quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Desenhos e gravuras do Renascimento alemão

Rinoceronte, Albrecht Dürer, 1515, Xilogravura, 24,8 cm × 31,7 cm

O Museu de Arte de São Paulo está apresentando, desde o dia 19 de outubro, uma exposição com 61 obras-primas da gravura do Renascimento alemão. Essas obras fazem parte da coleção de 100 mil obras doadas ao Museu do Louvre em 1935, pela família do barão Edmond de Rothschild. A mostra fica até 13 de janeiro no 2º andar do MASP.

O Renascimento alemão teve uma produção muito rica, uma das mais relevantes da arte europeia, mas “nem sempre reverenciada em grandes mostras”, diz o texto de apresentação da exposição do Masp.

Lucas Cranach, o velho,
Retrato de um jovem aristocrata,
acervo do Masp
Mas duas obras que pertencem ao acervo do Museu também foram integrados à mostra: as pinturas de Hans Holbein “O Poeta Henry Howard, Conde de Surrey” (1542) e, de Lucas Cranach, o “Retrato de Jovem Aristocrata” (1539).

O texto do portal do Masp também diz que, para o Diretor-Presidente do Louvre, Henri Loyrette, “essa célebre coleção reúne peças únicas, sem as quais nosso conhecimento da gravura alemã continuaria incompleto”.  O barão de Rothschild era um colecionador de obras de arte. Rapidamente absorveu o espírito do Renascimento e “reuniu as mais belas peças da gravura alemã dos séculos XV e XVI que a curiosidade intelectual, o estudo erudito e, algumas vezes, a sorte ofereceram para seu excepcional gosto pelo Belo”, completa Loyrette.

O Renascimento foi um movimento artístico e intelectual dos séculos XV e XVI, numa fase em que o capitalismo mercantilista se expandia pelo mundo e as cidades cresciam. Os valores da Idade Média iam sendo abandonados em favor de um maior foco no humanismo, que fez com que muitos artistas deixasse de pintar ao gosto da Igreja para se tornarem mais independentes, usando como tema ou a mitologia greco-romana ou cenas do cotidiano, pessoas comuns, a natureza.

A Itália, considerada o berço do Renascimento, tinha uma economia próspera e era uma região de muita efervescência cultural. Muitos mecenas patrocinavam a arte e para lá migraram muitos artistas, de diversas partes da Europa, para ter contato com a arte italiana e aprender com seus mestres.

Albrecht Dürer aos 13 anos,
autorretrato com ponta de prata
Um desses grandes artistas que se dirigu para a Itália foi Albrecht Dürer, que nasceu em Nuremberg em 1471. Dürer representava muito bem o espírito do Renascimento, pois ele era, além de pintor, gravador, ilustrador, desenhista, matemático e teórico da arte alemã. Mas seus interesses também abrangiam a Arquitetura, a Geografia e a Geometria. Ele influenciou muitos artistas do século XVI tanto na Alemanha quanto nos Países Baixos. Era um trabalhador árduo na sua arte e se especializou também nas artes gráficas, fazendo muitas xilogravuras, consideradas inovadoras. Ele também foi um dos primeiros mestres da aquarela, especialmente representando paisagens.

Foi nomeado pintor da corte pelo imperador Maximiliano I, em 1512. Dürer viajou também pelas Países Baixos, além da Itália, conhecendo muitos pintores e pessoas ligadas às letras. Em seus últimos anos de vida, em Nuremberg, fez diversos estudos sobre medida e proporção da figura humana, assim como perspectiva e geometria.

Santo Estáquio, de Albrecht Dürer
Teixeira Coelho, curador do MASP, diz que Dürer “foi o maior nome da gravura em todos os tempos até a chegada de Rembrandt, e foi a gravura que firmou seu nome internacional ainda em sua própria época. [...]Dürer, porém, não se limitou a levar a Renascença para o Norte (da Europa): de igual modo, trouxe o germanismo para o Sul, sobretudo com sua contribuição em favor da melhor reputação da gravura. Seu grande aporte, por arbitrário que seja destacar um dentre vários, foi a originalidade da invenção, algo que se poderá verificar nesta exposição, de modo central embora não exclusivo, nas peças Santo Eustáquio, A trindade e o popular Rinoceronte, três de suas muitas obras-primas”.

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Serviço:

Desenhos e gravuras do Renascimento Alemão na
Coleção Barão Edmond Rothschild - Museu do Louvre
De 19 de outubro de 2012 a 13 de janeiro de 2013
MASP - Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand
Av. Paulista, 1578
Horários: De 3ªs a domingos e feriados, das 10h às 18h. Às 5ªs: das 10h às 20h.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Existe amor em SP?

Multidão na Praça ROSA, domingo em São Paulo. O músico Criolo, de azul, de frente pra foto

Dois terços da população de São Paulo se espreme em trens e metrôs todo santo dia! Em números? Uns sete milhões de pessoas! Sete milhões! Sete milhões de paulistanos deixam suas casas diariamente para trabalhar, estudar, se movimentar nas demandas da vida. Só quem mora em São Paulo e já tomou trem ou metrô, pelo menos uma vez em horário de pico, sabe o que significa viver nesta cidade, trabalhar e estudar nesta cidade, se espremendo literalmente, empurrando e sendo empurrado trem a dentro trem a fora, pra não perder a hora...

São Paulo tem um déficit imenso de moradias: pelo menos 80 mil paulistanos moram em cortiços, milhões moram em favelas, mais de 15 mil pessoas moram nas ruas! Escolas públicas e creches também são insuficientes e as disputas por vagas são permanentes. Essa metrópole onde todos os números são gigantescos, possui alguns números bem pequenos, como as pouco mais de 100 bibliotecas para seus quase 12 milhões de habitantes!

Os bairros de São Paulo, especialmente os da periferia, carecem de tudo. Não existe (ainda) uma política descentralizadora do emprego, o que obriga esses milhões de paulistanos a perder horas por dia somente se transportando de um lugar a outro. Mas esses bairros, em sua maioria, também não têm cinemas, nem livrarias, nem bibliotecas públicas, nem escolas de qualidade, nem atendimento à saúde em número e qualidade minimamente suficientes, entre outros itens essenciais à qualidade de vida.

Até 2012, a vida cultural coletiva se baseava em uma única Virada Cultural por ano, mesmo assim atraindo uma média de quatro milhões de pessoas. Porque São Paulo não tem muitos espaços culturais para a sua população. Museus, cinemas e teatros – os que existem – são caríssimos.

Por isso não foi pouco o que aconteceu domingo na Praça Roosevelt, nomeada de Praça Rosa.

O músico Criolo
Era um Festival. Nomeado como “Existe amor em SP”, os idealizadores se inspiraram na música do paulistano Criolo “Não existe amor em SP”, uma espécie de releitura da cidade nos tempos atuais. É bom lembrar que em dezenas de anos, tivemos só duas prefeitas interessadas em atender a população mais carente: Luísa Erundina e Marta Suplicy. Fora elas, são décadas de descaso com a população mais pobre. São décadas de descaso com a qualidade de vida dos moradores desta cidade. São décadas de descaso com a vida cultural na cidade de São Paulo.

Por isso não foi pouco, repito, o que aconteceu domingo na Praça Rosa.

Desde as duas da tarde, grupos de pessoas, casais, pessoas sozinhas, muitas vestidas de rosa (como sugeria a organização do evento) se dirigiam à Praça. “A praça é do povo como o céu é do condor”, já dizia nosso poeta baiano Castro Alves. E o povo não pode ver uma praça, já vai se aglomerando nela. Assim aconteceu domingo na Praça Rosa. O povo tomou a praça.

Para dizer uma coisa: queremos qualidade de vida, queremos cultura, queremos estar juntos, queremos ser felizes, queremos amor... Coisa pouca, quase nada, apenas as necessidades de qualquer ser humano: ser feliz e ser amado, cuidado, valorizado. Gente! E “gente é pra brilhar!” já dizia o outro poeta, Maiakovski.

Na praça, grupos, bandos, tribos. A imensa maioria era de jovens, mas pessoas de todas as idades se reuniram lá, de crianças a idosos. Os skatistas, que esqueceram um pouco a avenida Paulista porque o piso da praça Rosa é mais amplo, estavam às dezenas com seus skates. Tendas em alguns pontos reuniam bandas e juntavam gente, enquanto o palco principal aguardava os principais músicos do Festival, como Criolo e Gaby Amarantos.

O que Criolo deve ter pensado ao ver aquela multidão, vinte mil pessoas à sua frente reunidas para dizer que “existe amor em SP”? Teria lembrado de uma música de alguém que quando chegou por aqui não entendeu nada da “dura poesia concreta de tuas esquinas
e da deselegância discreta de tuas meninas”?

Mas Criolo mandou:

“Não existe amor em SP
Um
labirinto místico
Onde os grafites gritam
Não dá pra descrever
Numa linda frase
De um postal tão doce
Cuidado com doce
São Paulo é um buquê”
O buquê inteiro, a multidão, cantava cada letra da música de Criolo. Repetia com ele o refrão de um tempo que dominou corações e mentes dos moradores desta Paulicéia desvairada de Mário de Andrade: Não existe amor em SP!
“Os bares estão cheios de almas tão vazias
A ganância vibra, a vaidade excita
Devolva minha vida e morra afogada em seu próprio mar de fel”
Neste momento um grito saiu da garganta e da alma da multidão:
“AQUI NINGUÉM VAI PRO CÉU!”
Ouviram seus malafaias, seus russomanos da vida, seus serras, seus conservadores de plantão! Aqui ninguém quer o céu de vocês, aqui a gente quer “comida, diversão e arte”. E qualidade de vida! E ser tratado como gente!
Aqui – conservadores – aqui está fundado – desde Mário de Andrade – o desvairismo!
Gaby Amarantos de rosa
Desvairismo dos poetas, dos estudantes, dos skatistas, dos andadores de bicicleta, dos trabalhadores, dos artistas, das senhoras e dos senhores, das crianças, dos homossexuais, dos militantes de esquerda que, sim, também estavam lá, dos que querem um mundo bom para a maioria. “A praça é do povo, como o céu é do condor”!
Era um Festival político cultural. As frases e palavras de ordem podiam soar diferentes, novas, como “aqui ninguém vai pro céu” ou “mais amor”. Mas as pessoas estavam lá em congraçamento festivo, em alegria coletiva, em confraternização de todos com todos. Não houve nenhum incidente, uma briga, nada. A praça estava sendo coletivamente cuidada: sacos de lixo espalhados; garrafões de água que qualquer um podia pegar e se servir; espaços físicos, como os jardins, protegidos por todos; confecção em grupo dos cartazes; montagem dos palcos; defesa da festa de todos. Não havia distância entre o palco e o público, entre os artistas e o povo. Um podia tocar o outro.
Era um festival de quem cantou junto mas que também pensou sobre viver nesta cidade.
Mais uma vez está provado: a arte e a cultura têm o poder de juntar gente, multidões; de inspirar, de ajudar cada um a levar sua vida... E contra todo o descaso do poder público dos últimos anos, contra essas administrações higienistas, violentas e desumanas do PSDB-DEM, o que se ouviu na praça Rosa no domingo foi:
- Sim, existe amor em SP!

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Antonio Parreiras, pinturas e desenhos

Antonio Parreiras
Uma única sala da Pinacoteca está trazendo uma pequena exposição do pintor fluminense Antônio Parreiras. São somente 20 trabalhos realizados entre 1887 e 1929, com obras que pertencem aos acervos da Pinacoteca de São Paulo e Museu Antonio Parreiras. Neste ano, esse museu completou 71 anos de existência e é o primeiro dedicado à obra de um só artista.

Antônio Diogo da Silva Parreiras é considerado um dos principais paisagistas brasileiros do período entre o final do século 19 e o começo do século 20. A exposição, pequena, apresenta cinco desenhos dele, “raramente expostos” como diz o texto de divulgação da Pinacoteca, e 16 pinturas de paisagens, marinhas, casarios e figuras.

Ventania
Antônio Parreiras nasceu em Niterói, Rio de Janeiro, em 1860. Iniciou seus estudos em 1883, na Academia Imperial de Belas Artes, tornando-se aluno do pintor de paisagem Georg Grimm. Após dois anos, junto a outros colegas, abandonou a Academia quando esta proibiu que seu mestre desse aulas de pintura ao ar livre. Sob a orientação de Grimm, o grupo pintava paisagens da praia da Boa Viagem, em Niterói.

Em janeiro de 1885, em seu ateliê em Niterói, Parreiras fez sua primeira exposição. Inaugurava, dessa forma, uma série de exposições individuais que foram acontecendo, no Rio, em São Paulo, no Pará, no Amazonas e no Rio Grande do Sul. Antonio Parreiras fez diversas viagens de estudo por diversas partes do país.

Ao mesmo tempo, os críticos o acusavam de falta de técnica no desenho da figura humana. Em resposta, ele resolve viajar para a Europa, indo em busca do aperfeiçoamento técnico. Primeiro na Itália, passa por Gênova e Roma mas passa uma temporada maior em Veneza, onde se matriculou na Academia de Belas Artes, estudando com Filippo Carcano. Volta ao Brasil em 1890 e inscreve alguns trabalhos na Exposição Geral de Belas Artes daquele mesmo ano e pela primeira vez fez uma pintura histórica, sob encomenda.

Casas em Piana, 1915
Mas sua atração maior era a paisagem. Pintou florestas tropicais, a flora e a fauna locais, marinhas e cenas do campo. Isso o transformou em um dos principais paisagistas do Brasil.

Em 1906 viajou novamente para a Europa e se estabeleceu em Paris. Lá, em 1909, inscreveu a pintura de um nu “Fantasia” no Salon de la Societé Nationale de Beaux Arts, que foi muito bem recebida.  Indo e voltando algumas vezes do Brasil à França, ele foi se tornando conhecido também na Europa.

Durante a década de 1920 pintou poucas paisagens, mas fez algumas pinturas históricas. Em 1926 lança o livro Biografia de um Pintor contada por ele mesmo. Conforme ele ressalta em sua autobiografia, Parreiras realizou em aproximadamente 55 anos de trabalho, mais de 850 pinturas, das quais 720 em solo brasileiro. Fez 39 exposições no Rio de Janeiro e em vários outros estados do Brasil.

Antônio Parreiras faleceu em Niterói em 1937. Seu ateliê foi transformado no Museu Antonio Parreiras a partir de 1941.

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Serviço:

ANTÔNIO PARREIRAS, PINTURAS E DESENHOS
Pinacoteca de São Paulo
De 6 de outubro a 3 de março de 2013
Praça da Luz - Estação da Luz
SP
Amanhecer no Adriático, 1889

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

As cavernas, úteros da arte

Interior da caverna Paiva, no Parque Estadual Intervales, São Paulo
A primeira vez em que entrei numa caverna, foi na Paiva, lá em Intervales, reserva florestal no interior de São Paulo. Aquela entrada escura e misteriosa era apenas o começo de uma aventura que abria para mim o mundo subterrâneo. Carregando uma carbureteira que alimentava a chama de nossos capacetes, fomos, eu e uns amigos, penetrando no útero da terra. Estalactites surgiam à nossa frente, desvendados pela fraca luz que cada um de nós carregava; fraca mas suficiente para iluminar aquele mundo desconhecido. Em silêncio, ouvíamos os sons dos nossos passos, além do som de gotas de água que caem dos tetos de carvernas vivas, formando, a cada cem anos, um centímetro de estalactite. O guia, a certa altura, nos sugeriu: desliguemos nossas lanternas e chamas dos capacetes, sentemos no chão e fiquemos em silêncio... Nosso grupo obedeceu. Quietude absoluta! Não existe escuridão maior do que aquela! Nem silêncio mais profundo, quebrado apenas por pequenas gotas d’água. Talvez pela sensação de estar num lugar como aquele, nossos ouvidos foram se abrindo ainda mais e sendo capazes de alcançar o mais pequeno ruído. Um som longínquo, abafado, quase inaudível, surgiu: havia um rio subterrâneo algumas centenas de metros mais à frente... Que lugar!

Quem já entrou em uma caverna, conhece essa sensação de inquietude angustiante, esse silêncio tão profundo que torna nossa capacidade de percepção muito mais refinada. E foi exatamente dentro de lugares assim que nossos antepassados deixaram marcada sua criatividade, produzindo as nossas primeiras obras de arte.

Pintura na caverna de Lascaux, França
Lembrei muito dessa minha primeira experiência, ao ler um capítulo do livro do  professor e jornalista francês Yves Calméjane, “Histoire de Moi”, que diz que realmente as cavernas podem ser consideradas também o “útero da arte”.

Nesse texto, ele fala que os homens pré-históricos coletavam frutas e caçavam animais para se alimentar, mas também desenhavam, pintavam e esculpiam. Esses primeiros artistas estiveram particularmente ativos a partir de 35 mil anos a.C. em torno do que conhecemos hoje como o território europeu, especialmente, mas também foram encontrados traços “artísticos” feitos pelo homo sapiens no território australiano, e com datas ainda mais antigas.

Mas comecemos falando de uma das grandes descobertas dessa atividade artística do nosso passado longínquo, e que é a mais famosa: a caverna de Lascaux, região de Dordogne, ao sul da França.

No dia 12 de setembro de 1940, quatro garotos resolveram explorar uma cavidade aberta pela queda de um grande pinheiro e foi assim que depois de 17 mil anos, a gruta de Lascaux, sítio pré-histórico que se tornou patrimônio da humanidade, se abriu de novo ao mundo. Estava presente na região o padre Breuil, uma das autoridades da arqueologia da época, que visitou o local que os jovens estudantes tinham descoberto e qualificou a gruta como uma verdadeira “capela sixtina” dos tempos pré-históricos!

Pintura na caverna de Lascaux, França
Uma das primeiras imagens encontradas, intitulada “Homem ferido” é uma raridade no mundo da arte das cavernas, uma vez que a figura humana quase nunca era representada. Mas era ainda mais rara ali dentro, uma vez que as 600 pinturas e 1500 gravuras encontradas eram em sua maioria a representação de animais: cavalos, bisões, carneiros, cervos, touros, renas, etc. Um professor e pesquisador francês, Leroy-Gourhan, afirmou que em 66 sítios dessa arte pré-histórica já explorados, encontram-se 66% de representações de animais, 33% de símbolos e somente 4% de representação humana.

"Homem ferido", Lascaux
Pesquisadores da pré-história, estudando a arte das cavernas, levantaram alguns pontos em relação a esses achados artísticos: primeiro, ele observaram que uma forma de expressão artística característica, ocupou um vasto espaço e durou um longo período; segundo, que havia uma unidade no tipo de pintura nesse mesmo espaço geográfico e tempo, com algumas variações de estilo; terceiro, havia uma impressionante qualidade de execução e realismo dessa arte voltada essencialmente para a figura dos animais; notaram também que havia um relativamente pequeno número de espécies de animais representados; uma raridade da representação da figura humana, que, quando era encontrada estava sempre esquematizada e localizada no fundo das cavernas, com qualidade bem diferente das figuras de animais; também observaram a presença de numerosos signos e símbolos ainda indecifráveis.

Os artistas da pré-história que decoraram abrigos e cavernas exerceram seu talento no Paleolítico superior sobre um período em torno de 25 mil anos, que vem desde o período Auriaciano (35 mil a.C.) até o Madaleniano (em torno de 13 mil anos a.C). Essa atividade, no entanto, diminuiu em torno do nono milênio a.C., período onde começa o processo de sedentarização do homem, que até então era nômade.

Pintura da caverna de Altamira, Espanha
A parte do hoje território europeu onde esses antepassados viviam se estendia da península Ibérica até o sul da Rússia. Mas as mais belas obras deixadas por eles estão concentradas nas cavernas de Altamira e Ekain, na Espanha, e em cavernas do território francês, especialmente Lascaux, Cosquer, Chauvet, Rouffignac, Les Combarelles, Font de Gaume, les Trois Frères, Gargas ou ainda a região de Vilhonneur, descoberta em 2005.

O que espanta os pesquisadores é o fato de que durante 25 mil anos esses homens, que eram coletores, caçadores e nômades praticaram sua arte utilizando basicamente as mesmas técnicas e os mesmos estilos para as mesmas representações. O conjunto todo da arte pré-histórica apresenta uma unidade. O mesmo bisão pintado na caverna de Niaux por volta de 13 mil anos (a.C.) é muito aparentado ao grande bisão da gruta Chauvet de 20 mil anos. São as mesmas patas em triângulo, o mesmo encurvamento das costas ou a mesma maneira de representar a cauda, observa Yves Calméjane. E diz ainda: durante esse espaço de tempo - dez vezes mais do que nossa era cristã - as diferenças são mínimas e quase restritas ao número de espécies de animais representados, assim como à técnica de pintura ou de gravação!

Pinturas no teto da caverna de Altamira, Espanha
Essas obras eram pintadas, gravadas ou esculpidas com verdadeira maestria na representação dos movimentos, nas atitudes e nas expressões de suas figuras. E é bom que se diga: eles praticavam essas artes em locais de acesso muito difíceis e em condições muito dificultosas. Por isso, acrescenta Calméjane, “quando o abade Breuil chama a caverna de Lascaux de “capela sixtina”, sem dúvida ele estava querendo dizer que o artista do período madaleniano possuía tanto mérito quanto Michelangelo”, o pintor do Renascimento.

Em Lascaux, por exemplo, seria impossível pintar alguns dos tetos das cavernas sem andaimes. Mas alguns pesquisadores encontraram nesses lugares perfurações na parede e restos de árvores como carvalhos, que devem ter servido como andaimes. 

Esses artistas do passado trabalhavam no silêncio das cavernas e em sua obscuridade angustiante, depois de preparar seu material, como pigmentos, pinceis, raspadores e buris feitos de sílex. Muitas vezes percorrendo centenas de metros dentro das cavernas, segurando sua tocha frágil ou sua lamparina de gordura, eles desenhavam e pintavam tetos e paredes, muitas vezes usando as saliências e os pigmentos naturais que ele adaptava à sua obra.

Caverna de Altamira
Se esses homens sabiam o que faziam e para quê, nós, ao contrário, ignoramos completamente, observa Yves Calméjane. A nós, restam as conjecturas e as teorias sobre as reais motivações daqueles primeiros seres humanos. Aquela prática artística tinha função utilitária, simbólica ou ritual?

Outras observações também impressionam os estudiosos da arte pré-histórica, trazendo ainda mais questões: não existe representação artística da flora, curiosamente não há nenhuma flor, nem frutas ou árvores; não há representação de outros elementos naturais como a água, o sol, as montanhas, as estrelas, a lua, as nuvens. Ao menos que estejam sob uma forma que não possamos perceber; o homo sapiens não sabia representar o horizonte e nada sabia sobre perspectiva; a reprodução da figura humana é rara, como falamos antes; os homens são pouco representados, mas a mulher, sobretudo retratada como reprodutora, é mais frequente nos desenhos das cavernas.

Pintura na caverna de Altamira
Observando-se o “Homem-bisão” da gruta de Villars, ou o “Homem-pássaro” de Lascaux ou o “Mago chifrudo” da caverna “Trois Frères”, vê-se um contraste gritante entre os desenhos de animais e de pessoas. Somente no período Madaleniano, por volta de 13 mil anos a.C., é que encontramos figuras humanas pintadas com mais realismo, como em “Angles-sur-l’Anglin” e “La Marche”, por exemplo. Ali estão as primeiras tentativas do homem de se auto-representar de forma realista.

Na caverna “Angles-sur-l’Anglin”, no interior da França, há a representação de um rosto humano, bastante realista, de perfil, e que sorri com certa docilidade. Enquanto olhamos para ele, enfatiza o professor francês, nos admiramos com esse que pode ser o primeiro sorriso da história da arte e nos faz pensar ainda mais sobre qual motivo havia para que o homem pré-histórico desse um tratamento tão diferente para as figuras de animais e de seres humanos? Seria por não ter ainda consciência de si mesmo? Por não ser capaz de observar um semelhante como eram capazes de observar os animais?

Mas Yves Calméjane também fala sobre uma outra região do mundo, na Austrália.

Pesquisadores franceses na ilha de Borneu
Na região de Ubbir, naquele continente, as representações artísticas são feitas sem interrupção desde 40 mil anos atrás até hoje, pelos aborígenes! Eles continuam a pintar como seus ancestrais, observa o professor. Entre eles, o ensinamento é transmitido por via oral e através das pinturas rituais feitas em cascas de árvores, onde eles representam seus grandes mitos, que eles chamam de “Sonhos”. Esses mitos têm sido pintados ou gravados também sobre paredes rochosas há 40 mil anos!

Naquela região é muito frequente a representação das mãos humanas, uma forma de comunicação com os espíritos, diz Calméjane. São feitos por homens, mulheres e crianças, enquanto que a maior parte das outras pinturas é feita exclusivamente pelos homens. Mulheres e crianças se expressam, então, fazendo traços e pinturas com as próprias mãos, usando-as como estêncil.

Mas essa prática de pintar as mãos se estende por muitos outros lugares do mundo. Na Argentina, por exemplo, tem a Cueva de las Manos Pintadas. Na França, ela está presente nas cavernas Cosquer e Chauvet. No norte da África e na Indonésia se encontram figuras de mãos - negativas ou positivas - pintadas. E Yves Calméjane afirma: “são uma espécie de testemunha de que o homem a partir daí (13 mil anos) começa a tomar consciência de si”.

Descobertas mais recentes, em 1992, na ilha de Borneo, na Indonésia, feitas pela equipe coordenada pelos espeleólogos e arqueólogos Luc-Henri Fage e Jean-Michel Chazine, trouxeram à luz surpreendentes pinturas pré-históricas. Encontraram centenas dessas mãos pintadas em negativo.

Pintura pré-histórica na serra da Capivara, Piauí
Aqui no Brasil, as pinturas e gravuras mais antigas, que chegam a ter 12.000 anos, foram encontradas no Parque Nacional da Serra da Capivara, região de São Raimundo Nonato (Piauí). São desenhos e esboços de animais, pessoas, plantas e objetos. Muitas vezes mostram cenas da vida cotidiana e cerimônias de culto. Mas podemos encontrar arte rupestre em diversos outros lugares no Brasil.

Nessa região próxima ao município piauiense de São Raimundo Nonato, vem ocorrendo importantes pesquisas arqueológicas e antropológicas sobre as origens do homem americano, especialmente sob a coordenação da pesquisadora Niède Guidon. Ela nasceu em 1933, em São Paulo, e se formou em História Natural pela USP. Estudou arqueologia na Sorbonne de Paris. Desde 1963 ela sabia da existência de um sítio arqueológico no Piauí e a partir de 1973 ela passou a trabalhar na região. Em 1986 ela fundou lá na região o Museu do Homem Americano, da qual é ainda diretora.

Serra da Capivara, Piauí
Nessas pesquisas arqueológicas, Niède encontrou pinturas feitas em pedras, ossos, pedaços de cerâmica, ferramentas, além das encontradas nas paredes de pedra das montanhas da região. Usando o método do carbono 14 para datar alguns ossos humanos lá encontrados, ela e outros pesquisadores chegaram à conclusão de que eles tinham 12 mil anos de idade.

Nossos antepassados brasileiros tinham também seus artistas e, convivendo no mesmo período (o madaleniano de 13 mil anos a.C) que os outros humanos espalhados em diversas regiões do planeta, começaram a desenhar e a pintar mais frequentemente a figura humana. Sejam em forma de estatuetas, sejam em forma de gravura, desenho ou pintura, os artistas registraram esse salto evolutivo da humanidade.

Podemos dizer – ao observar essas manifestações do homem da pré-história – que a arte não era algo à parte das outras atividades da vida de então. Ela tinha um lugar e um papel fundamental. Muito provavelmente as manifestações artísticas do homem ao longo da história dos últimos 50 mil anos vêm cumprindo um papel primordial em nossa evolução intelectual assim como em nosso processo civilizacional. 

"Bouquet de mãos", localizada no teto a 7 metros de altura, descoberta por Luc-Henri Fage e Michel Chazine,
na ilha de Borneu, com idade de 12 mil anos a.C.

A Vinícius de Moraes


Porque hoje o poeta Vinícius de Moares faria 99 anos... E porque ele sonhava um mundo mais bonito, viva Vinícius, viva a Poesia, viva a Arte!

MUNDO MELHOR

Vinícius de Moraes


Você que está me escutando 
É mesmo com você que estou falando agora 
Você que pensa que é bem 
Não pensar em ninguém 
E que o amor tem hora 
Preste atenção, meu ouvinte 
O negócio é o seguinte 
A coisa não demora 
E se você se retrai 
Você vai entrar bem, ora se vai 

Conto com você, um mais um é sempre dois 
E depois, mesmo, bom mesmo, é amar e cantar junto 
Você deve ter muito amor pra oferecer 
Então pra que não dar o que é melhor em você? 
Venha e me dê sua mão 
Porque sou seu irmão na vida e na poesia 
Deixa a reserva de lado 
Eu não estou interessado em sua guerra fria 
Nós ainda havemos de ver 
Uma aurora nascer 
Um mundo em harmonia 
Onde é que está a sua fé 
Com amor é melhor, ora se é

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Como pintar um quadro de 11 mil euros

François Cluzet e Omar Sy, atores do filme
Neste final de semana, às vésperas das eleições municipais, fui assistir ao filme “Intocáveis”, dos diretores franceses Eric Loredano e Olivier Nakache.

É um belo filme, do começo ao fim. A história, tocante. Conta como Driss, um senegalês morador da periferia de Paris, consegue um emprego de “tomador de conta” de um rico aristocrata, Phillipe, que ficou tetraplégico após uma queda de parapente. O filme é baseado na história real entre o milionário Phillipe Pozzo di Borgo e seu acompanhante, o argelino Abdel Sellou.

O papel desempenhado pelo ator Omar Sy, que morou na periferia de Paris assim como seu personagem Driss, traz à tona algumas reflexões. Em primeiro lugar, como se trata de uma história de amizade onde se cria uma profunda relação de confiança entre dois homens de duas classes tão distintas, o grau de humanidade implícita nessa história é muito comovente. De um lado, um negro pobre, que mora com a mãe e irmãos num pequeno cubículo de um bairro da periferia. Sua mãe é faxineira em prédios de escritórios. Seu irmão mais novo, traficante. Ele próprio, passou uma temporada no presídio por alguma infração cometida anteriormente. Do outro, um homem rico, branco, que mora num apartamento imenso e luxuosamente decorado, mas que está tetraplégico e depende, assim, completamente dos cuidados de Driss.

O filme mostra, todo o tempo, as diferenças entre o mundo de Phillipe – o dos ricos – e o mundo de Driss e sua família – os pobres.

Não indo muito longe na interpretação, me atenho ao que mais me interessa desse roteiro. Além das evidentes diferenças entre os dois mundos, o filme também mostra como existe uma lacuna muito grande dentro da cultura e da arte, que também opera uma separação de classes. Intencionalmente ou não, o filme ridiculariza a prática cultural burguesa: a arte contemporânea é um embuste, uma forma a mais de investimento financeiro; as sessões de ópera e música clássica, para platéias da elite “bem-arrumada” são, aos olhos de Driss, pura chatice; os poemas que Phillipe (François Cluzet) costuma recitar, ele também ridiculariza. A educação que o menino pobre e negro recebeu em sua escola não é a mesma educação refinada do patrão Phillipe: o acesso à literatura, a museus, a recitais de música, a assimilação dos símbolos da tradição cultural e artística ocidental passaram bem longe da cultura “aprendida” por Driss na rua, nos guetos, na luta pela sobrevivência.

Há uma cena em que Driss acompanha Phillipe a uma galeria onde está havendo uma exposição de arte contemporânea. Os dois param diante de uma tela em branco, com uma mancha vermelha de tinta jogada na tela. Phillipe diz que aquilo lhe transmite calma. Driss, gozador do modo de vida do patrão, lhe garante que poderia fazer melhor do que aquilo. Uma atendente se aproxima e anuncia o valor do quadro: mais de 40 mil euros! Driss não se conforma como alguém pode pagar tão caro por uma tela branca manchada de tinta. O mesmo que dizer que o mundo burguês de Phillipe tem também códigos culturais guiados pelo valor monetário. Nesse mundo onde as regras de etiqueta tornam tudo uma perfeita chatice, os valores subjetivos e as relações humanas estão também submetidos ao poder do dinheiro. Driss parece mostrar a Phillipe que em seu mundo falta naturalidade, espontaneidade e, num certo sentido, profundidade e sinceridade nas relações.

Mas Driss resolve pintar um daqueles quadros. Se vale tanto assim, não custa tentar. Phillipe, que já se divertia com esse ajudante que ia contra as regras de seu mundo em todos os momentos, resolve sugerir a um amigo, rico como ele, que comprasse o quadro de Driss por 11 mil euros. O amigo, um investidor, não se arrisca a perder um provável grande negócio. Enquanto isso, Driss e Phillipe se divertem. E nós, na platéia, nos divertimos com o ridículo desses signos burgueses que incluem a chamada arte contemporânea. Que não diz nada, não significa nada. Mas vale muito dinheiro!

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Uma homenagem a Eric Hobsbawm

Eric Hobsbawm
Morreu hoje, 1 de outubro, o historiador Eric Hobsbawn. Era uma figura das mais célebres do marxismo britânico, tendo produzido uma rica obra que ajudou na formação de dezenas de milhares de pessoas ao redor do mundo, dentro da visão marxista da história.

Sua história de vida é das mais ricas: era criança ainda em Viena quando Freud (o pai da psicanálise) já era famoso, estudou em Berlim nos últimos dias da República de Weimar, depois estudou em Londres e se tornou militante do Partido Comunista Britânico. Foi também crítico de Jazz, professor convidado em uma Universidade da Califórnia (EUA) justamente no período em que havido surgido o movimento hippie.

Hobsbawm era um marxista apaixonado. Em sua autobiografia "Franco-atirador", ele descreveu a última manifestação do Partido Comunista alemão na legalidade, da qual ele participou, em Berlim, no dia 25 de janeiro de 1933: "Assim como o sexo, a  única atividade que combina experiência corporal a uma emoção intensa elevada ao mais alto grau é a participação em uma manifestação de massas num momento de grande exaltação política". Ou seja, é essa sensação de se sentir um ser ativo, um agente da História.

Mas minha homenagem a este grande pensador da humanidade é a de traduzir aqui um pequeno trecho de seu artigo "Sexe, symboles, vêtements et socialisme", justamente no ponto em que ele analisa a grande figura feminina presente no centro do quadro de Eugène Delacroix, "A Liberdade guiando o povo".

Diz Hobsbawm: 


"Começaremos por esta que deve ser a mais famosa das pinturas revolucionárias, mesmo que seu autor não tenha sido tão famoso quanto sua obra: quero falar de "A Liberdade guiando o povo" de Delacroix (1831). O tema é conhecido de todos: uma moça com os seios à mostra, com um boné frígio na cabeça e, segurando uma bandeira, atravessa os corpos empilhados sobre a barricada enquanto que a seguem outros homens armados e vestidos de forma característica. 
Muito se explorou sobre este tema. Mas de qualquer maneira, a forma na qual os contemporâneos dele interpretaram este quadro não deixa dúvida: para eles, esta Liberdade não tinha nada de uma figura alegórica, mas se tratava de uma mulher bem real (provavelmente inspirada na heroína Marie Deschamps, cujas façanhas deram a Delacroix a ideia da pintura), uma mulher do povo, pertencente ao povo, orgulhosa de  pertencer ao povo:
"É uma mulher forte com poderosos seios,
com voz rouca, encantadoramente dura
Quem...
Ágil e marchando com passos largos
Gosta do grito do povo..."          
(Barbier, "A curadora")
Balzac a via como uma camponesa: "a pele sombria, ardente, a imagem mesma do povo". Orgulhosa e insolente (sempre segundo Balzac), ela representava a antítese exata da imagem da mulher burguesa. Por outro lado, como não deixam de sublinhar seus contemporâneos, ela era uma mulher sexualmente liberada. Barbier, cujo poema "A curadora" foi fonte de inspiração para Delacroix, vai até inventar toda a história de sua emancipação sexual. Ela:
"Que não possui amor senão pelo seu povo
que não cede seu largo flanco
a não ser às pessoas fortes como ela"
após ter, "criança da Bastilha", excitado o mundo inteiro, cansada de seus primeiros amantes, segue as bandeiras (de Napoleão) e uma "capitã de 20 anos", finalmente retorna,
"Sempre bela e nua
Com uma echarpe de três cores"
para ajudar seu povo a vencer os "Três Gloriosos".
(...)
A novidade da "Liberdade" de Delacroix é, portanto, esta identificação da imagem da mulher nua com uma verdadeira mulher do povo, emancipada, e que joga um papel ativo, como uma dirigente do movimento dos homens. De quando data precisamente essa nova imagem revolucionária? Esta é uma questão que compete aos historiadores da arte responder.  Para nós, observamos duas coisas. Primeiro, por sua natureza concreta ela rompe com o papel de simples alegoria que era ordinariamente atribuída às figuras femininas; agora ela conserva a nudez, nudez que o pintor não procura jamais dissimular e que os críticos perceberam. Esta mulher não está lá para inspirar nem para representar: ela AGE. 
Em seguida, ela se distingue claramente como uma mulher combatente da Liberdade, diferente daquela que a iconografia tradicional descrevia, onde o melhor exemplo é Judith que, assim como David, representava a luta do fraco contra o forte. Diferentemente desses dois heróis, a "Liberdade" de Delacroix não está só e não tem nada de fraca. Muito ao contrário, ela encarna toda a força concentrada do povo invencível. 
"O cerco de Saragossa", de David Wilkie, 1828
Mas ela, enquanto ser sexual, se separa da virginal Joana D'Arc, por exemplo. Se trata de uma mulher jovem, nem mãe nem esposa - pelo menos podemos supor isso. Podemos medir o contraste desta imagem revolucionária e seu equivalente não-revolucionário, comparando o quadro de Delacroix com uma outra obra que lhe é quase contemporânea, "Le siège de Saragosse" (O cerco de Saragossa), de David Wilkie (1828). Nesta, vemos uma heroína bem real, inteiramente vestida, mas numa postura alegórica, com um camponês de dorso nu agachado perto dela. O quadro é um episódio das guerras pré-napoleônicas. 
Ora, Byron que lhe descreve em "Childe Harold", exprimindo toda a sua admiração pelos combatentes espanhois, insiste no fato de que a "Fille de Saragosse" não está postada fora dos limites disso que os homens, do alto de sua superioridade, avaliam ser um comportamento convencional para uma mulher: "Portanto as moças da Espanha não são uma raça de Amazonas, mas mulheres experientes em todos os encantos do amor". E ele busca uma explicação para esse heroísmo pouco feminino: ela está sendo simplesmente leal a seu marido morto. Seus atos manifestam a "ferocidade de uma pomba". 
Estamos, então, bem longe da "Liberdade".
É a revolução de 1830 que constitue - parece - o ponto culminante dessa imagem da Liberdade como uma moça jovem ativa, emancipada e aceita como dirigente pelos homens, ressaltando-se que o tema ainda era popular em 1848, provavelmente por causa da influência de Delacroix sobre os outros pintores. Ela surge, assim, sempre nua em seu boné frígio, inclusive na "Liberdade sobre as barricadas" de Millet (Jean-François), apesar de que o contexto já tinha se modificado. Mesma coisa nos esboços de Daumier, "L'émeute" (O motim). Por outro lado, as raras representações da Comuna e da Liberdade que datam de 1871 são em geral mostradas nuas (como o desenho de Rops) ou os desenhos descobertos (depois). 
O papel notoriamente ativo cumprido pelas mulheres durante a Comuna de Paris, inspirou artistas de outros países que usaram como símbolo para ilustrar essa revolução os traços de uma mulher não-alegórica (ou seja, nua) e manifestadamente militante. A tendência a representar o conceito revolucionário de liberdade ou de república através de uma mulher nua ou, mais frequentemente, com os seios descobertos, continuou a existir. Desta forma, a famosa estátua da República, do communard (membro da Comuna) Dalou, na Place de la Nation (em Paris), apresenta o seio nu. Deveria haver uma pesquisa mais vigorosa para verificar se a exposição dos dois seios (ou de um só) se associava sempre à revolta ou, em sua falta, à polêmica, como pode ser o caso de um desenho feito na época do "Caso Dreyfus" (janeiro de 1898) onde vemos uma Marianne jovem e virginal, com um seio nu, protegida de um monstro por uma matrona Justiça com armas na mão, com esta legenda: "A Justiça: Não tenha medo da besta. Eu estou aqui!"
Emblema da Sociedade dos Carpinteiros
londrinos
Mas, por outro lado, Marianne, a República institucionalizada, aparece, doravante, normalmente vestida, mesmo que ligeiramente, apesar de suas origens revolucionárias. É de novo o reino da decência. E pode ser também o da mentira, na medida em que a nudez caracteriza em princípio a figura alegórica e feminina da Verdade - sempre frequente, notadamente nas caricaturas que foram feitas sobre o "Caso Dreyfus". 
Nua ela permanece na iconografia do respeitável movimento trabalhista britânico, como vemos no emblema da "Amalgamated Society of Carpenters and Joiners" (sociedade dos carpinteiros e marceneiros unidos) de 1860, antes que a moral vitoriana se impusesse.
(...)
Tais imagens são particularmente significativas na medida em que, de um lado, elas têm um lugar evidente em todo o então jovem movimento socialista que elabora sua própria iconografia e, por outro, (...) se inspira na imagerie revolucionária francesa, onde a Liberdade de Delacroix procede igualmente".
"A Liberdade guiando o povo", de Eugène Delacroix, 1831, Museu do Louvre, Paris, França