, uma frase do próprio Stravinsky:

Para mim, a composição é uma função diária à qual me sinto chamado a cumprir. Componho porque para isso sou feito e não poderia jamais me dispensar de fazê-lo.”

Igor refletia muito sobre a questão do “tempo”. Para ele a música “é o único campo em que o homem realiza o presente…” A música, diz ele, estabelece ordem nas coisas, “uma ordem entre o homem e o tempo”. E por isso, para ele o ato de compor era sinônimo de realizar essa ordem. Mas de um tipo de ordem que nada tem em comum com “nossas sensações correntes”, pois se trata de ir a fundo na essência das coisas para arrancar dela um contraponto que possa interromper a sequência das “coisas correntes” e nos levar a um estado de espírito onde o tempo é outro, de outra natureza.

Para mim, hoje esta questão do tempo é dos temas que mais têm me tocado e que está indissoluvelmente ligado ao tema do ofício. Vivemos alucinados, na correria do cotidiano, das mil coisas a fazer. Vivemos num tempo em que o passado não conta e o futuro não existe. Já vivemos - até bem pouco tempo atrás, uns 20 anos - pensando que o futuro ia ser bom, pois nossa tradição era fértil. Os movimentos pós-modernos neoliberais nos trouxeram a este estado em que parecemos viver sempre no presente, agarrados a ele como bote salva-vidas. Mas não nos trouxe a um mergulho no “eterno presente”, no sentido não-linear da nossa noção de evolução da história, mas ao pragmatismo esquizofrênico do “fazer” coisas o tempo inteiro.

Como a arte pode trazer de volta essa “ordem entre o homem e as coisas”, de que fala Stravinsky? 

O artista precisa necessariamente - diz Théodore - experimentar ele mesmo esse contato com a essência do mundo, e do tempo. E mostrar que o que é acessório é completamente descartável quando se tem o essencial. Mas observa que esta tomada de consciência foi se elaborando em Stravinsky de forma progressiva, “como o germe de uma semente”. Para chegar a um tal estado, “Stravinsky necessitou de toda uma vida de trabalho, de experiências, de reflexões.” Numa atitude fundamental “constante”, atesta o filho do compositor russo.

Neste ponto ele propõe uma reflexão sobre forma e conteúdo:

Partitura da composição
"Pássaro de Fogo" de Stravinsky
No campo da arte “que me importam as coisas belas que quereis dizer-me (e que são espírito) se tu não encontrastes a forma adequada que possam ser assimiladas (forma que é matéria)? A imagem do homem, seu autor, toda obra de arte é ao mesmo tempo espírito e matéria, indissoluvelmente unidos em uma única entidade. Tropeçamos aqui com a eterna questão: a forma e o conteúdo. Não há forma viva sem conteúdo autêntico, e tampouco há conteúdo autêntico sem forma adequada. É uma exigência simples da nossa natureza.”

Mais à frente Theodore Stravinsky discorre sobre a atividade criado, dizendo que ela é feita sob dois signos distintos, que ele chama de “ontológicos” e “éticos”.

Nos artistas que baseiam sua atividade criadora dentro do signo da ontologia (parte da filosofia que estuda a natureza do ser, a existência, a realidade), estes concentram seus esforços na “obra a realizar”. É essa obra que vai ditar suas exigências e todos os passos que seu autor precisa dar para poder alcançá-la. E pergunta: como conceber uma obra a realizar se não for sob determinada forma? Por isso, buscar a perfeição da forma é a preocupação principal e constante dessa “família” de artistas. E completa que esses artistas fazem isso porque

“sabem muito bem que somente sob esta condição é que sua obra terá aquela completa autonomia que querem conferir-lhe.”

Quanto aos que seguem o signo da “ética” (no sentido dos valores morais, de caráter pessoal) começam seu trabalho interrogando ao seu eu, a “cujas exigências tratarão de conformar a obra a realizar.” Esse “eu” é o que rege tudo e a ele tudo deve obedecer. O critério de “sinceridade” passa a ser dominante. A obra de arte gerada aí não tem autonomia, porque se encontra marcada “com o selo do seu autor” ou como “expressão daquilo que ocorre em seu foro interno e desejada como tal pelo artista”. Os artistas desta categoria se incluem dentro daqueles que buscam o “conteúdo espiritual” de suas obras. Mas, continua Théodore, esse conteúdo “é algo muito mais profundo e somente a forma, quando alcançou sua perfeição, tem a virtude de nos fazê-la sensível; é somente ela a que, expressando-se substancialmente, nos revela ao mesmo tempo o eu profundo em que ambos - forma e conteúdo - encontraram seu nascimento simultaneamente. Quando conseguem realizar uma obra válida, uma obra-mestra têm que admitir que inconscientemente, e apesar deles mesmos, esses artistas trabalharam, na realidade, como os anteriores.”

E conclui dizendo: toda obra perfeita, seja qual seja sua etiqueta, pode ser considerada clássica. E que Stravinsky pertence, sem sombra de dúvidas à primeira categoria, pois “seu sentido ontológico da obra, seu gosto artesanal pelo ofício se desenvolvem e se comprovam nele com o passar dos anos, na medida em que vai tomando consciência de si mesmo, de sua vocação própria”.

Para Stravinsky, a inspiração se identifica com “aquela atração irresistível que experimenta pensando no objeto a realizar, no problema concreto que se propõe a resolver”.

Igor Stravinsky
Théodore exemplifica o gosto inato de seu pai pelo seu ofício e pela “obra bem feita”, mostrando um pouco como era sua sala de trabalho. “O aposento em que trabalha não tem nada a ver com o espaço de um intelectual, mas é uma verdadeira oficina; sua mesa, uma bancada. Tintas e lápis de diferentes cores aparecem junto a borrachas flexíveis ou duras, penas de todo tipo e calibre, raspadores grandes e pequenos, traçadores, réguas, papeis secantes e potes de cola”. E isso sempre chamou a atenção de todos os que se acercaram dele. O mesmo amor que ele tinha por seu ofício, diz Théodore, ele tinha pelas coisas.

Sempre se diz que uma obra de arte é reflexo em maior ou menor grau de seu autor. E isto também vale, na opinião de Théodore, para as outras artes: pintura, escultura, poesia. E opina, também como artista plástico que era: “sob pena de ir parar num esoterismo mais ou menos declarado, ou no puramente decorativo” a pintura e a escultura “deve salvaguardar (pelo menos em certa medida), seu caráter figurativo. Só ele permite realizar aquela ‘comunhão com o próximo’ que é - como vimos no caso de Stravinsky - o mais íntimo desejo de todo artista autêntico”.

O mesmo se passa com a poesia, diz ele. “É pelo sentido inteligível, racional das palavras e das frases que se estabelece a comunhão entre o poeta e o leitor; é por esse canal necessário, mas que não deixa de ser bastante diverso, que se transmite sua verdadeira mensagem poética.”

E continua: “A música, sendo como toda arte uma linguagem, expressa necessariamente algo; da mesma maneira que uma linguagem, uma arte inexpressiva é inconcebível”. Mas para que não se confundam os que contra-argumentam mostrando que o debate forma-conteúdo é morto, a obra de arte, seja ela música, poesia ou pintura expressa “algo essencialmente inefável”. Os longos textos que se escrevem para “explicar” determinadas obras jamais poderão suprir a falta de sentido e de qualidade estética, seja musical, poético, imagético. 

Concluindo esse primeiro capítulo do livro, entre os escolhidos para comentar aqui, transcrevo a frase de André Gide, que Theodore Stravinsky colocou como abertura do capítulo de que trata da evolução do músico:

Foi retendo e restaurando a tradição quando esta se estava extraviando, que Poussin pode parecer a Delacroix saudavelmente revolucionário”.

(Nicolas Poussin foi um pintor francês que morreu em Roma em 1665 e sempre foi um ferrenho defensor do classicismo na pintura. Do outro lado, Eugène Delacroix, outro pintor francês que viveu no século XIX, foi um dos maiores artistas do movimento romântico e realista.)